Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2066683-34.2013.8.26.0000

Requerente: Diretório Regional do Partido da República

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Miracatu

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Dispositivos do Regimento Interno da Câmara Municipal de Miracatu que cuidam de crimes de responsabilidade do Prefeito e dos Vereadores e estabelecimento de regras relativas ao respectivo processo e julgamento.

2)      Abertura da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade. Possibilidade de conhecimento da alegação por fundamento não apontado pelo autor.

3)      Precedentes do E. STF e do TJSP. Súmula nº 722 do E. STF. Competência legislativa da União (art. 22, I CR/88).

4)      Princípio federativo (art. 1º e 18 da CR/88, e art. 1º da Constituição Paulista). Manifestação através da repartição constitucional de competências. Princípio estabelecido de observância obrigatória pelos Municípios (art. 29, caput da CR/88, e art. 144 da Constituição Paulista).

5)      Parecer no sentido da procedência da ação direta.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Diretório Regional do Partido da República, tendo como alvo dispositivos do Regimento Interno da Câmara Municipal de Miracatu (artigos 330, 331, 332, 333, 334, 335, 356, 357, 358, 359 e os respectivos parágrafos, incisos e alíneas), que cuidam dos crimes de responsabilidade, bem como das regras relacionadas ao seu processo e julgamento.

Sustenta o requente que a Câmara Municipal não tem competência para disciplinar tal matéria, sinalizando, portanto, para a contrariedade ao disposto no art. 22, I da CF.

Foi deferido o pedido de liminar, determinando-se a suspensão dos dispositivos impugnados (fls. 118/119).

A Câmara Municipal prestou informações, sustentando que: (a) ilegitimidade do requerente para a propositura da ação direta; (b) constitucionalidade dos dispositivos glosados na inicial (fls. 131/142).

Foi interposto agravo regimental pela Câmara Municipal (fls. 149/161), ao qual o Col. Órgão Especial negou provimento, mantendo a decisão que concedeu a liminar (fls. 173/176).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 187, 189/190).

É o relato do essencial.

Os dispositivos impugnados, inseridos no Regimento Interno da Câmara Municipal de Miracatu, têm a seguinte redação:

“(...)

Artigo 331 - São infrações político-administrativas do Vereador:

I - deixar de prestar contas ou tê-las rejeitadas, na hipótese de adiantamentos;

II - utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa;

III - fixar residência fora do Município, salvo quando o Distrito em que resida for emancipado durante o exercício do mandato;

IV - proceder de modo incompatível com a dignidade da Câmara ou faltar com o decoro na sua conduta pública.

Artigo 332 - O processo de cassação do mandato de Vereador obedecerá, no que couber, o rito estabelecido no artigo 358 deste Regimento e, sob pena de arquivamento, deverá ser concluído em até 90 (noventa) dias, a contar do recebimento da denúncia.

Parágrafo único - O arquivamento do processo de cassação, por falta de conclusão no prazo previsto neste artigo, não impede nova denúncia sobre os mesmos fatos nem a apuração de contravenção ou crimes comuns.

Artigo 333 - Recebida a denúncia, o Presidente da Câmara deverá afastar de suas funções o Vereador acusado, convocando o respectivo Suplente até o final do julgamento.

Artigo 334 - Considerar-se-á cassado o mandato do Vereador quando, pelo voto, no mínimo da maioria absoluta dos membros da Câmara, for declarado incurso em qualquer das infrações especificadas na denúncia.

Parágrafo único - Todas as votações relativas ao processo de cassação serão feitas de forma secreta, devendo os resultados ser proclamados imediatamente pelo Presidente da Câmara e, obrigatoriamente, consignados em ata.

Artigo 335 - Cassado o mandato do Vereador, a Mesa expedirá a respectiva Resolução, que será publicada na imprensa oficial.

Parágrafo único - Na hipótese deste artigo, ao Presidente compete convocar imediatamente, o respectivo Suplente.

(...)

Artigo 356 - O Prefeito e Vice-Prefeito serão processados e julgados:

I - pelo Tribunal de Justiça do Estado nos crimes comuns e nos de responsabilidade, nos termos da legislação federal aplicável; (art. 29, VIII, CF)

II - pela Câmara Municipal, nas infrações político-administrativas, nos termos da lei, assegurados, dentro outros requisitos de validade, o contraditório, a publicidade, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes e a decisão motivada que se limitar a decretar a cassação do mandato.

Artigo 357 - São infrações político administrativas, nos termos da lei:

I - deixar de apresentar declaração pública de bens, nos termos da Lei Orgânica Municipal;

II - impedir o livre e regular funcionamento da Câmara Municipal;

III - impedir o exame de livros e outros documentos que devam constar dos arquivos da Prefeitura, bem como a verificação de obras e serviços, por Comissões de investigação da Câmara ou auditoria regularmente constituída;

IV - deixar de atender, sem motivo justo, os pedidos de informações da Câmara Municipal, quando formulados de modo regular;

V - retardar a regulamentação e a publicação ou deixar de publicar leis e atos sujeitos a essas formalidades;

VI - deixar de enviar à Câmara Municipal, no tempo devido, os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais e outros cujos prazos estejam fixados em lei;

VII - descumprir o orçamento aprovado para o exercício financeiro;

VIII - praticar atos contra expressa disposição de lei ou omitir-se na prática daqueles de sua competência;

IX - omitir-se ou negligenciar na defesa de bens, rendas, direitos ou interesses do Município, sujeitos à administração da Prefeitura;

X - ausentar-se do Município, por tempo superior ao permitido pela Lei Orgânica, salvo licença da Câmara Municipal;

XI - proceder de modo incompatível com a dignidade e decoro do cargo;

XII - não entregar os duodécimos à Câmara Municipal, conforme previsto em lei.

Parágrafo único - sobre o substituto do Prefeito incidem as infrações-político-administrativas de que este artigo, sendo-lhe aplicável o processo pertinente, ainda que cessada a substituição.

Artigo 358 - Nas hipóteses previstas no artigo anterior o processo de cassação obedecerá ao seguinte rito:

I - a denúncia escrita, contendo a exposição dos fatos e a indicação das provas, será dirigida ao Presidente da Câmara e poderá ser apresentada por qualquer cidadão, Vereador local, partido político com representação na Câmara ou entidade legitimamente constituída a mais de 1 (um) ano;

II - se o denunciante for Vereador, não poderá participar, sob pena de nulidade, da deliberação plenária sobre o recebimento da denúncia e sobre o afastamento do denunciado, da Comissão Processante, dos atos processuais e do julgamento do acusado, caso em que o Vereador impedido será substituído pelo respectivo Suplente, o qual não poderá integrar a Comissão Processante;

III - se o denunciado for o Presidente da Câmara, passará a Presidência a seu substituto legal, para os atos do processo e somente votará se necessário para completar o "quorum" do julgamento;

IV - de posse da denúncia, o Presidente da Câmara ou o seu substituto, determinará sua leitura na primeira sessão ordinária, consultando o Plenário sobre o seu recebimento;

V - decidido o recebimento da denúncia pela maioria absoluta dos membros da Câmara, na mesma sessão será constituída a Comissão Processante integrada por 3 (três) vereadores sorteados entre os desimpedidos, observado o princípio da representação proporcional dos partidos, os quais elegerão, desde logo, o Presidente e o Relator;

VI - Não havendo número de Vereadores desimpedidos suficiente para a formação da comissão, esta poderá funcionar com apenas 2 (dois) membros, cabendo ao Presidente da Câmara ou seu substituto o voto de desempate no parecer da comissão.

VII - A Câmara Municipal poderá afastar o Prefeito denunciado, quando a denúncia for recebida nos termos deste artigo.

VIII - entregue o processo ao Presidente da Comissão seguir-se-á o seguinte procedimento:

a) dentro de 5 (cinco) dias, o Presidente dará início aos trabalhos da Comissão;

b) como primeiro ato, o Presidente determinará a notificação do denunciado, mediante remessa de cópia da denúncia e dos documentos que a instruem;

c) a notificação será feita pessoalmente ao denunciado, se ele se encontrar no Município e, se estiver ausente do Município, a notificação far-se-á por edital publicado duas vezes no órgão oficial, com intervalo de 3 (três) dias, no mínimo, a contar da primeira publicação;

d) uma vez notificado, pessoalmente ou por edital, o denunciado terá direito de apresentar defesa prévia por escrito no prazo de 10 (dez) dias, indicando as provas que pretende produzir e o rol de testemunhas que deseja sejam ouvidas no processo, até o máximo de 10 (dez);

e) decorrido o prazo de 10 (dez) dias, com defesa prévia ou sem ela, a Comissão Processante emitirá parecer dentro de 5 (cinco) dias, opinando pelo prosseguimento ou pelo arquivamento da

denúncia;

f) se o parecer opinar pelo arquivamento será submetido a Plenário que, pela maioria dos presentes poderá aprová-lo, caso em que será arquivado, ou rejeitá-lo, hipótese em que o processo terá prosseguimento;

g) se a Comissão opinar pelo prosseguimento do processo ou se o Plenário não aprovar seu parecer de arquivamento, o Presidente da Comissão dará início a instrução do processo, determinando os atos, diligências para o depoimento e inquirição das testemunhas arroladas;

h) o denunciado deverá ser intimado de todos os atos processuais, pessoalmente ou na pessoa de seu procurador, com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas, sendo-lhe permitido assistir às diligências e audiências, bem como formular perguntas e reperguntas às testemunhas e requerer o que for de interesse da defesa, sob pena de nulidade do processo;

IX - concluída a instrução do processo, será aberta vista do processo ao denunciado, para apresentar razões escritas no prazo de 5 (cinco) dias, vencido o qual, com ou sem razões do denunciado, a Comissão Processante emitirá parecer final, opinando pela procedência ou improcedência da acusação e solicitará ao Presidente da Câmara a convocação de sessão para julgamento;

X - na sessão de julgamento, que só poderá ser aberta com a presença de, no mínimo, da maioria absoluta dos membros da Câmara, o processo será lido integralmente pelo Relator da Comissão Processante e, a seguir, os vereadores que o desejarem poderão manifestar-se verbalmente pelo tempo máximo de 15 (quinze) minutos cada um e, ao final, o acusado ou seu procurador disporá de 2 (duas) horas para produzir sua defesa oral;

XI - concluída a defesa proceder-se-á a tantas votações nominais quantas forem as infrações articuladas na denúncia, considerando-se afastado definitivamente do cargo, o denunciado que for declarado incurso em qualquer das infrações especificadas na denúncia, pelo voto de 2/3 (dois terços), no mínimo, dos membros da Câmara;

XII - concluído o julgamento, o Presidente da Câmara proclamará imediatamente o resultado e fará lavrar em ata na qual se consignar a votação nominal sobre cada infração;

XIII - havendo condenação, a Mesa da Câmara expedirá o competente Decreto Legislativo de cassação de mandato, que será publicado na imprensa oficial e, no caso de resultado absolutório o Presidente da Câmara determinará o arquivamento do processo, devendo, em ambos os casos, comunicar o resultado à Justiça Eleitoral.

Artigo 359 - O processo a que se refere o artigo anterior, sob pena de arquivamento, deverá estar concluído dentro de 90 (noventa) dias, a contar do recebimento da denúncia.

Parágrafo único - O arquivamento do processo por falta de conclusão no prazo previsto neste artigo, não impede nova denúncia sobre os mesmos fatos nem a apuração de contravenção ou crimes comuns.

(...)”

Inicialmente, deve ser rejeitada a preliminar de ilegitimidade, suscitada pela Câmara Municipal.

O autor é parte legítima.

O entendimento que tem prevalecido, nessa matéria, é que no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo Tribunal de Justiça, a legitimidade é conferida ao Diretório Regional (Estadual) de Partido Político, e não ao Diretório Municipal.

Aliás, tal conclusão decorre de posicionamento análogo do E. STF no sentido de que só partidos com representação no Congresso Nacional estão habilitados à propositura de ações diretas perante a Suprema Corte. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado:

“Ilegitimidade ativa ad causam de Diretório Regional ou Executiva Regional. Firmou a jurisprudência desta Corte o entendimento de que o Partido Político, para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, deve estar representado por seu Diretório Nacional, ainda que o ato impugnado tenha sua amplitude normativa limitada ao Estado ou Município do qual se originou.” (ADI 1.528-QO, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 23-8-02).

Como anotou em caso concreto o i. Desembargador Mohamed Amaro:

 “Por força do disposto na Constituição Federal, artigo 103, podem propor ação de inconstitucionalidade”(...); VIII- partido político com representação no Congresso Nacional. E, na esfera estadual, para propor ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estaduais ou municipais, contestados em face da Constituição do Estado, esta, em seu artigo 90, confere, e, assim, tem legitimidade, no âmbito de seu interesse: “(...) os partidos políticos com representação na Assembléia Legislativa, ou, em se tratando de lei ou ato normativo municipais, na respectiva Câmara.” E nos limites de sua atuação estadual, o partido político é representado pelo órgão regional.  Portanto, somente o diretório regional é que detém legitimidade para impugnar leis ou atos normativos perante o Tribunal de Justiça. Segue-se, pois que somente o diretório local no Município é destituído de legitimidade para a referida impugnação. Na espécie dos autos, a presente ação foi proposta pelo citado partido político, “através de seu diretório local no Município de Jarinú”. Destarte, não detendo a representação regional do partido, o autor é parte ilegítima para a propositura da presente ação, cuja carência implica na extinção do processo sem exame de mérito, conforme já decidiu este Egrégio Tribunal de Justiça.”(ADI n.62.965-0/7).

 Do mesmo modo, destacou o i. Desembargador Viseu Júnior, na ADI nº96.068.0/7, que:

“Não tem o Diretório Municipal de Partido Político legitimidade para ajuizar a ação em tela, mesmo em se tratando de lei municipal.  A pertinência subjetiva para a instauração do controle abstrato, perante o Tribunal de Justiça, cabe somente no respectivo Diretório Regional. Processo extinto sem exame de mérito.” 

No mesmo sentido, entre inúmeros julgados, confiram-se os precedentes a seguir indicados: ADI 92.661-0/4, 92.903-0/0, 96.345-0/1, 113.408-0/1, 135.319-0/6-00, 135.781-0/3-00, 156.146-0/0.

Deve, portanto, ser afastada a alegação de ilegitimidade, visto que o Diretório Regional do Partido Político tem legitimidade para a propositura da ação direta.

Passa-se ao exame do mérito.

Os dispositivos impugnados, do Regimento Interno da Câmara Municipal de Miracatu, tratam da (a) tipificação de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) do Prefeito e dos Vereadores, (b) do respectivo processo e julgamento e da possibilidade de afastamento provisório e compulsório nos mesmos casos, e (c) da extensão dessas regras ao processo de cassação dos Vereadores.

Os dispositivos impugnados (acima transcritos) violam o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos art. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. STF, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

Para a solução do caso, é necessário ter em mente que tratar de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) é atividade que se encontra inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 22, I da CR/88.

Recorde-se com Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos, que há “(...) necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito constitucional, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 443).

A questão, inclusive, foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito a súmula nº 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento."  

Vários foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula, em Sessão Plenária do E. STF, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.).  Entre tais julgados, podemos ressaltar os seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de 1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879 MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de 9/5/2003.

Em cada um desses precedentes ficou claro o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal tipificar as infrações político-administrativas, e traçar as normas para o respectivo processo e julgamento.

É assente também que as normas federais anteriores à Constituição de 1988 que tratam da matéria foram recepcionadas pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.

Deste modo, a legislação municipal que trata do tema é inconstitucional, devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da CR/88 prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Há leis federais que tratam da tipificação de crimes de responsabilidade praticados por Prefeitos e Vereadores, bem como do respectivo processo e julgamento.

A Lei nº 1079/50, recepcionada pela Constituição da República, define quais são as infrações, e disciplina o processo e julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) cometidos pelo Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.

O Decreto-lei nº 201/67 define e regula o processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos Municipais e por Vereadores.

Destarte, ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo – não observância das regras associadas à repartição constitucional de competências - normas contidas na legislação municipal (Lei Orgânica) que conceituam infrações político-administrativas e regulam o respectivo processo e julgamento.

Apenas como reforço, cumpre colacionar julgado do E. STF que, mutatis mutandis, serve de parâmetro para o caso em exame:

"(...)

         A expressão ‘e julgar’, que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do § 1º do artigo 73 da Constituição catarinense consubstancia normas processuais a serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade. Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n. 1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade. Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes. Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa da União. A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito) anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei n. 1.079 revogado, no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n. 1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não foi alterado. O Estado-Membro carece de competência legislativa para majorar o prazo de cinco anos — artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85 da CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. O Regimento da Assembléia Legislativa catarinense foi integralmente revogado. Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho ‘do qual fará chegar uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no dia em que entre em vigor a decisão da Assembléia’, constante do § 4º do artigo 232." (ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, DJ de 24-11-06).

(...)”

Saliente-se que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal de Justiça. É o caso do julgado relatado pelo Exmo Des. Mohamed Amaro (ADIN 106.343-0/8-00, Ilha Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se extrair o seguinte excerto:

“(...)

         Os princípios básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o respectivo processo e julgamento, restando, pois, afastada qualquer previsão da lei orgânica municipal, regimento interno, ou resolução legislativa, diversa do estabelecido na legislação federal pertinente.

         Aos municípios, apenas cabe observar as normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi recepcionado pela nova ordem constitucional, como, expressamente, admitido pelo Supremo Tribunal Federal.

         O ESTABELECIMENTO DE NORMAS DE PROCESSO E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO, SIGNIFICANDO INFRAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, POR FORÇA DO QUE DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I, AMBOS DA CARTA MAGNA.

         Precedentes jurisprudenciais.

(...)”

No mesmo sentido o julgamento da ADI nº 153.536-0/8-00, relator Des. Mário Devienne Ferraz, j. 09.04.2008 (v.u.), conforme ementa a seguir transcrita:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda à Lei Orgânica do Município de Tietê nº 2, de 4 de novembro de 2004, que incluiu em seu texto o artigo 61-D, no qual atribui à Câmara Municipal o poder de afastar o Prefeito cuja denúncia por infração político-administrativa for recebida por dois terços de seus membros e quando a denúncia pela prática de crime comum, de responsabilidade ou ato de improbidade administrativa for recebida pelo Poder Judiciário, perdurando o afastamento até final julgamento. Inadmissibilidade. Ofensa ao princípio federativo e ao princípio da competência legislativa. Violação dos artigos 22, I, 24, XI e 29, todos da Constituição Federal, 144 da Carta Política Estadual, e do Decreto-lei nº 201/67. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo impugnado.

(...)”

Em síntese, os dispositivos impugnados são verticalmente incompatíveis com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, fundamento este suficiente para o acolhimento da ação proposta pela Prefeita Municipal de Rosana.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados.

São Paulo, 23 de abril de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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