Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0276312-19.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

 

Ementa:

 

1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 10.242, de 03 de setembro de 2012, do Município de Sorocaba, que “dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de câmeras de vídeo nos ônibus urbanos no Município de Sorocaba e dá outras providências”.

 

2) Preliminar: necessária a citação do Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, §2º, da Constituição Estadual.

 

3)   Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

 

 4) A competência para a prática de atos de administração ordinária é exclusiva do chefe do Poder Executivo. Ingerência indevida da Câmara na esfera de competência tipicamente administrativa do Prefeito. Lei de origem parlamentar não pode impor ao Prefeito a prática de ato que é próprio da função executiva, qual seja a instalação de câmeras de monitoramento nos ônibus urbanos.

 

4) Violação do princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º) configurada e dos arts. 47, II e XIV, 117 e 144 da Constituição Estadual.

 

5) Parecer pela procedência da ação.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

 

Colendo Órgão Especial:

 

                   

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Sorocaba, tendo por objeto a Lei nº 10.242, de 03 de setembro de 2012, do Município de Sorocaba, que “dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de câmeras de vídeo nos ônibus urbanos no Município de Sorocaba e dá outras providências”.

 O autor esclarece que a lei decorre de projeto subscrito por parlamentar, apontando o vício de iniciativa, pois caberia exclusivamente ao Prefeito a regulamentação do serviço de transporte coletivo do Município.

Ademais, impõe obrigações para a Administração Pública e gera aumento de despesa, sem a devida fonte de custeio.

 Afirma que o ato normativo traduz-se em ofensa aos arts. 5º, “caput”, 25, 47, II e XIV e 144, todos da Constituição do Estado.

Alega, ainda, violação do art. 61, XXI, da Lei Orgânica do Município.

A lei teve a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 54).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 61/65, prestando informações sobre o processo legislativo.

Entendeu-se desnecessária a citação do Procurador Geral do Estado, em razão de sucessivos pronunciamentos declinando da intervenção em situações paradigmas (fl. 54).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente.

Não obstante as reiteradas manifestações da Procuradoria Geral do Estado declinando da defesa de atos normativos semelhantes, é imperiosa a citação do Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, para eventual defesa o ato normativo impugnado.

Oportuno consignar, também, que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com da Constituição Estadual.

        

Ainda em sede de preliminar, insta observar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão, é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação à Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta, possibilitando, no controle concentrado de constitucionalidade, o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Mérito

 

         A ação é procedente.

 

           Com efeito, a Lei n. 10.242, de 03 de setembro de 2012, do Município de Sorocaba, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º - Fica obrigatória a instalação de câmeras de vídeo nos ônibus urbanos do Município de Sorocaba.

Art. 2º - A Secretaria ou órgão competente determinará a forma de colocação das câmeras de vídeos nos ônibus, em pontos estratégicos, de forma a obter sua melhor eficiência, possibilitando a identificação de quaisquer passageiros e garantindo a sua inviolabilidade.

Art. 3º - As fitas gravadas nos ônibus deverão ficar arquivadas por 02 (dois) anos.

Art. 4º - As despesas com a execução da presente lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Art. 5º - Esta lei entra em vigor180 (cento e oitenta) dias após a data de sua publicação”.

         

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 47, II e XIV, 117 e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 117- Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara ao instituir a obrigatoriedade da instalação de câmeras de vídeos nos ônibus urbanos no Município de Sorocaba, impôs obrigação a Administração, ao determinar que a Secretaria ou órgão competente que estabelecerá a forma de colocação dessas câmeras nos coletivos.

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

O legislador está instituindo serviço público.

Não há dúvida, porém, que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar um serviço público e fixar as regras para a sua prestação. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente.

Com efeito, ao Executivo cumpre com exclusividade formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a legislação impugnada viola o art. 117 da Constituição Estadual, na medida em que não assegura a manutenção das condições iniciais do contrato celebrado entre o Poder Público e as empresas responsáveis pelo transporte de ônibus urbano no município, tendo em vista que dele não consta a exigência da colocação de câmeras no interior dos coletivos, o que sem dúvida alguma gera despesas financeiras para mencionadas empresas.

          Diante do exposto, opino pelo acolhimento da preliminar arguida, procedendo-se à citação do Procurador-Geral do Estado, nos termos do art. 90, §2º, da Constituição Estadual e, no mérito, pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 10.242, de 03 de setembro de 2012, do Município de Sorocaba.

 

 

                            São Paulo, 12 de abril de 2013.

 

 

                                  Sérgio Turra Sobrane

                         Subprocurador-Geral de Justiça

                                      Jurídico

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