Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 2006140-31.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Águas da Prata

Requerido: Presidente da Câmara Municipal da Águas da Prata

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Águas da Prata, em face da Lei n. 2.002, de 29 de outubro de 2013, que “Autoriza o Transporte de Servidores, Pais ou Responsáveis pelos Estudantes da Zona Rural nos Veículos de Transporte Escolar do Município”. Projeto nascido no Poder Legislativo, com usurpação das atribuições do Prefeito. Violação do princípio da separação dos poderes. Vício formal objetivo, por ofensa ao art. 28, §7° e §8°, da Constituição Estadual. Ausência de interesse público na aprovação do diploma legal. Procedência da ação.  1. A organização e funcionamento de serviço público é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar. 2. Vício formal no procedimento legislativo, por supressão da fase de promulgação da lei pelo Prefeito Municipal, após a derrubada do veto. Inconstitucionalidade formal objetiva. 3. Impossibilidade de análise de eventual ofensa ao interesse público. Matéria que exige sindicância de fato dependente de prova, inadmissível nesta via especial.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal de Águas da Prata, da Lei n. 2.002, de 29 de outubro de 2013, que “Autoriza o Transporte de Servidores, Pais ou Responsáveis pelos Estudantes da Zona Rural nos Veículos de Transporte Escolar do Município”.

Sustenta o autor que a lei padece de inconstitucionalidade por vício de iniciativa e por vício de procedimento. Foi projetada no âmbito do Poder Legislativo, por iniciativa parlamentar, em ofensa ao princípio da separação dos poderes. De outro lado, não teriam sido obedecidos os ditames procedimentais do art. 28, §7°, da Constituição Estadual.

Alega, ainda, que se trata de lei desprovida de interesse público.

A liminar foi concedida para suspender a eficácia da Lei impugnada (fls. 69/70).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 85/94, em defesa da norma objurgada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa das normas questionadas, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 79/81).

É a síntese do necessário.

O pedido deve ser examinado pelo cotejo da lei em análise com os arts. 5º, 24, § 2º, n. 2, 28, §7°, 47, II e XIV e 144, da Constituição Estadual, a seguir reproduzidos:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

Art. 28 - Aprovado o projeto de lei, na forma regimental, será ele enviado ao Governador que, aquiescendo, o sancionará e promulgará.

(...)

§ 7º - Se o veto for rejeitado, será o projeto enviado para promulgação, ao Governador.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a)     organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A Lei n. 2.002 de 29 de outubro de 2013, do Município de Águas da Prata, objeto desta ação direta, cria obrigações e fixa condutas para a Administração Municipal, ao permitir que os servidores e pais ou responsáveis pelos estudantes da zona rural façam uso dos veículos destinados ao transporte escolar.

Neste sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2006, 15ª ed., pp. 708, 712, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva).

Deste modo, quando, a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00, Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des. Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI 142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).

         Quanto à alegação de vício no procedimento legislativo, também parece pertinente.

Conforme alegou o requerente, e se verifica na documentação juntada, com o veto do Chefe do Executivo ao projeto de lei ora tratado, este foi diretamente promulgado pelo Presidente da Câmara dos Vereadores, sem que fosse observado, “por falha dos servidores na interpretação do Regimento Interno da Câmara”, o rito trazido no art. 28, §7°, da Constituição Estadual, como confirmado pelo próprio requerido (fls.92).

Aponte-se que apenas no caso da não promulgação da lei pelo prefeito no prazo previsto, após a derrubada do veto, é que se abre ao Presidente da Câmara dos Vereadores a possibilidade e o dever de promulgá-la, nos termos do art.28, §8°, da Constituição Bandeirante.

A lei municipal, portanto, mantém incompatibilidade com o art. 144 da Constituição Estadual que, determinando a observância na esfera dos Municípios, dos princípios da Constituição Federal e da Constituição Estadual, é considerada norma remissiva e patenteia o controle de constitucionalidade da lei municipal.

Exposta, nesse contexto, a inafastável ofensa ao procedimento legislativo, caracterizadora do vício formal objetivo de constitucionalidade.

Por fim, quanto à alegação de ausência de interesse público na promulgação da lei, não cabe, no caso, a ação direta com tal fundamento, por se exigir a abordagem de matéria de fato.

Como se sabe, tal análise é incompatível com o controle concentrado de constitucionalidade, como explica o i. Min. Celso de Mello, do E. STF:

“A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546, g.n.).

Ou seja, a questão que o Tribunal analisa em controle concentrado é essencialmente jurídica (controvérsia sobre a legitimidade de lei infraconstitucional, em sua perspectiva de eventual confronto com determinado parâmetro constitucional), não podendo o sistema de controle abstrato ser deturpado para se tornar outro meio de impugnação judicial de litígios fáticos.

No caso em tela, todos os argumentos levantados pelo requerente para justificar a ausência de interesse público demandam análise que desborda daquela cabível nesta via, sendo que nem mesmo foi apontado pelo requerente o dispositivo constitucional ofendido.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 2.002, de 29 de outubro de 2012, do Município de Águas da Prata, por ofensa ao princípio da separação dos poderes e ao devido procedimento legislativo.

São Paulo, 28 de março de 2014.

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

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