Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0269415-72.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.944, de 10 de março de 2010, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que “Regulamenta a confecção de receituários médicos e carimbos, para os profissionais da área da saúde e dá outras providências”.

2)      A lei impugnada impôs obrigações às gráficas fornecedoras de impressos de receituários médicos do município. Matéria atinente ao "poder de polícia", que é de iniciativa geral ou concorrente. Medida que visa resguardar a saúde pública.

3)      Inexistência de violação de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, ou mesmo do princípio da separação de poderes. Interpretação estrita da regra de reserva de iniciativa legislativa do Poder Executivo. Precedentes do STF.

4)      Norma que não gera, direta e imediatamente, nenhum encargo para a administração pública, como nos casos de criação de cargos, aumento de despesas, alteração de regime jurídico de servidores, ou mesmo modificação de rotina de serviços.

5)      Tema contido no âmbito do interesse local (art. 30, I da CR/88), por consistir na disciplina do poder de polícia municipal. Lei que se reputa constitucional.

6)      Parecer pela improcedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.944, de 10 de março de 2010, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que “Regulamenta a confecção de receituários médicos e carimbos, para os profissionais da área de saúde e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes e por criar despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts.  5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.

Alega, ainda, que a legislação contrariou o art. 67, VI da Lei Orgânica do Município de Catanduva.

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado (fls. 28/31).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 52/54).

É o breve relato do ocorrido nos autos.

Não procede o pedido.

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com da Constituição Estadual.

Com efeito, a Lei nº 4.944, de 10 de março de 2010, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - As gráficas fornecedoras de impressos de receituários médicos só aceitarão pedidos dos profissionais da área de saúde, para competente confecção, mediante a apresentação de Carteira Comprobatória da Categoria ou solicitação feita por escrito com assinatura e firma reconhecida do profissional.

Parágrafo único. O disposto no artigo 1º se aplica também às empresas fornecedoras de carimbos.

Art. 2º - As gráficas e empresas fornecedoras destes materiais deverão manter as requisições pelo período de 02 (dois) anos para comprovação em caso de roubo ou perda do material pelo profissional.

Art. 3º - O não cumprimento dos artigos anteriores acarretará multa de 100 (cem) vezes o valor do produto comercializado, na sua primeira ocorrência, sendo que a reincidência implicará na cassação do alvará de funcionamento.

Art. 4º - O Poder Executivo determinará o órgão competente a fiscalização do disposto nesta Lei.

Art. 5º - O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 30 (trinta) dias contados a partir de sua publicação.

 

         De ver-se, inicialmente, que a lei não tratou de nenhuma matéria cuja iniciativa legislativa seja reservada ao Chefe do Poder Executivo, e tampouco houve violação ao princípio da separação de poderes por invasão da esfera da gestão administrativa.

A matéria sujeita à iniciativa reservada do chefe do Poder Executivo, por ser direito estrito, deve ser interpretada restritivamente. Nesse sentido é o entendimento pacífico do Colendo STF, ao interpretar o art. 61 § 1º da CR/88, como se infere dos precedentes a seguir:

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no art. 61 da Constituição do Brasil – matérias relativas ao funcionamento da administração pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo. Precedentes. (ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 2-4-2007, Plenário, DJE de 15-8-2008).

(...) iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (...) (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001).

No mesmo sentido os seguintes julgados: ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-2006, Plenário, DJ de 17-11-2006; RE 328.896, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 9-10-2009, DJE de 5-11-2009; ADI 2.392-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 28-3-2001, Plenário, DJ de 1º-8-2003; ADI 2.474, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 19-3-2003, Plenário, DJ de 25-4-2003; ADI 2.638, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 9-6-2006.

As matérias em que há iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, em conformidade com a Constituição do Estado de São Paulo, são indicadas taxativamente: (a) criação e extinção de cargos e funções na administração direta ou indireta autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração; (b) criação de órgãos públicos; (c) organização da Procuradoria-Geral do Estado e da Defensoria Pública; (d) servidores públicos e seu regime jurídico; (e) regime jurídico dos servidores militares; (e) criação, alteração e supressão de cartórios.

Isso decorre do art. 24, § 2º, ns. 1, 2, 3, 4, 5, 6 da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da própria Carta Estadual (configurando reprodução das diretrizes contidas no art. 61, § 1º da Constituição da República de 1988).

E uma simples leitura da lei impugnada permite ver claramente que ela não trata de nenhum desses assuntos.

Não há, no caso, qualquer vestígio nem mesmo tênue de desrespeito ao princípio da separação de poderes, estabelecido no art. 5º da Constituição do Estado (que reproduz o art. 2º da Constituição da República de 1988).

Seria possível afirmar a ocorrência de quebra da separação de poderes, caso a lei interferisse diretamente na gestão administrativa.

Mas não é isso o que ocorre na hipótese em exame.

Há interferência direta do legislador na atividade do administrador, como tem reiteradamente reconhecido esse Colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em casos de leis de iniciativa parlamentar que, por exemplo: (a) criam programas de governo a serem seguidos pelo Poder Executivo; (b) impõem ou vedam a prática de atos administrativos (contratos, permissões, concessões, autorizações, etc.); (c) concedem nomes a prédios públicos, praças ou vias públicas; (d) impõem a inserção de informações em comunicados enviados aos munícipes relativos ao lançamento de impostos; (e) criam sistemas de controle orçamentário, com imposição de envio periódico de informações do Executivo ao Legislativo, sem que haja correspondência com o modelo previsto na Constituição da República e aplicável por força do princípio constitucional da simetria; entre outros.

Em síntese: é possível identificar a ocorrência da quebra do princípio da separação de poderes quando da lei resulta interferência direta por parte do legislador na atividade do administrador.

Não é isso o que se constata no caso em exame.

A lei questionada impôs obrigações às gráficas fornecedoras de receituários médicos que somente deverão aceitar pedidos dos profissionais da área de saúde, para a competente confecção, mediante a apresentação de Carteira Comprobatória da Categoria ou solicitação feita por escrito com assinatura e firma reconhecida do profissional.

 Se, para cumpri-la, será ou não necessária a criação de novos cargos de fiscalização, ou mesmo se será ou não necessária atividade suplementar de servidores, e se isso provocará ou não maiores gastos por parte do Poder Público, é algo que dependerá essencialmente da opção político-administrativa, calcada na esfera da conveniência e oportunidade administrativa, a cargo do chefe do Poder Executivo Municipal. E essa avaliação e decisão ocorrerão no âmbito administrativo, não decorrendo diretamente da lei impugnada.

Nada assegura que, para a realização da fiscalização quanto ao cumprimento da lei impugnada, será mesmo imprescindível a criação de cargos, órgãos públicos, ou mesmo a realização de despesas complementares cuja fonte de receita não foi prevista.

Daí que o ato normativo não cria diretamente cargos, órgãos, ou encargos para a administração pública, nem regula diretamente a prestação de serviços pelo Poder Público.

Entendimento diverso implicaria contrariedade à correta compreensão a respeito do princípio da separação de poderes, previsto no art. 2º da Constituição da República de 1988, bem como às hipóteses de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Executivo, previstas no art. 61, § 1º, do mesmo diploma.

De outro lado, também não será o caso de declarar-se a inconstitucionalidade da lei por suposta violação ao art. 25 da Constituição do Estado, que veda a criação ou aumento de despesa sem indicação, no projeto de lei, da respectiva fonte de receitas.

A razão é simples.

As exigências previstas na lei em exame dirigem-se às mencionadas gráficas e não ao Poder Público local.   São aquelas, e não este, que deixarão de confeccionar os receituários médicos caso os requisitos da lei em questão não forem atendidos.

 Declarar-se a inconstitucionalidade da lei com amparo no art. 25 da Constituição do Estado, significaria contrariar a própria função essencial do Poder Legislativo, consistente na edição de leis.

Com isso, estar-se-ia negando vigência ao art. 48, caput da Constituição da República de 1988, que fixa as atribuições do Congresso (aplicável por analogia às Câmaras) bem como ao art. 30, I do mesmo diploma, que confere ao Município competência para legislar sobre assuntos de interesse local.

Ademais, o Município conta com corpo de servidores próprios para o exercício do poder de polícia.   Se haverá ou não necessidade de incremento, com aumento de despesa, além do já argumentado (opção político-administrativa, calcada na esfera da conveniência e oportunidade administrativa, a cargo do chefe do Poder Executivo Municipal), a questão demandaria produção de prova, o que é inviável no processo objetivo.

 Diante do exposto, opino pela improcedência da presente ação direta de inconstitucionalidade.

São Paulo, 26 de março de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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