Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0265033-36.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

 

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.740, de 20 de setembro de 2011, do Município de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar, que “Prevê gravação de atendimentos telefônicos na administração pública, nos casos que especifica”.

2.      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3.      Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte específica de receita (arts. 25 e 176, I, da Constituição Paulista).

4.      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo por objeto a Lei nº 7.740, de 20 de setembro de 2011, daquele Município, fruto de iniciativa parlamentar, que “Prevê gravação de atendimentos telefônicos na administração pública, nos casos que especifica”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado é inconstitucional porque contém vício de iniciativa e porque não indica a fonte de custeio para suportar os encargos criados. Daí a alegação de violação dos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi deferido para sustar “ex nunc” a eficácia do dispositivo legal impugnado (fl. 31).

Citado regularmente (fl. 40), o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 37/39).

Notificado (fl. 37), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 41/43.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria Geral de Justiça.

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado, cujo veto do Executivo foi derrubado pela Câmara Municipal, apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Observa-se que a legislação em questão determina que sejam realizadas gravações das chamas telefônicas recebidas pela Ouvidoria do Município e pelo órgão de atendimento pré-hospitalar de urgência e emergência.

Desta forma, a lei revela-se invasiva da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo. Configura-se verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

 Cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A matéria de que trata a lei em análise – gravação de chamadas telefônicas recebidas por órgãos municipais – é conduta cuja iniciativa cabe à administração municipal.

Incumbe exclusivamente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação ou instituição de atividades administrativas, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei determinando ao Poder Executivo realização de atividades de gestão, disciplinando-as total ou parcialmente, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão da obrigação de gravação de atendimentos telefônicos recebidos por órgãos municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, pratica verdadeiros atos de administração, violando a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou a obrigar as gravações, mas determinou o prazo de sua custódia e forma de sua disponibilização.

A obrigação determinada pela lei impugnada constitui atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar, aqui, o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Convém ressaltar que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47, fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Pois, ao instituir atividade administrativa, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao estabelecer providência administrativa de incumbência do Poder Executivo não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.740, de 20 de setembro de 2011, do Município de Jundiaí.

               São Paulo, 18 de março de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

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