Parecer
Processo n. 0276305-27.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de
Sorocaba
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 9.578, de 24 de maio de 2011, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar. Institui “a obrigatoriedade da empresa concessionária de energia elétrica no Município de Sorocaba a realizar gratuitamente a troca de todos os postes de ferro das residências de Sorocaba por postes de concreto com rede econômica”. Violação da separação de poderes. Procedência da ação. 1. A organização e funcionamento de serviço público é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar. 2. Ofende a razoabilidade e o interesse público onerar a prestação de serviço público federal pela troca dos postes de ferro pelos de concreto, não bastasse a competência da União para disciplina do assunto. 3. Constituição Estadual: arts. 5º, 47, II e XIV, 111 e 144.
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimo
Desembargador Relator:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada
pelo Prefeito do Município de Sorocaba impugnando a Lei nº 9.578, de
24 de maio de 2011, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar que institui
“a obrigatoriedade da empresa concessionária de energia elétrica no Município
de Sorocaba a realizar gratuitamente a troca de todos os postes de ferro das
residências de Sorocaba por postes de concreto com rede econômica”.
Sustenta o autor que o projeto que da impugnada lei apresenta vício de iniciativa e violação ao princípio do pacto federativo.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 68/69).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 83/87, em defesa da constitucionalidade da questionada Lei.
Este
é o breve resumo do que consta dos autos.
A ação é procedente.
É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente
as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância
obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
Como desdobramento particularizado do
princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a
Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, “2”, iniciativa
legislativa reservada do chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita
municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias
de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47,
XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da
Administração Pública direta.
Também
prevê no art. 47 (também aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144) competência privativa do chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra
a atribuição de governo do chefe do Poder Executivo, traçando suas competências
próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de
Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência
do Poder Legislativo.
A alínea a do
inciso XIX desse art. 47 fornece ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de
dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração
estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de
órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV
estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a
prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder
Executivo.
A inconstitucionalidade transparece
exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos
da Constituição Estadual. Pois, ao organizar e disciplinar a prestação do
serviço público de fornecimento de energia elétrica, de um lado, ela viola o
art. 47, II, XIV e XIX, a, no
estabelecimento de regras que respeitam a direção da administração e a organização
e o funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva
da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que
impõe atribuição ao Poder Executivo, assunto cuja iniciativa legislativa lhe é
reservada.
Neste sentido, a jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL.
ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA
PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F,
art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II
e VI. Lei 7.157, de 2002, do
Espírito Santo.
I. - É de
iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação,
estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art.
61, § 1°, II, e, art. 84, II e
VI.
II. - As regras do
processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa
reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes
do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5°e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).
E como exposto, invade a denominada
reserva de Administração, consoante já decidido:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
Como se não bastasse, a lei local objurgada agride o
princípio federativo, cuja incidência é admissível nesta via por obra da norma
remissiva constante do art. 144 da Constituição Estadual.
O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a
observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos
princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter
remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia
municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como
averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de
constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel.
Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min.
Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).
Daí decorre a possibilidade de
contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual por sua remissão
à Constituição Federal e a seus arts. 21, XII, b, e 22, IV.
Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RETRIBUIÇÃO PECUNIÁRIA. COBRANÇA.
TAXA DE USO E OCUPAÇÃO DE SOLO E ESPAÇO AÉREO. CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇO PÚBLICO. DEVER-PODER E PODER-DEVER.
INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTOS NECESSÁRIOS À PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO EM BEM
PÚBLICO. LEI MUNICIPAL 1.199/2002. INCONSTITUCIONALIDADE.
VIOLAÇÃO. ARTIGOS 21 E 22 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Às empresas
prestadoras de serviço público incumbe o dever-poder de prestar o serviço
público. Para tanto a elas é atribuído, pelo poder concedente, o também
dever-poder de usar o domínio público necessário à execução do serviço, bem
como de promover desapropriações e constituir servidões de áreas por ele, poder
concedente, declaradas de utilidade pública. 2. As faixas de domínio público de
vias públicas constituem bem público, inserido na categoria dos bens de uso
comum do povo. 3. Os bens de uso comum do povo são entendidos como propriedade
pública. Tamanha é a intensidade da participação do bem de uso comum do povo na
atividade administrativa que ele constitui, em si, o próprio serviço público
[objeto de atividade administrativa] prestado pela Administração. 4. Ainda que
os bens do domínio público e do patrimônio administrativo não tolerem o gravame
das servidões, sujeitam-se, na situação a que respeitam os autos, aos efeitos
da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à
prestação de serviço público. A imposição dessa restrição não conduzindo à
extinção de direitos, dela não decorre dever de indenizar. 5. A Constituição do Brasil define a
competência exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de
energia elétrica [artigo 21, XII, b] e privativa para legislar sobre a matéria
[artigo 22, IV]. Recurso extraordinário a que se nega provimento, com a
declaração, incidental, da inconstitucionalidade da Lei n. 1.199/2002, do
Município de Ji-Paraná” (STF, RE 581.497-RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros
Grau, 27-05-2010, v.u., DJe 27-08-2010, RT 904/169). (g.n.)
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 9.578, de 24 de maio 2011, do Município de Sorocaba.
São
Paulo, 15 de abril de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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