Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0271640-65.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Taubaté

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Taubaté

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 1º da Lei n. 4.602, de 09 de fevereiro de 2012, do Município de Taubaté. Iniciativa parlamentar. Prazo para resposta de solicitações dos munícipes. Separação de poderes. Improcedência. 1. Lei municipal, de iniciativa legislativa, que fixa prazo para atendimento das solicitações dos munícipes. 2. A disciplina do exercício do direito de petição se sujeita à reserva de lei em sentido formal, mas, não está submetida à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem à reserva da Administração, por se situar na iniciativa legislativa comum ou concorrente. 3. Lei que não trata da organização e do funcionamento da Administração Pública, mas, regula ato inerente à cidadania. 4. Improcedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Taubaté contestando o arts. 1º da Lei n. 4.602, de 09 de fevereiro de 2012, do Município de Taubaté, de iniciativa parlamentar, que fixa o prazo de 15 (quinze) dias para resposta às solicitações dos munícipes, sob alegação de incompatibilidade com o art. 47, XIX, a, da Constituição do Estado (fls. 02/10). A liminar foi concedida (fls. 13/14). A Presidente da Câmara Municipal de Taubaté defendeu a constitucionalidade da norma impugnada por se basear no princípio da eficiência (fls. 23/24). O douto Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do dispositivo normativo impugnado (fls. 32/33).

2.                É o relatório.

3.               A Lei n. 4.602, de 09 de fevereiro de 2012, tem a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica determinado que a Prefeitura Municipal de Taubaté deverá responder aos munícipes no prazo de 15 dias as solicitações formuladas através do setor de protocolo.

Art. 2º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação”.

4.                É inegável que a lei local trata do direito de petição previsto na Constituição Federal, in verbis:

“Art. 5º. (...)

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.

5.                Essa disposição foi reproduzida na Constituição Estadual:

Artigo 164 - É vedada a cobrança de taxas:
I - pelo exercício do direito de petição ao Poder Público em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.

6.                Incorporado nas Constituições francesas de 1791 e 1793, a origem mais remota em texto que reconhece o direito de petição é a Bill of Rights de 1689 da Inglaterra – enquanto a Petition of Rights de 1628 é o precedente do exercício do direito de petição – ao proclamar “que constitui direitos dos súbditos o direito de petição perante o rei” (5º).        

7.               A respeito do assunto, assim expõe a literatura especializada:

“Derivado do right of petition inglês, o direito de petição é exposto como o direito de provocar o poder público sobre uma questão ou uma situação. Congrega o direito de representação (queixa ou reclamação à autoridade administrativa como manifestação da liberdade de opinião) e reveste-se do caráter de informação ou de aspiração dirigida à autoridade pública. Com a ‘finalidade de proteção da ordem jurídica’, é ‘instrumento de participação individual na vida política do Estado, pois por meio dele podem-se exercer prerrogativas próprias da cidadania’. O art. 5º, XXXIV, a, da Constituição Federal, para além da defesa de direitos individuais, adorna-o com dimensão coletiva na busca ou defesa de direitos ou interesses gerais da coletividade.

O direito de petição tem tríplice função instrumental: a) defesa de direitos; b) representação contra ilegalidade ou abuso de poder; c) meio de exercício do direito de acesso (informação, certidão, participação processual), para a defesa ou a representação. Atende, portanto, à participação popular e à publicidade e, como adiante exposto, à motivação, pois seu exercício impõe o dever de decisão motivada.

Na primeira função, trata-se do exercício formal do direito de defesa em processo administrativo. Na segunda função, é meio de ignição gratuito e solene da atividade administrativa controladora pela representação contra ação ou omissão acoimada de ilegalidade ou abuso de poder, incidente na esfera de direitos ou interesses individuais, coletivos e difusos. Tem como objetivo a tomada de providências pela Administração Pública ou por outros órgãos com competência (Ministério Público, Tribunal de Contas, Poder Legislativo), que comporta desde a apuração até a imposição de medidas de prevenção ou correção da ilegalidade e do abuso de poder, previsto em outros dispositivos constitucionais (arts. 37, § 3º, I e III, 58, IV, 74, § 2º) e infraconstitucionais (art. 1º, Lei Federal n. 4.898/65). Em sentido amplo, o abuso é considerado como ação ou omissão anormal praticada ou tolerada por autoridade pública, sem que o representante tenha interesse pessoal na sua repressão e dispensando comprovação da existência de lesão. O mesmo ocorre no direito espanhol em que as petições ou propostas (art. 29 da Constituição Espanhola) não supõem reclamações ou exercício de outros direitos, mas sugestões e iniciativas, na modalidade de participação funcional. Na terceira função, o direito de petição é instrumento formal para o exercício do direito de acesso a dados, informações e documentos públicos, muito embora o direito de acesso tenha outros meios mais informais de realização, submetendo-se aos requisitos do art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal.

Para a doutrina, o direito de petição tem uma importância apenas psicológica (o indivíduo sente-se participante da gestão do interesse público, insurgindo-se contra abusos de autoridades e reclamando castigo), dado que a autoridade tem a faculdade de imposição de alguma medida julgada conveniente. Por isso, é considerado ‘mais uma sobrevivência do que uma realidade’, embora não se exclua a ulterior responsabilidade (administrativa, civil e penal) pela omissão ou ineficiência.  Talvez não seja adequada a minimização de sua eficácia a um ‘sino sem badalo’. Inércia, omissão, cumprimento tardio ou arbitrário podem conduzir a responsabilidade civil do Estado e a responsabilidade do agente público (em especial, o art. 11, II, da Lei n. 8.429/92).

No entanto, duas considerações convêm: a) se a medida objetivada no exercício do direito de petição é decorrente da competência vinculada ou consiste na repressão à prática de ilícito administrativo, não há espaço para suscitar margem de discricionariedade, tendo em vista que se colima a execução da lei; b) ainda que a Constituição Federal não preveja sanção pela omissão, o direito de petição implica o dever de pronunciamento positivo ou negativo motivado.

No regime democrático, que projeta sua conformação na organização e nas relações da administração pública, o direito de petição é valorizado pela imposição do dever de decisão explícita e motivada no prazo legal. Assim prevê a Lei n. 9.784/99 (arts. 48 a 50) - superando a lacuna da Lei n. 9.265/96 - ao se referir a solicitações ou reclamações, perfilhando a linha do Código do Procedimento Administrativo português  (art. 9º) que adota o princípio da decisão (dever de pronunciamento sobre assuntos da competência da Administração Pública apresentados pelos particulares, inclusive por meio de queixas, representações, reclamações ou petições em defesa da Constituição, das leis e do interesse geral).

Trata-se de garantia constitucional, reiterada expressamente como direito do usuário de serviço público para reclamação em face da qualidade e representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na Administração Pública (art. 37, § 3º, III, da Constituição Federal).

Presente nas normas infraconstitucionais para denúncia de irregularidades, defesa de direitos e oferta de críticas e sugestões, o direito de petição tem exercício gratuito, pois qualificado como ato necessário ao exercício da cidadania (art. 1º, V, Lei n. 9.265/96), visando às garantias individuais e à defesa do interesse público.

Possível, outrossim, a valorização do direito de petição com a atribuição de novas funcionalidades. A propósito, salutar a experiência do direito português, prevendo seu emprego para participação popular no exercício do poder regulamentar (iniciativa de regulamento): no Código do Procedimento Administrativo português, o direito de petição é conferido também para solicitação de elaboração, modificação ou revogação de regulamentos, com exigência de fundamentação do requerimento como condição de procedibilidade e, em contrapartida, a imposição do dever de motivação da respectiva decisão e sua informação aos interessados (art. 115º). A medida abandona a tradição do hermetismo, do isolamento e da sigilosidade contundente no domínio do poder regulamentar” (Wallace Paiva Martins Junior. Transparência administrativa: publicidade, motivação e participação popular, São Paulo: Saraiva, 2010, 2ª ed., pp. 392-397, n. 53).

8.                A jurisprudência também destaca a sua relevância:

“(...) O direito de petição, presente em todas as Constituições brasileiras, qualifica-se como importante prerrogativa de caráter democrático. Trata-se de instrumento jurídico-constitucional posto a disposição de qualquer interessado - mesmo daqueles destituídos de personalidade jurídica -, com a explícita finalidade de viabilizar a defesa, perante as instituições estatais, de direitos ou valores revestidos tanto de natureza pessoal quanto de significação coletiva. (...)” (STF, ADI-MC 1.247-PA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-08-1995, v.u., DJ 08-09-1995, p. 28.354).

9.                É, portanto, um instrumento valioso de cidadania em que o administrado exerce os direitos de defesa, denúncia, representação, crítica, sugestão, e que sem a previsão de prazo razoável de resposta é estéril.

10.              A questão posta nesta lide é aferir a ocorrência ou não de invasão da esfera do Poder Executivo, à luz da separação de poderes (divisão funcional do poder), para regular o exercício do direito de petição.

11.              Não consta do rol taxativo do art. 24, § 2º, da Constituição do Estado – que não reproduz o quanto contido no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição da República – que a matéria seja da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

12.              Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“(...) a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica. (...)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

13.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

14.              É certo que cada ente federado tem competência para legislar a respeito do assunto por se tratar de matéria de sua autonomia, mas, isso não implica assentar que se cuida de reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, senão, e tão somente, de questão que deve ser objeto de lei em sentido formal (reserva absoluta de lei) por conter a disciplina de ato inerente à cidadania.

15.              Essa linha de argumentação desautoriza a conclusão de que a iniciativa parlamentar vulnera a separação de poderes por invasão da denominada reserva da Administração.

16.              A reserva da Administração está presente no art. 47, XIX, a, da Constituição Estadual – que, no ponto, reproduz a alínea a do inciso VI do art. 84 da Constituição Federal – franqueando ao Chefe do Poder Executivo dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.

17.              Ela consiste, destarte, naquele espaço privativo do Poder Executivo para expedição de ato normativo sem intromissão do Parlamento, como delineado na jurisprudência:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

18.             Por depender de lei em sentido formal (legalidade absoluta ou estrita) não há lugar para invocar-se a competência privativa do Chefe do Poder Executivo, sendo sua iniciativa comum ou concorrente, tal como posto no caput do art. 24 da Constituição Estadual ao reproduzir a cabeça do art. 61 da Constituição Federal.

19.              Opino pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 19 de março de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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