Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº: 2020178-48.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guaíra

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guaíra

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Decreto legislativo nº 107, de 05 de fevereiro de 2014, do município de Guaíra, que sustou o Decreto Municipal nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013. Aumento da tarifa de água e esgoto. Preço Público que deve ser fixado por ato do poder executivo. Não constatação de exorbitância do poder regulamentar. Violação ao princípio da separação dos poderes. Procedência da ação. 1. Ação direta de inconstitucionalidade.  Decreto Legislativo Municipal de nº 107, de 05 de fevereiro de 2014, do Município de Guaíra, que “Susta o Decreto Municipal nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013, do Município de Guaíra”. Decreto Legislativo que não encontra guarida no art. 20, IX, da Constituição do Estado de São Paulo, pois ausente o exercício exorbitante do poder regulamentar pelo Executivo Municipal. Violação do princípio da separação dos poderes. Inconstitucionalidade reconhecida (arts. 5º, 20, IX, 47, II, XIV e XIX, a, 120, 144 e 159 da Constituição Estadual).  Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guaíra, tendo por objeto o Decreto Legislativo Municipal nº 107, de 05 de fevereiro de 2014, do Município de Guaíra, que “Susta o Decreto Municipal nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013, que dispõe sobre reajuste de tarifas de água e esgoto para o exercício de 2014” (Fls. 1/18).

Sustenta o autor que o Decreto Legislativo nº 107, de 05 de fevereiro de 2014, do Município de Guaíra, padece forçosamente de vício formal de inconstitucionalidade, em razão do vício de iniciativa e violação à separação dos poderes.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 358/375), em defesa da constitucionalidade da norma.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 435/436).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O pedido é improcedente.

O Decreto Legislativo nº 107, de 05 de fevereiro de 2014 dispõe:

Artigo 1º - Fica sustado, com base no art. 13, inciso XVII da Lei Orgânica do Município de Guaíra, o Decreto Municipal nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013, publicado no Diário Oficial do Município, que dispõe sobre reajuste de tarifas de água e esgoto praticadas pelo Departamento de Água de Esgoto do Município de Guaíra – DEAGUA – para o exercício de 2014.

Parágrafo Único: Tal medida se justifica em face do ato sustado extrapolar o poder regulamentar concedido ao Prefeito Municipal, já que o fundamento para tal majoração seria a situação deficitária que se encontra o Departamento de Água e Esgoto do Município de Guaíra (DEAGUA), sendo que seu balancete de dezembro de 2013 apresenta um superávit financeiro neste referido exercício, inexistindo fundamentação técnica ou jurídica para esse aumento. Ademais várias contas apresentaram várias faixas de aumento, variando de 38% a 60%, demonstrando que algumas faixas de consumo foram beneficiadas e outras não, inexistindo qualquer critério social (muitas vezes quem consome mais teve menor aumento de quem consome menos).

Artigo 2º - Fica sem qualquer efeito jurídico ou legal o decreto sustado no artigo anterior, desde sua publicação, aplicando-se o efeito da represtinação ao conteúdo integral do Decreto nº 4.119, de 18 de dezembro de 2012.

Artigo 3º - Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.”

Por sua vez, o Decreto nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013, em um total de 83 artigos, não só estabeleceu o valor da tarifa de água e esgoto, como também “Estabelece o regulamento para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, de instalações hidráulicas prediais, de infra-estrutura urbana e dá outras providências”.

O Decreto Legislativo nº 107/14 violou os seguintes dispositivos da Constituição Estadual:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

“Art. 20 - Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa:

(...)
IX - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar;

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Art. 120 - Os serviços públicos serão remunerados por tarifa previamente fixada pelo órgão executivo competente, na forma que a lei estabelecer.

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 159 - A receita pública será constituída por tributos, preços e outros ingressos.

Parágrafo único - Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie.”

 

A competência da Câmara Municipal encontra parâmetro no texto da Carta Paulista, para edição de diploma dessa natureza, pois, nos termos do art. 20, inciso IX, da Constituição do Estado de São Paulo, compete exclusivamente à Assembleia Legislativa sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.

Portanto, é de exclusiva atribuição da Câmara Municipal sustar atos do Executivo que extrapolem a competência deste, concretizado por meio de decreto legislativo, que “...é a deliberação do plenário sobre matéria de sua exclusiva competência e apreciação político-administrativa, promulgada pelo presidente da Mesa, para operar seus principais efeitos fora da Câmara. (...) O decreto legislativo não é lei, nem ato simplesmente administrativo; é deliberação legislativa de natureza político-administrativa de efeitos externos e impositivos para seus destinatários. Não é lei porque lhe faltam a normatividade e generalidade da deliberação do Legislativo sancionada pelo Executivo; não é ato simplesmente administrativo  porque provém de uma apreciação política e soberana do plenário na aprovação da respectiva proposição.  Daí por que só deve ser utilizado para consubstanciar as deliberações do  plenário sobre assuntos  de interesse geral do Município mas dependentes do pronunciamento político do Legislativo, ainda que sobre matéria de administração do Executivo, ou concernente a seus dirigentes.[1]

Impende, ainda, esclarecer que os regulamentos são comumente classificados em regulamentos jurídicos e regulamentos normativos. Os primeiros referem-se às relações de supremacia geral (unem a Administração Estado a qualquer cidadão, todo cidadão está sujeito ao poder de polícia, matéria tributária, etc.), enquanto os segundos, ou são de caráter orgânico, ou se referem aos administrados, dizem com relações de supremacia especial (relação com uma 'classe' de administrados, muito mais intensa que os anteriores; p. ex. os sujeitos à prestação de serviço militar, os que estão internados em hospital público, a prestação de trabalho por funcionário público, etc.). Entende-se que o poder regulamentar somente existe em âmbito interno da Administração, e que somente derivadamente se alastra a quem está sem situação de sujeição especial.

Há também - e nos interessam de perto - os regulamentos executivos, que são aqueles que explicitam o que vem exposto nas leis, sempre que estas tragam simplesmente princípios básicos e genéricos. O tecnicismo atual impede que as câmaras legislativas possam editar leis que cheguem aos detalhes, campo, pois, próprio destes regulamentos. Quanto aos regulamentos independentes, que existem sem lei anterior, somente se pode admitir na matéria organizativa e, quando muito, nas questões de sujeição especial, desde que não firam direitos individuais dos interessados (Carl Brent Swisher – The Post-war Constitution – in Gaspar G. Bacon – Lectures on the Constitution of the United States – 1953 – p.317).

Por outro lado, o controle de legalidade da Administração - diz Bachof - significa um controle, ao mesmo tempo, de constitucionalidade da Administração. Isso quer dizer que também se controla a Administração no que concerne aos valores constitucionais. Sobre não bastar um controle de constitucionalidade das leis, no caso, a Administração também se vê diretamente confrontada pela Constituição sem poder escudar-se na lei ordinária nessa ampla zona em que é abandonada às suas próprias decisões – sob a denominação de discricionariedade e complementação de conceitos indeterminados. De nada adianta o administrador afirmar que a liberdade foi-lhe atribuída pela lei, quando o juiz poderá objetar que, ainda que tenha ficado nos limites da lei, não observou os preceitos constitucionais limitadores de todo o arbítrio (Otto Bachof, Jueces y constitución, p.42).

Mas claro que há limites ao poder regulamentar da Administração (Executivo).  O primeiro dos limites - formal - é a competência de quem edita o regulamento. Outro limite formal, importantíssimo, é o respeito à hierarquia normativa. O ordenamento jurídico é hierarquizado sendo que a Constituição encontra-se em seu ápice. Obviamente, deve o regulamento estar de acordo com as normas superiores: Constituição e lei.

No caso, temos regulamento (decreto regulamentar) expedido para a 'fiel observância das leis', ou seja, regulamento executivo. A doutrina pátria, em sua maioria, rejeita a existência de outro tipo de regulamento em nosso ordenamento. Assim, os regulamentos executivos devem seguir fielmente o ato legislativo que explicitam, estando presos ao texto legal inarredavelmente. Serão ilegais se extravasarem ou contrariarem o ato legislativo.

Como lembra VICENTE RÁO: 'Ao exercer a função de regulamentar, não deve pois, o Executivo criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações constantes da lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena  ou não proíbe, facultar ou vedar de modo diverso do estabelecido em lei, extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu, criar princípios novos, diversos, alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir um ato, atingir, atingindo por qualquer modo, o espírito da lei’(‘O Direito e a Vida dos Direitos’, v. 1, RT, 3ª edição, p.273).

A lição do ilustre jurista pátrio é consentânea com a de MARCELLO CAETANO, para quem '...em sentido material o regulamento tem afinidades com a lei, em virtude de sua generalidade, pois os regulamentos possuem sempre caráter genérico. Mas distingue-se dela por faltar novidade, visto suas normas serem, pelo que toca a limitação de direitos individuais, simples desenvolvimento ou aplicação de outras normas, essas inovadoras' (Manual de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, vol.1, p.97, 1990).

Outra não é a lição de CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.809 e ss, Almedina, 4ª ed.), verbis: "...para restringir o amplo grau de liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um Estado de direito democrático, a CRP utilizou três instrumentos:

(l) a reserva de lei (= reserva constitucional de lei = reserva horizontal de lei = reserva formal de lei) através da qual a Constituição reserva à lei a regulamentação de certas matérias;

(2) congelamento do grau hierárquico, dado que, de acordo com este princípio, regulada por lei uma determinada matéria, o grau hierárquico da mesma fica congelado e só uma outra lei poderá incidir sobre o mesmo objecto (cfr. art. 112.°/6);

(3) precedência da lei ou  primariedade da   lei (= reserva vertical de lei), pois não existe exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei prévia anterior (art. 112.°/8)'

Ademais, como decorrência, prossegue o autor lusitano lembrando o '...princípio da complementaridade ou acessoriedade dos regulamentos. O regulamento é sempre um acto normativo da administração sujeito a lei, complementar da lei. O sentido da complementaridade dos regulamentos não é o de a CRP (cfr. art. 199) legitimar apenas os regulamentos de execução (regulamentos necessários para as leis serem convenientemente executadas e que a administração deve editar por iniciativa própria). Abrangem-se também os regulamentos complementares (...) Ademais, existe também no ordenamento o princípio do congelamento do grau hierárquico. Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau jurídico desta regulamentação fica congelado, e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir.'

KONRAD HESSE de modo escorreito ('Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha', Sergio Antonio Fabris ed., p. 386, 1998, Porto Alegre), tem lição idêntica: "O conhecimento da função da legislação no quadro da ordem democrática e estatal-jurídica da Lei Fundamental deixa, mesmo tempo, aparecer mais claramente as bases e o significado dos institutos da primazia e da reserva da lei. A lei tem, segundo o artigo 20 da Lei Fundamental, primazia sobre todos os atos estatais restantes, porque ela se realizou sobre a base da legitimação democrática direta e em formas democráticas de formação de vontade política e porque sua primazia é pressuposto de seu efeito racionalizador assegurador da liberdade. A reserva (geral) da lei é uma reserva da decisão de questões fundamentais acessíveis a uma normalização no procedimento legislativo pelo legislador."

Não por acaso, PAOLO BARILE chama os regulamentos de normação sub-primária, sendo a lei a norma primária por excelência ('Istituzioni Di Diritto Pubblico', p. 402, 1998, 8.ª ed., CEDAM). E classifica de 'maior' o indirizzo político advindo da lei e de 'menor' o indirizzo político advindo da função administrativa.

Depreende-se, assim, que, em princípio, a intervenção do Legislativo no ato do Executivo se mostra possível, desde que o ato regulamentar sustado, por se mostrar exorbitante, sujeitava-se à suspensão ditada pelo Legislativo, e se este também não extrapolou na providência tomada.

O Decreto nº 4.327, de 31 de dezembro de 2013, sustado pelo ato normativo ora impugnado, regulamentou tanto a Lei Municipal nº 2.640/13, a qual reestruturou o DEAGUA no Município de Guaíra, quanto a Lei Municipal nº 2643/13, que, por sua vez, estabeleceu diretrizes municipais para o saneamento básico.

O art. 6º da Lei Municipal nº 2.640/13 dispõe:

“Artigo 6º - A classificação e regulamentação dos serviços de água e esgoto, as tarifas respectivas e as condições para sua concessão serão estabelecidas por meio de Decreto do Executivo Municipal.
Parágrafo único – As tarifas serão cobradas a partir do custo do metro cúbico (m3) de produção e abastecimento de água, calculadas de modo a assegurar em conjunto com outras rendas, auto-suficiência econômica-financeira do DEAGUA.”

O artigo 6º, parágrafo único, da Lei 2.640/13, confere ao Executivo Municipal, portanto, o poder regulamentar, no tocante à fixação da tarifa de água e esgoto.

No caso em tela, o regulamento sustado não extravasa os ditames legais, posto que pretende regulamentar lei municipal que lhe deferiu tal encargo.

A invocada ausência de situação deficitária a justificar o aumento da tarifa de água e esgoto, bem como suposta inexistência de critério social, utilizados como fundamento pela Câmara Municipal para sustar o Decreto n. 4327/13, não se mostram suficientes para aquilatar a exorbitância do poder regulamentar do Executivo Municipal.

Ora, exorbitante é aquilo que é descomedido, exagerado ou exacerbado, exigindo, portanto, clara situação de abuso do poder regulamentar, hipótese esta que não se mostra claramente evidenciada no ato normativo impugnado.

O art. 6º da Lei 2.640/13 confere ao Executivo Municipal a tarefa de estabelecer a tarifa, de forma a manter a auto-suficiência econômica e financeira do DEAGUA.

Cumpre ao Executivo originariamente, portanto, estabelecer a tarifa de água e esgoto, com base nos parâmetros acima indicados, bem como de acordo com a necessidade de investimentos para a melhora na prestação do serviço público.

Neste contexto, mostra-se superficial o fundamento de que teria havido superávit do balancete do DEAGUA, para se concluir pelo abuso do poder regulamentar no tocante ao aumento da tarifa.

Trata-se, portanto, de situação liminar e nebulosa, na qual, não delineada clara hipótese de exorbitância do poder regulamentar, deve prevalecer a competência do Poder Executivo Municipal para normatização e direção da administração municipal, sob pena violação ao princípio da separação dos poderes e, também, do disposto no artigo 159 da Constituição Paulista.

  Assim, o Decreto Legislativo nº 107/14 ofende os artigos arts. 5º, 20, IX, 47, II e XIX, a, 120, 144 e 159 da Constituição Estadual, devendo ser reconhecida a procedência do pedido.

Opino, pois, pela procedência do pedido.

São Paulo, 08 de maio de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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[1] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 6ª edição, Malheiros Editores, pág.482