Manifestação em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2029118-02.2014.8.26.0000

Requerente: Procurador-Geral de Justiça

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Palmital

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Regimento Interno da Câmara Municipal de Palmital. Autonomia normativa – ato editado no exercício de competência exclusiva da Câmara Municipal.

2)      Fixação do quórum de maioria absoluta para instalação de comissões especiais de inquérito. Desrespeito ao art. 13, § 2º da Constituição Paulista (reprodução do art. 58, § 3º da CR).

3)      Princípio da simetria. Preservação do direito das minorias parlamentares. Essencialidade ao próprio regime democrático. Princípios estabelecidos. Aplicação aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Procurador-Geral de Justiça, tendo como alvo o § 4º, do artigo 56-F do Regimento Interno da Câmara Municipal de Palmital, que tratando do quórum para a aprovação do requerimento de instalação de Comissões Especiais de Inquérito, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 56-F.

(...)

§ 4º. Esse requerimento considerar-se-á aprovado se obtiver o voto favorável da maioria absoluta dos membros da Câmara.

(...)

Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 512/514).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 521, 525/526).

A Presidência da Câmara Municipal de Palmital sustentou a constitucionalidade da norma (fls. 528/533).

É o relato do essencial.

Cumpre-nos, nesta oportunidade, reiterar os fundamentos apresentados quando da propositura da ação direta, que sinalizam para a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo impugnado.

A exigência de quórum de maioria absoluta para fins de instauração de comissão especial de inquérito, por força dos dispositivos acima invocados, mostra-se incompatível com o disposto no art. 144 da Constituição Bandeirante, pelo qual “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição (g.n.).

Isso decorre do fato de que as Comissões Especiais de Inquérito, instrumentos de investigação legislativa no âmbito do Município, são essencialmente análogas às Comissões Parlamentares de Inquérito, instrumentos de investigação à disposição do Poder Legislativo Federal e Estadual, com previsão na Constituição da República e na Constituição Bandeirante.

O art. 58, § 3º da Constituição Federal prevê o quórum de um terço dos parlamentares para a instalação de comissões parlamentares de inquérito.

Idêntica previsão contém a Constituição Paulista ao tratar, no art.13, § 2º, do quórum para instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito.

A propósito da fixação de quórum mínimo de um terço dos membros do parlamento para a instalação das Comissões de Inquérito, é necessário estabelecer duas premissas de raciocínio: (a) que o quórum estabelecido na Constituição Federal para a instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito não é simples regra procedimental, mas sim princípio constitucional estabelecido; e (b) o parâmetro estabelecido na Constituição Federal, por força do princípio da simetria, deve ser obrigatoriamente observado nos Estados e Municípios.

É assente o pensamento de que uma das funções mais importantes do Poder Legislativo é a de fiscalizar os atos do Executivo. E um dos importantes instrumentos através dos quais tal fiscalização se opera são as Comissões Parlamentares (ou Especiais, no âmbito dos Municípios) de Inquérito. O estabelecimento de limitações ou obstáculos à instauração das comissões de inquérito, minando a função de fiscalização do Legislativo, gera desequilíbrio no sistema de freios e contrapesos, afetando, portanto, a sistemática da separação de poderes.

Como recorda José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 28. ed., São Paulo, Malheiros, p. 94), encontram-se entre os princípios constitucionais fundamentais, dentre outros, os que se relacionam tanto à organização dos poderes, como os relativos ao regime político (em especial o princípio da representação política, assentado no art. 1º, parágrafo único da CF).

Partindo dessa premissa é que a doutrina indica, v.g., que quando o E. STF afirmou a existência de direito público subjetivo à instauração do Inquérito Parlamentar, desde que alcançado o quórum de 1/3, previsto no art. 58, § 3º da CF, assentou mais uma vez a necessidade de preservação do “direito das minorias parlamentares”, pois a atividade realizada pela “oposição” ao grupo político dominante é “legítimo consectário do princípio democrático” (cf. Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 387, citando, em abono a suas afirmações, os seguintes precedentes: STF, Pleno, MS 24831/DF; MS 24845/DF; MS 24846/DF; MS 24847/DF; MS 24848/DF; MS 24849/DF, rel. Min. Celso de Mello, decisão: 22-6-2005, Informativo STF 393).

Oportuno, nesse mesmo passo, transcrever trecho da decisão referente ao MS 24831/DF, rel. Min. Celso de Mello, inteiramente aplicável à hipótese:

"Comissão Parlamentar de Inquérito — Direito de oposição — Prerrogativa das minorias parlamentares — Expressão do postulado democrático — Direito impregnado de estatura constitucional — Instauração de inquérito parlamentar e composição da respectiva CPI — Tema que extravasa os limites interna corporis das casas legislativas — Viabilidade do controle jurisdicional — Impossibilidade de a maioria parlamentar frustrar, no âmbito do Congresso Nacional, o exercício, pelas minorias legislativas, do direito constitucional à investigação parlamentar (CF, art. 58, § 3º) — Mandado de segurança concedido. Criação de Comissão Parlamentar de Inquérito: requisitos constitucionais. O Parlamento recebeu dos cidadãos, não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Estado, respeitados, nesse processo de fiscalização, os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal. O direito de investigar — que a Constituição da República atribuiu ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem (art. 58, § 3º) — tem, no inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização desse relevantíssimo encargo constitucional, que traduz atribuição inerente à própria essência da instituição parlamentar. A instauração do inquérito parlamentar, para viabilizar-se no âmbito das Casas legislativas, está vinculada, unicamente, à satisfação de três (03) exigências definidas, de modo taxativo, no texto da Carta Política: (1) subscrição do requerimento de constituição da CPI por, no mínimo, 1/3 dos membros da Casa legislativa, (2) indicação de fato determinado a ser objeto de apuração e (3) temporariedade da comissão parlamentar de inquérito. Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subseqüentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não lhe cabendo qualquer apreciação de mérito sobre o objeto da investigação parlamentar, que se revela possível, dado o seu caráter autônomo (RTJ 177/229 — RTJ 180/191-193), ainda que já instaurados, em torno dos mesmos fatos, inquéritos policiais ou processos judiciais. O estatuto constitucional das minorias parlamentares: a participação ativa, no Congresso Nacional, dos grupos minoritários, a quem assiste o direito de fiscalizar o exercício do poder. A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional e que, por efeito de sua intencional recusa em indicar membros para determinada comissão de inquérito parlamentar (ainda que fundada em razões de estrita conveniência político-partidária), culmine por frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalização e de investigação do comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. (...) Legitimidade passiva ad causam do Presidente do Senado Federal — autoridade dotada de poderes para viabilizar a composição das comissões parlamentares de inquérito." (MS 24.831, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-6-05, DJ de 4-8-06).

A necessidade do respeito ao direito de fiscalização exercido pelas minorias políticas no âmbito dos demais entes federativos, em função de sua essencialidade para o regime democrático e pelo princípio da simetria, também foi afirmada em outro julgado do E. STF. Trata-se de caso em que se examinava, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, dispositivo do Regimento Interno da Assembleia Legislativa de São Paulo que estabelecia obstáculo concreto à instauração de comissões parlamentares de inquérito:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigos 34, § 1º, e 170, inciso I, do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Comissão Parlamentar de Inquérito. Criação. Deliberação do Plenário da assembléia legislativa. Requisito que não encontra respaldo no texto da Constituição do Brasil. Simetria. Observância compulsória pelos estados-membros. Violação do artigo 58, § 3º, da Constituição do Brasil. A Constituição do Brasil assegura a um terço dos membros da Câmara dos Deputados e a um terço dos membros do Senado Federal a criação da comissão parlamentar de inquérito, deixando porém ao próprio parlamento o seu destino. A garantia assegurada a um terço dos membros da Câmara ou do Senado estende-se aos membros das assembléias legislativas estaduais — garantia das minorias. O modelo federal de criação e instauração das comissões parlamentares de inquérito constitui matéria a ser compulsoriamente observada pelas casas legislativas estaduais. A garantia da instalação da CPI independe de deliberação plenária, seja da Câmara, do Senado ou da Assembléia Legislativa. Precedentes. Não há razão para a submissão do requerimento de constituição de CPI a qualquer órgão da Assembléia Legislativa. Os requisitos indispensáveis à criação das comissões parlamentares de inquérito estão dispostos, estritamente, no artigo 58 da CB/88. Pedido julgado procedente para declarar inconstitucionais o trecho ‘só será submetido à discussão e votação decorridas 24 horas de sua apresentação, e’, constante do § 1º do artigo 34, e o inciso I do artigo 170, ambos da Consolidação do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo ." (ADI 3.619, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 1º-8-06, DJ de 20-4-07)

Importante ressaltar, ademais, que o posicionamento do E. STF encontra lastro na doutrina constitucional, que assim se posicionou inclusive na vigência de Constituições anteriores que, prevendo a possibilidade de investigações parlamentares, estabeleciam o quórum de um terço para a instalação das comissões investigantes.

Carlos Maximiliano, por exemplo, anotava a propósito do art. 53 da Constituição de 1946 que “o modelo originário das Comissões de Inquérito constituídas pelo parlamento encontra-se nas instituições inglesas; adotaram-nas a Prússia, a princípio; depois a Alemanha e Áustria; desta passou ao Brasil (Lei 1579, de 18 de março de 1952 – Dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito). Não se exige o voto da maioria; ao contrário, se impõe como prerrogativa da minoria: na Alemanha republicana bastava à idéia o apoio de um quinto dos membros da câmara respectiva; no Brasil se reclama o pronunciamento favorável de um terço, não dos presentes, mas do conjunto” (Comentários à Constituição Brasileira, 4. ed., São Paulo, Livraria Freitas Bastos S/A, 1954, p. 79).

Do mesmo sentir o posicionamento de Cláudio Pacheco, no seu Tratado das Constituições Brasileiras, ao referir-se ao quórum de um terço para a criação de comissões parlamentares de investigação, anotando que “a criação de comissões de inquérito é mais um direito da minoria da câmara, desde que esta minoria tenha a envergadura numérica do terço dos seus membros” (op. cit., vol. V, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos S/A, 1965, p. 355).

Diverso não é o pensamento do Ministro José Celso de Mello Filho, também em sede doutrinária, averbando que “não se pode ignorar que as comissões de inquérito são emanações da própria instituição parlamentar” (Constituição Federal Anotada, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 171/172, em comentários ao art. 37 da Constituição de 1967, red. EC. 01/69).

Possível ainda invocar o pensamento de José Nilo de Castro, para quem a instalação automática das Comissões de Inquérito, com o preenchimento do quórum mínimo já reiteradamente mencionado ”é, na verdade, o exercício de uma franquia democrática, assegurada à minoria nos parlamentos. (...) seria desastroso para a democracia subordinar a criação de CPI à deliberação da maioria, pois, o mais das vezes, tal fato tornaria impraticável a instituição desse instrumento de controle eficientíssimo. Subordiná-la ao voto da maioria é o mesmo que negá-la, como prerrogativa da minoria” (Direito Municipal Positivo, 6. ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p. 154).

Anote-se, finalmente, que esse E. Tribunal de Justiça de São Paulo, em situação análoga, nos autos da ação direta de inconstitucionalidade nº 55.218.0/2 (j. 27.12.2000, v.u., rel. des. Denser de Sá), declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica do Município de São Paulo (art. 33) que exigia maioria absoluta para aprovação de requerimentos de instalação de Comissões Parlamentares de Investigação.

Necessário observar, ademais, que o art. 37, VIII, da Lei Orgânica Municipal de Palmital, estabelece o quórum de 1/3 (um terço) dos membros da Câmara para que sejam aprovados requerimentos de criação de Comissão Especial de Inquérito, redação essa que lhe foi recentemente conferida pela Emenda nº 12/2012 à referida Lei Orgânica.

E a correta solução conferida ao mencionado dispositivo da Lei Orgânica não afasta a necessidade e viabilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo do Regimento Interno da Câmara Municipal.

Nesse ponto é imperativo observar que os atos normativos editados pelo Poder Legislativo no exercício de suas competências exclusivas não são meros regulamentos (como o são os Decretos Regulamentares do Executivo em relação às Leis).

Ao contrário, são atos normativos autônomos, como se verifica quando, v.g., a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal exercem as competências exclusivas que lhes são atribuídas pelos art. 51 e 52 da CF, entre elas elaborar seus Regimentos Internos, dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção de cargos (art. 51, III e IV, e art. 52, XII e XIII da CF).

O mesmo ocorre com a Assembleia Legislativa, quando exerce similar competência exclusiva, por meio de Resolução ou Decreto legislativo (art. 20, II e III da Constituição Paulista).

Dada a autonomia normativa do Regimento Interno da Câmara Municipal, torna-se perfeitamente possível seu confronto direto com a Constituição Estadual.

Basta recordar, por exemplo, que o E. STF já reconheceu a possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade de resoluções editadas por tribunais, que tratam de aumento de remuneração (ADI 2104/DF, T. Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 21.11.2007, DJE-031, 22-02-2008, EMENT VOL-02308-01, PP-00122), de eleições internas no tribunal estadual (ADI-MC 3976/SP, T. Pleno, rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. 14/11/2007, DJE-026, 15-02-2008, DJ 15-02-2008, EMENT VOL-02307-03,  PP-00420), ou por Secretaria Estadual, que regula o horário de funcionamento de comercio (ADI-MC 3731/PI, T. Pleno, rel. Min. CEZAR PELUSO, j. 29/08/2007, DJE-121, 11-10-2007, DJ 11-10-2007,  PP-00038,  EMENT VOL-02293-01,  PP-00043).

O que esses casos, aqui indicados a título de simples exemplificação, têm em comum, é o caráter autônomo dos referidos atos normativos, que os habilita a figurar como objeto do controle concentrado de normas, tal como ocorre com atos normativos editados pelo Poder Legislativo, no exercício de competências que lhes são exclusivas.

Por todo o exposto, reiteram-se os argumentos apresentados quando da propositura da ação direta, aguardando-se a declaração da inconstitucionalidade do § 4º, do artigo 56-F do Regimento Interno da Câmara Municipal de Palmital.

São Paulo, 11 de abril de 2014..

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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