Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2065174-34.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.497, de 14 de abril de 2014, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar que Inclui na Zona 3, na Lei de Zoneamento, toda extensão da Avenida das Hortências, no Bairro Jardim Seixas.

2)      Impossibilidade de realização do controle concentrado de constitucionalidade adotando como parâmetros dispositivos da legislação federal ou da própria Lei Orgânica do Município. Precedentes do STF.

3)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

4)      Lei de iniciativa parlamentar que trata da ocupação e uso do solo (zoneamento). Não procede a alegação de que referida matéria encontra-se na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo e, por consequência, não violação ao princípio da separação de poderes. Precedentes

5)      A legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular, conforme dispõem os arts. 180, II, e 181, § 1º, da Constituição Estadual).

6)     Parecer pela procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 11.497, de 14 de abril de 2014, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar que Inclui na Zona 3, na Lei de Zoneamento, toda extensão da Avenida das Hortências, no Bairro Jardim Seixas.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes e por conter vício de iniciativa. Daí a afirmação da violação dos art. 5º da Constituição Estadual e o pedido de interpretação conforme a Constituição Estadual dos arts 8º, III, XIII e XIV e 30, XIII e XVII da Lei Orgânica Municipal.

A liminar foi deferida à fl. 20/21.

Citado regularmente (fl. 31), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 33/35).

Devidamente notificado (fl. 28), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 37/41.

Nestas condições abriu-se vista para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

É o relatório.

 

DA CAUSA DE PEDIR ABERTA

Inicialmente oportuno consignar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão, é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação a Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta possibilitando no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

 “(...)

 Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

 (...)”

 Confira-se, ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO

A Lei nº 11.497, de 14 de abril de 2014, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal após rejeição do veto do Prefeito Municipal, tem a seguinte redação:  

“Art. 1º - Inclui na Zona 3, na Lei de Zoneamento, toda extensão da Avenida das Hortências, no Bairro Jardim Seixas.

 Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, como passaremos a abordar.

É necessário observar, inicialmente, a impossibilidade, na ação direta de inconstitucionalidade estadual, de adoção de dispositivos da Constituição da República, da legislação federal, bem como da Lei Orgânica do Município, como parâmetros para o controle abstrato.

Foi por essa razão que na ADI 347/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 20/09/2006 (DJ 20/10/2006) foi declarada a inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo, que permitia a adoção de parâmetro constitucional federal no controle de constitucionalidade estadual. Eis a ementa do julgado:

“(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ART. 74, XI. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE LEI OU ATO NORMATIVO MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROCEDÊNCIA. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, antes e depois de 1988, no sentido de que não cabe a tribunais de justiça estaduais exercer o controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos municipais em face da Constituição federal. Precedentes. Inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido julgado procedente.

(...)”

Dessa forma, não comportam exame, nesta ação direta, a pretensão do autor de confrontar o ato normativo com a Lei Orgânica Municipal.

Reitere-se: a ação direta de inconstitucionalidade no plano estadual tem escopo limitado, e consiste, exclusivamente, em instrumento de verificação quanto à existência de compatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado.

Esse sistema decorre do art. 125, § 2º da Constituição da República, pelo qual “cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (...)” (g.n.).

Portanto, declarar a inconstitucionalidade da lei municipal utilizando como parâmetro de controle dispositivo da Constituição Federal ou mesmo da legislação infraconstitucional significaria contrariar o art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

Ademais, no mérito a ação deve ser julgada procedente.

DA INCONSTITUCIONALIDADE

          Inicialmente, cumpre registrar que ao contrário do que aduzido na petição inicial a lei de iniciativa parlamentar que trata da ocupação e uso do solo (zoneamento) não se encontra na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.

         Com efeito, trata-se de matéria, cuja a iniciativa é comum ou concorrente, conforme se colhe do seguinte julgado da Suprema Corte:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe de Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

E este egrégio Tribunal de Justiça julgou que:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 11.290, de 3 de janeiro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que permitiu a ampliação do potencial construtivo de imóveis localizados em pequena e específica região urbana ali definida – Inocorrência de vício de iniciativa do projeto de lei deflagrado pelo Legislativo Municipal, haja vista que a norma editada não regula matéria estritamente administrativa, afeta ao Chefe do Poder Executivo, delimitada pelos artigos 24, § 2º, 47, incisos XVII e XVIII, 166 e 174 da CE, aplicáveis ao ente municipal, por expressa imposição da norma contida no artigo 144 daquela mesma Carta – Previsão legal que apenas tratou de tema pertinente ao uso e ocupação do solo urbano, inserido, portanto, na competência legislativa comum dos poderes Legislativo e Executivo, razão pela qual poderia mesmo decorrer de proposta parlamentar – Exame do vício alegado em relação ao ato normativo impugnado que, no entanto, pode e deve ser realizado pelo órgão julgador sob outros fundamentos que não aqueles expendidos pelo autor, por vigorar na ação direta o princípio da causa aberta – Precedentes do STF – Legislação local questionada que deu tratamento individual e casuístico ao local que específica, sem tomar em consideração o regramento de uso e ocupação do solo municipal em sua integralidade e os efeitos sobre o desenvolvimento urbano e o meio ambiente, desconsiderando os preceitos constitucionais que impõe tais providências – Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte, ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos arts. 180, I, III, IV e V, 181, caput e § 1º, 183, parágrafo único, e 191, da Constituição do Estado de São Paulo – Ação Direta de inconstitucionalidade julgada procedente”. (TJ/SP, ADIN 0125155-62.2013.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Paulo Dimas Mascaretti, 26-03-2014, v.u.).

Portanto, não merece abono a arguição de ofensa ao art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, adicionando que a matéria depende de lei e como a iniciativa legislativa reservada é excepcional demanda expressa previsão constitucional, não se presumindo.

Todavia, a ação é procedente por outros fundamentos.

A Constituição do Estado de São Paulo tem as seguintes disposições que se aplicam ao caso em exame:

“Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;” (g.n.)

(...)

“Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal.” (g.n.)

Nos termos dos art.180, II e 181 § 1º da Constituição Estadual, pode-se extrair que planejamento é indispensável à validade e legitimidade constitucional da legislação relacionada o uso do solo.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.) deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico, razão pela qual a exigência de planejamento e estudos técnicos.

O art.182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art.30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

A norma urbanística é, por sua natureza uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Previsto e exigido pela Constituição (Art. 48, IV, 182 CF e art.180, II da CE), tornou imposição jurídica a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.497, de 14 de abril de 2014, do Município de São José do Rio Preto.

 

              São Paulo, 26 de junho de 2014.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico – em exercício

 

 

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