Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0269432-11.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 5.186, de 06 de junho de 2011, do Município de Catanduva. Parâmetro do controle de constitucionalidade de lei municipal. Criação de sistema de reuso de água pluvial em bens públicos. Separação de Poderes. Iniciativa parlamentar. Sanção. Ausência de recursos financeiros. Procedência da ação. 1. O controle objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem parâmetro a CE/89, inclusive quando reproduza, imite ou remeta a preceito da CF/88 ou se trate de norma de observância obrigatória (art. 125, § 2º, CF/88), não podendo balizá-lo ofensa à norma infraconstitucional como a Lei Orgânica do Município. 2. Lei local, de iniciativa parlamentar, que cria sistema de reuso de água pluvial em bens públicos, viola o princípio de separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, CE/89), não sendo suprido o defeito pela sanção ao projeto de lei. 3. Ausência de indicação específica de fonte financeiro-orçamentária para atendimento das despesas novas geradas (art. 25, CE/89). 4. Procedência da ação.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Catanduva em face da Lei n. 5.186, de 06 de junho de 2011, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que cria sistema de reuso de água pluvial em bens públicos, sob alegação de incompatibilidade com os arts. 5º, 25, e 144 da Constituição do Estado, o art. 67, VI, da Lei Orgânica do Município, o art. 163, I, da Constituição Federal e os arts. 15 e 16 da Lei Complementar n. 101/00 (fls. 02/10).

2.                O douto Procurador-Geral do Estado de São Paulo declinou da defesa do ato normativo contestado (fls. 28/29).

3.                O Presidente da Câmara Municipal de Catanduva sustenta a convalidação do vício de iniciativa legislativa pela sanção do Chefe do Poder Executivo ao projeto de lei e a iniciativa legislativa concorrente por não se encontrar a matéria arrolada no § 1º do art. 61 da Constituição Federal (fls. 32/36).

4.                É o relatório.

5.                Embora o requerente tenha exposto na petição inicial a incompatibilidade da lei local com os arts. 5º, 25, e 144 da Constituição do Estado, ao tratar do vício de iniciativa legislativa justificou que “tal ofensa implica em desrespeitar a Constituição Bandeirante, mais precisamente na parte em que prevê elaboração das Leis Orgânicas, qual seja, artigo 144, posto que negar validade a um dispositivo da Lei máxima do Município, que diz respeito a iniciativas reservadas ao chefe do executivo, como é o caso do artigo 67 supracitado” (fl. 07).

6.                Em seguida, articulou que a lei local “atinge também os ditames Constitucionais estabelecidos no art. 163, I, da Carta de 1988, consubstanciado nos artigos 15 e 16 da Lei Complementar nº 101/2000” (fl. 09).

7.                É inadmissível o contraste da norma municipal impugnada com outro parâmetro para além da Constituição Estadual, salvo quando reproduza, imite ou remeta a preceito da Constituição Federal (ou se trate de norma de observância obrigatória), nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

8.                Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional, como a Lei Orgânica do Município, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

9.                Compete destacar que o art. 144 da Constituição Estadual não tem o alcance exposto pelo requerente. Esse dispositivo, assim como a cabeça do art. 29 da Constituição Estadual, ao assegurar a autonomia municipal pela respectiva Lei Orgânica não a eleva ao status de norma constitucional para controle de constitucionalidade de lei local, tanto que o § 2º do art. 125 da Constituição da República prevê como exclusivo parâmetro da jurisdição constitucional a Constituição do Estado. A norma apenas subordina a produção da Lei Orgânica aos preceitos da Constituição Federal e da Constituição Estadual.

10.              Não procede, também, argumentar violação à Lei de Responsabilidade Fiscal porque, como já dito, o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual, sendo irrelevante para o seu desate o direito infraconstitucional.

11.              O art. 163, I, da Constituição Federal, que reserva à lei complementar dispor sobre finanças públicas, além de demandar crise de legalidade por envolver violação reflexa e indireta, não tem pertinência nesta sede.

12.              A lei local impugnada cria o sistema de reuso de água pluvial através da instalação de reservatórios para captação e utilização, para uso não potável, no Mercado Municipal, na Prefeitura Municipal, na Câmara Municipal, nas Escolas da Rede Pública Municipal e nos demais prédios públicos municipais.

13.              Sua iniciativa parlamentar a torna inconstitucional pela ofensa ao princípio da separação de poderes.

14.              A iniciativa parlamentar desafia o quanto contido nos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

15.              Com efeito, o conteúdo da norma contestada implica violação da reserva da Administração em matéria de gestão administrativa e a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo acerca da organização e funcionamento da Administração Pública, previstas nos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, porquanto a lei impôs atribuições a órgãos do Poder Executivo, invadindo aspectos da administração ordinária que se situa no juízo exclusivo do Chefe do Poder Executivo.             

15.              As regras do processo legislativo federal também são de observância compulsória pelos Estados e Municípios como vem julgando reiteradamente o Supremo Tribunal Federal:

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

16.              Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

17.              Também prevê no art. 47 competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

18.              A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

19.              Neste sentido, é pacífica a jurisprudência da Suprema Corte:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).

20.             Afigura-se irrelevante a sanção do Chefe do Poder Executivo ao projeto de lei de iniciativa parlamentar.

21.              Com efeito, esse entendimento que era amparado pela Súmula 05 do Supremo Tribunal Federal foi há muito revogado, como decidido pela própria Suprema Corte (STF, ADI 1.438-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, 05-09-2002, v.u., DJ 08-11-2002, p. 21).

22.              Também a lei local impugnada é incompatível com o art. 25 da Constituição Estadual.

23.              A lei cria diretamente obrigações para o Poder Executivo sem indicação precisa de recursos orçamentários para atendimento dos deveres nela contidos, não bastando a previsão contida em seu art. 3º de que “as despesas com a execução da presente Lei, correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário”.

24.              Opino pela procedência da ação.

                   São Paulo, 05 de março de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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