Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2071833-93.2013.8.26.0000

Requerente: Governador do Estado de São Paulo

Requeridos: Prefeito e Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Leis n. 7.095, n. 7.096 e n. 7.102, de 20 de dezembro de 2012, do Município de Guarulhos. Política municipal de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Autorização legislativa para contratação de parceria público-privada para serviços de transporte, tratamento e disposição final de esgotamento sanitário.  Criação da Agência reguladora dos serviços públicos de saneamento básico. Região metropolitana. Preliminares rejeitadas. Competência estadual. Procedência da ação.  1. Indevida a alegação de litisconsórcio passivo necessário no contencioso abstrato de constitucionalidade, processo de natureza objetiva em que não existem partes, e cuja participação é consentida aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado (art. 6º, Lei n. 9.868/99), e não a entidades da administração descentralizada que tem interesse no serviço. 2. Imputação de inconstitucionalidade com indicação e exposição fundamentada do contraste entre leis locais e Constituição Estadual, não havendo confronto com direito infraconstitucional, sendo inadequado o controle incidental de dispositivos da Lei Complementar Estadual n. 1.025, de 07 de dezembro de 2007. 3. Os serviços públicos de interesse comum de região metropolitana não são da alçada exclusiva e atomizada dos Municípios, mas da titularidade do Estado. 4. Procedência da ação.

 

 

 

 

 

 

Douto Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

 

 

1.                Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Governador do Estado de São Paulo impugnando as Leis n. 7.095, n. 7.096 e n. 7.102, de 20 de dezembro de 2012, do Município de Guarulhos que, respectivamente, tratam da política municipal de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, da autorização legislativa para contratação de parceria público-privada para serviços de transporte, tratamento e disposição final de esgotamento sanitário, e da criação da agência reguladora dos serviços públicos de saneamento básico, alegando incompatibilidade com os arts. 152, IV, parágrafo único, 153, § 1º, 154 e 205, caput e inciso V, da Constituição Estadual. A petição inicial foi também subscrita pelo douto Procurador-Geral do Estado.

2.                Indeferida liminar, Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – ASSEMAE requereu sua admissão como amicus curiae, que foi deferida.

3.                A Câmara Municipal de Guarulhos defendeu a constitucionalidade das leis impugnadas com lastro no art. 30, I e II, da Constituição Federal e na Lei n. 11.445/07.

4.                O Prefeito do Município de Guarulhos suscita preliminares de litisconsórcio passivo necessário da autarquia Sistema Autônomo de Água e Esgoto de Guarulhos – SAAE e da Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Saneamento Básico do Município de Guarulhos – AGRU e da impossibilidade jurídica do pedido por envolver o contraste das leis locais com os arts. 38, 41 e 43, § 2º, da Lei Complementar Estadual n. 1.025, de 07 de dezembro de 2007, cuja inconstitucionalidade incidental foi arguida em face do art. 30, I, da Constituição Federal e, no mérito, tece considerações sobre compromisso de ajustamento de conduta celebrado, a compatibilidade das leis com o planejamento regional, a competência municipal acerca do assunto, defendendo a constitucionalidade das normas.

5.                É o relatório.

6.                As preliminares não procedem.

7.                Indevida a alegação de litisconsórcio passivo necessário no contencioso abstrato de constitucionalidade, processo de natureza objetiva em que não existem partes, e cuja participação é consentida aos órgãos ou às autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado (art. 6º, Lei n. 9.868/99). Ora, dentre eles não figuram o Sistema Autônomo de Água e Esgoto de Guarulhos – SAAE e a Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Saneamento Básico do Município de Guarulhos – AGRU.

8.                Tampouco há espaço para a impossibilidade jurídica do pedido.

9.                O requerente gizou a incompatibilidade das leis impugnadas com os arts. 152, IV, parágrafo único, 153, § 1º, 154 e 205, caput e inciso V, da Constituição do Estado de São Paulo, que são aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144, não promovendo o contraste em face do direito infraconstitucional, que, aliás, não é permitido. Bem por isso afigura-se inadequado o controle incidental, nesta via, de dispositivos da Lei Complementar Estadual n. 1.025, de 07 de dezembro de 2007.

10.              Em suma, opino pela rejeição das preliminares.

11.              No mérito, mantenho harmonia e fidelidade aos pronunciamentos anteriores da egrégia Procuradoria-Geral de Justiça que examinando leis similares manifestou-se por sua incompatibilidade com os arts. 1.º, 152, inciso IV, e parágrafo único, 153, caput, e § 1.º, 154, caput, 205, caput, e inciso V, e 216, caput, e § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo:

                 Doutos Desembargadores, a controvérsia, no caso em apreço, resume-se ao seguinte: A Prefeitura Municipal de São Paulo quer assumir o controle dos serviços de distribuição de água e coleta de esgotos, mas o Estado de São Paulo resiste a essa pretensão, porquanto entende que, presente o interesse regional, é da sua exclusiva competência a execução desses serviços na Região Metropolitana de São Paulo.

                   A questão encerra dificuldades, apresentando divergência no campo doutrinário.

                   Com efeito, há quem entenda que os serviços de saneamento básico podem ser divididos em etapas ou parcelas (captação, adução, tratamento e distribuição por atacado de água para consumo). Quando estas etapas ou parcelas puderem receber provimento adequado por parte dos Municípios, como a distribuição domiciliar de água e a coleta domiciliar de esgoto, continuam de interesse local e sob o domínio municipal (Cf. ALAOR CAFFE ALVES, Saneamento Básico – Concessões, Permissões e Convênios Públicos, p. 202).

                   Do lado oposto, estão os que entendem que nas regiões metropolitanas não é possível a prestação isolada dos serviços de saneamento básico, relativamente a cada Município (Cf. LUIS ROBERTO BARROSO, Saneamento básico: competências constitucionais da União, Estados e Municípios, p. 265; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, ‘Comentários à Constituição brasileira’, Saraiva, São Paulo, 1986, pp.671/672; EROS GRAU, Regiões metropolitanas: regime jurídico. São Paulo: J. Bushatsky, 1974, pp.16/17), só podendo a sua titularidade ser atribuída ao Estado.

(...)

                   Com efeito, se cabe ao Estado, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, e avocar para si a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, na forma do permissivo do § 3.º do art. 25 da Constituição Federal, e art. 153, caput, da Constituição Paulista, não há que se falar em primazia do interesse local.

                   Em primoroso estudo sobre o tema, o jurista CAIO TACITO anotou que ‘a avocação estadual de matéria ordinariamente municipal não viola a autonomia do Município na medida em que se fundamenta em norma constitucional, ou seja, em norma de igual hierarquia.’, concluindo, em seguida, que ‘é a própria Constituição que, ao mesmo tempo, afirma e limita a autonomia municipal’. (Cf. ‘Saneamento Básico – Região Metropolitana, Competência Estadual’, in BDA - Boletim de Direito Administrativo – Junho de 2002, p. 454)

                   Assim, em se tratando de municípios limítrofes, uma vez que o Estado exerça a prerrogativa constitucional de constituir a região metropolitana, por meio de lei complementar, não vejo como possa ser recusada a sua competência exclusiva para a ‘organização, o planejamento e a execução dos serviços de saneamento básico’, não podendo ser invocada a autonomia municipal, que, nesses casos, cede ao interesse regional.

                   Demais disso, na conjuntura econômica atual, em que sobram problemas e faltam recursos, a iniciativa do Município de São Paulo de assumir etapas ou parcelas dos serviços de saneamento básico não parece estar afinada aos valores prestigiados pela Constituição em vigor, como a eficiência, a economicidade e o interesse público.

                   É bem de ver, por fim, que nada impede o Estado e o Município de unirem-se em torno de um objetivo comum, exigindo-se apenas para o sucesso dessa iniciativa a plena integração e o planejamento das ações, sob comando único, e não ações desconexas, que visem tão-somente à satisfação de interesses políticos subjacentes” (ADI 109.600.0/3-00 - sic).

12.              Referida ação foi julgada procedente, como resume a ementa do respectivo venerando acórdão:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n° 13.670/2003, do Município de São Paulo, que regulamentou os arts. 148 e 149, parágrafo único, da Lei Orgânica do Município de São Paulo, dispondo sobre os serviços públicos e abastecimento de água e de esgotamento sanitário, assim como instituindo o Sistema Municipal de Regulação dos Serviços Públicos de Abastecimento de Águas e de Esgotamento Sanitário e o Plano Municipal de Saneamento. Ainda que o Município de São Paulo possa legislar sobre saneamento básico, considerando que, no caso, existe um interesse regional, não desponta interesse local exclusivo do Município da Capital que justifique a edição da lei inquinada. Se são de vários municípios os interesses na existência de um sistema de saneamento básico, essencial para a saúde das populações da região metropolitana, não há restringir-se a competência tão somente ao Município de São Paulo para legislar sobre o tema, que se insere no contexto maior da entidade regional, coordenada pelo Estado. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º; 3º a 15; 21, inciso I, alínea ‘d’, inciso VII; 22, inciso I, alínea ‘d’ e inciso IV; 31 a 33; 35, inciso III; 38, parágrafo primeiro; 41 a 43; 44, parágrafos 1º, 2º, 3º, 5º, incisos III, IV e VI; 47, incisos I e II, parágrafos 1º e 2º; 50, incisos I e II; 51 a 53 e 55, da Lei n° 13.670/03” (TJSP, ADI 109.600.0/3-00, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, 20-04-2005, m.v.).

13.              Em outra oportunidade, reproduzindo a fundamentação acima exposta, foi mantido o entendimento da Procuradoria-Geral de Justiça acentuando que “ao examinar proposituras semelhantes, nas ADIs 139.229.0/4-00 e 109.600.0/3-00, o Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça acolheu as ponderações do Governador do Estado de São Paulo e reconheceu a competência estadual para operar os serviços de interesse regional” (ADI 0348562-21.2010.8.26.0000). Assim resume a ementa do respectivo venerando acórdão:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei do Município de Paulínia n° 2.922/2008 que avoca exclusiva titularidade e regulação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no município, pertencente à Região Metropolitana de Campinas - Rejeição da matéria preliminar - Invasão de competência - Serviço público de saneamento nas regiões metropolitanas que é de interesse comum dos municípios integrantes, de competência do Estado - Predomínio do interesse regional sobre o local - Violação dos arts. 1º, 152, IV e parágrafo único, 153, caput e § 1º, e 154, 216, § 2º, da CE - Procedência da ação, rejeitada a preliminar” (TJSP, ADI 0348562-21.2010.8.26.0000, Rel. Des. David Haddad, 14-09-2011, v.u.).

14.              Por derradeiro, trago à colação o entendimento da Suprema Corte:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Instituição de região metropolitana e competência para saneamento básico. Ação direta de inconstitucionalidade contra Lei Complementar n. 87/1997, Lei n. 2.869/1997 e Decreto n. 24.631/1998, todos do Estado do Rio de Janeiro, que instituem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e a Microrregião dos Lagos e transferem a titularidade do poder concedente para prestação de serviços públicos de interesse metropolitano ao Estado do Rio de Janeiro. 2. Preliminares de inépcia da inicial e prejuízo. Rejeitada a preliminar de inépcia da inicial e acolhido parcialmente o prejuízo em relação aos arts. 1º, caput e § 1º; 2º, caput; 4º, caput e incisos I a VII; 11, caput e incisos I a VI; e 12 da LC 87/1997/RJ, porquanto alterados substancialmente. 3. Autonomia municipal e integração metropolitana. A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988). A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo. O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999). O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais. 4. Aglomerações urbanas e saneamento básico. O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico. Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico. A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal. Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas. A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal. 5. Inconstitucionalidade da transferência ao estado-membro do poder concedente de funções e serviços públicos de interesse comum. O estabelecimento de região metropolitana não significa simples transferência de competências para o estado. O interesse comum é muito mais que a soma de cada interesse local envolvido, pois a má condução da função de saneamento básico por apenas um município pode colocar em risco todo o esforço do conjunto, além das consequências para a saúde pública de toda a região. O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios. Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘a ser submetido à Assembleia Legislativa’ constante do art. 5º, I; e do § 2º do art. 4º; do parágrafo único do art. 5º; dos incisos I, II, IV e V do art. 6º; do art. 7º; do art. 10; e do § 2º do art. 11 da Lei Complementar n. 87/1997 do Estado do Rio de Janeiro, bem como dos arts. 11 a 21 da Lei n. 2.869/1997 do Estado do Rio de Janeiro. 6. Modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Em razão da necessidade de continuidade da prestação da função de saneamento básico, há excepcional interesse social para vigência excepcional das leis impugnadas, nos termos do art. 27 da Lei n. 9868/1998, pelo prazo de 24 meses, a contar da data de conclusão do julgamento, lapso temporal razoável dentro do qual o legislador estadual deverá reapreciar o tema, constituindo modelo de prestação de saneamento básico nas áreas de integração metropolitana, dirigido por órgão colegiado com participação dos municípios pertinentes e do próprio Estado do Rio de Janeiro, sem que haja concentração do poder decisório nas mãos de qualquer ente” (STF, ADI 1.842-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, 06-03-2013, m.v., DJe 16-09-2013).

15.              Face ao exposto, opino pela rejeição das preliminares e pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 26 de março de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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