Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0269426-04.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a  Lei n.º 5.274, de 21 de dezembro de 2011, do Município de Catanduva, que “dispõe sobre a instituição do dia municipal do catolicismo e dá outras providências”. Dispositivos que “autorizam” o Poder Executivo a organizar eventos alusivos à data comemorativa do “Dia do Catolicismo” e ceder espaços públicos para tal fim, gerando despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Ofensa ao art. 25 da Constituição do Estado. Natureza jurídica da “lei autorizativa”, que não afasta o vício. Parecer pela procedência parcial da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei n.º 5.274, de 21 de dezembro de 2011, do Município de Catanduva, que “dispõe sobre a instituição do dia municipal do catolicismo e dá outras providências”.

O autor argumenta que a lei nasceu na Câmara Municipal e que, determinando à Administração que patrocine e divulgue eventos comemorativos ao “Dia do Catolicismo”, gera despesas para as quais não foram indicados recursos orçamentários. Diz que o ato normativo discrimina religiões e violado o princípio da separação dos poderes sendo incompatível com os arts. 5º, 25 e 111 da Constituição do Estado de São Paulo e art. 67, VI da Lei orgânica do Município.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 31/32).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 34/38, defendendo a constitucionalidade da legislação em questão.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Procede parcialmente o pedido.

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com da Constituição Estadual.

Com efeito, a Lei nº 5.274, de 21 de dezembro de 2011, do Município de Catanduva apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º. – Fica instituído no Município de Catanduva o “Dia do Catolicismo”, a ser comemorado sempre no último domingo de abril.

Parágrafo único. As comemorações alusivas à data farão parte do calendário turístico e cultural do Município, além de constar, obrigatoriamente, no Calendário Oficial do Aniversário de Catanduva.

Art. 2º. – A promoção a ser realizada no “Dia do Catolicismo” será estabelecida pelo Poder Executivo em conjunto com a Diocese, as igrejas e as entidades católicas com a atuação no Município de Catanduva.

Art. 3º. – O Executivo Municipal fica autorizado a oferecer espaços públicos para a realização das atividades a que se refere o art. 2º, desta Lei.

 Art. 4º. – As despesas com a execução da presente lei correrão por conta de verbas orçamentárias próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 5º. – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

          Pois bem. A Constituição vigente não contém nenhuma disposição que impeça a Câmara de Vereadores de legislar sobre a fixação de datas comemorativas, nem tal matéria foi reservada com exclusividade ao Executivo ou mesmo situa-se na esfera de competência legislativa privativa da União.

         Por força da Constituição, os Municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive a fixação de datas comemorativas, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II).

         A fixação de datas comemorativas por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os Municípios, mesmo considerando-se a existência de lei federal a dispor sobre esse tema, porquanto no rol das matérias de competência privativa da União (art. 22, I a XXIV) nada há nesse sentido, ou seja, prevalece a autonomia municipal.

         Por outro lado, a matéria em questão não é de competência reservada ao Executivo.

         A Constituição em vigor nada dispôs sobre a instituição de reserva em favor do Executivo da iniciativa de leis que versem sobre a fixação de datas comemorativas e, como as situações previstas no art. 24 da Carta Paulista constituem exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a sua interpretação deve sempre ser restritiva, máxime diante de sua repercussão no postulado básico da independência e harmonia entre os Poderes.

         Cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar datas comemorativas que sejam relacionadas com fatos ou pessoas que façam parte de sua história, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.

         Assim, com a devida vênia, não é possível recusar à Câmara de Vereadores o direito de legislar sobre assunto de interesse local, qual seja, modalidade de religião de seus munícipes.

Desta feita, no exercício da competência suplementar, compreendida como sendo a “autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”(Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743), o Município de Catanduva editou a Lei nº 5.274/1 para instituir o dia do catolicismo, fazendo-o coincidir com o último domingo do mês de abril.

O legislador municipal, entretanto, incidiu em inconstitucionalidade quando “autorizou” o patrocínio  e organização dos eventos comemorativos da data e impôs outras obrigações para a Administração.

Ao dispor que a Prefeitura deve organizar as festividades alusivas ao “Dia do Catolicismo” em conjunto com as Dioceses, as igrejas e entidades católicas e ceder graciosamente espaços públicos, a Câmara Municipal invadiu seara alheia – da administração pública – violando a prerrogativa do Prefeito de analisar a conveniência e oportunidade dessas providências.

Razão assiste ao promovente, ademais, quando diz que o dispositivo impugnado viola o art. 25 da Constituição do Estado.

Com efeito, o patrocínio de eventos, a organização das festividades e a cessão de espaços públicos geram despesas. E a lei, como visto, não contém a indicação dos recursos necessários para suportá-las, cumprindo anotar que, na dicção desse Sodalício, não basta que o gasto seja imputado à conta “de verbas próprias do orçamento vigente”. Confiram-se, a título de exemplificação, as seguintes decisões: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse C. Órgão Especial também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos arts. 2º e 3º da Lei n.º 5.274, de 21 de dezembro de 2011, do Município de Catanduva, que “dispõe sobre a instituição do dia municipal do catolicismo e dá outras providências”.

São Paulo, 11 de março de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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