Parecer
Processo nº 0271648-42.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Taubaté
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Taubaté
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito. Lei nº 4.709 de 25 de novembro de 2012, do Município de Taubaté, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da concessão, pelo Poder Executivo, de kit de higiene bucal dentro da Farmácia Municipal e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Necessidade de autorização da Câmara Municipal para elaboração de convênios. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 2; 47, incs. II, XIV e XIX, “a”; e 144, da Constituição Estadual. Parecer pela procedência da ação.
Colendo
Órgão Especial,
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente:
Trata-se
de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Taubaté, tendo por objeto a Lei nº 4.709, de 25 de novembro
de 2012, daquele município, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da concessão,
pelo Poder Executivo, de kit de higiene bucal dentro da Farmácia Municipal e dá
outras providências”.
O
autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e
que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto
foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara
Municipal.
Sustenta
que a lei em questão cria obrigações para a Administração Pública, havendo
usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a
atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º; 24, 25; 47; 144; e 176, da Constituição Estadual.
O pedido de suspensão liminar da vigência e eficácia da Lei impugnada foi indeferido (fl. 43).
O
Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 56/57), em defesa da
norma objurgada.
A
Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei impugnada, observando
que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 53/54).
Este
é o breve resumo do que consta dos autos.
A Lei
do Município de Franca, ora em análise, assim dispõe:
“Art. 1° Fica o
Poder Executivo, como forma de ampliar as políticas sociais no município de
Taubaté, obrigado a inserir e fornecer à população kit de higiene bucal dentro
do Centro Municipal de Medicamentos - CEMUME, Farmácia Básica Municipal.
Parágrafo único. O kit de higiene bucal deverá ser composto
de uma escova de dente, um fio dental e um creme dental com flúor.
Art. 2° Caberá ao Executivo Municipal, através da
Secretaria Municipal de Saúde e Secretaria Municipal de Educação realizar
campanhas periódicas que visem à orientação sobre saúde e higiene bucal.
Art. 3° Fica o Poder Executivo autorizado a celebrar convênios
com órgãos municipais, estaduais e federais, bem como com autarquias, empresas
públicas, fundações e associações sem fins lucrativos, com o objetivo de
adquirir e viabilizar o fornecimento do kit de higiene bucal.
Art. 4° A distribuição do kit de higiene bucal dentro do
CEMUME poderá ser interrompida caso passe o Governo Federal ou Estadual a
fornecê-lo dentro de seus programas sociais.
Parágrafo único. Havendo a paralisação das distribuições
pelo Governo Federal ou Estadual, deverá o Município retornar, no prazo de 30
dias, a distribuição do kit de higiene bucal dentro do CEMUME.
Art. 5º O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no
prazo de 120 dias, após a sua publicação.
Art. 6º Os recursos que suportarão as despesas provenientes
desta Lei correrão, neste exercício, à conta da Unidade Orçamentária 05.14 —
FUNDO MUNICIPAL DE SAÚDE, Código 10.303.0230.2.046 — MANUTENÇÃO DAS ATIVIDADES
DA FARMÁCIA BÁSICA, Natureza da Despesa 3.3.90.32.00 — MATERIAIS DE
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA.
Art. 7° Esta Lei entrará em vigor 120 dias após a sua publicação.”
Dita
lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo,
especialmente com os seus arts. 5º; 24, § 2º, n. 2; 47,
incs. II, XIV e XIX, “a”; e 144; os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
(...)
2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
Como visto, a impugnada norma cria um programa de governo, impondo à Administração a obrigação de implementar todos os serviços elencados nos incisos dos artigos 1º e 2º e, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.
Nos
entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi
incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do
postulado da legalidade, enquanto o Legislativo ficou responsável pela edição
das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as
atividades de gestão.
Essa
repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do
princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado
por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão
ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A
tarefa de administrar o município, a cargo do Executivo, engloba as atividades
de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange,
efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.
Por
intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa que visa o fornecimento à
população de “kit de higiene bucal”, “composto de uma escova de dente, um fio
dental e um creme dental com flúor”, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável a preocupação do Poder Legislativo
local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional
vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função
executiva.
As
normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo
derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo
jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo
competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos
(Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso
de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 2001,
págs. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica
patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.
Sobre
isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à
privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais
matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos
afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar
prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode
delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).
Note-se,
por outro lado, que a lei, conquanto gere aumento de despesa, indica
precisamente no art. 6º, a origem dos recursos que arcarão com os novos gastos,
o que impede colisão com o disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição
Bandeirante.
No
entanto outra inconstitucionalidade se nota na questionada lei. Prevê o art. 3º
a autorização do Poder Público Municipal para “celebrar convênios com órgãos
municipais, estaduais e federais, com o objetivo de adquirir e viabilizar o
fornecimento do kit de higiene bucal”, o que é descabido ante o princípio da separação
dos poderes.
O
legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu participação parlamentar
no processo de celebração de convênios, limitando o exercício, por parte do
Chefe do Executivo, da regular administração do município.
Referido
diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao
Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração,
de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura
não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem
missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a
Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e a independência dos Poderes,
princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer
atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e
inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c
o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal
brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da
Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Nem se alegue que, tratando-se de dispositivo meramente autorizativo, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Poder Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou.
Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:
"... insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).
Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Mana Berenice Dias – j. 7/8/00).
Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:
“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.
VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.” (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação
direta, declarando-se a
inconstitucionalidade da Lei nº 4.709, de 25 de novembro de 2012, do
Município de Taubaté, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da concessão, pelo
Poder Executivo, de kit de higiene bucal dentro da Farmácia Municipal e dá
outras providências.”
São Paulo, 16 de maio de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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