Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2002688-13.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei n. 11.412, de 03 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto. Lei de iniciativa parlamentar impondo a participação de intérprete da Língua Brasileira de Sinais (libras) em todos os eventos públicos realizados no âmbito municipal. Parametricidade no controle de constitucionalidade de norma municipal. Inexistência de reserva de iniciativa. Separação de Poderes. Reserva da Administração. Invasão da competência legislativa. Princípio Federativo. Procedência da ação. 1. O contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, CF/88), razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município. 2. Lei de iniciativa parlamentar que não disciplina matéria prevista no artigo 24, § 2°, da CE. 3. Encontra-se na reserva da administração a imposição de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) em eventos públicos oficiais realizados no Município, havendo no caso violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 1; 47, II e XIV; e 144 da Constituição do Estado). 4. A ausência de previsão na lei de fonte de custeio para cobertura de novos gastos públicos ofende o texto constitucional (arts. 25 e 176, I, CE). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como alvo a Lei Municipal nº 11.412, de 03 de dezembro de 2013, que torna obrigatória a presença de interprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) em todos os eventos públicos oficiais realizados na Municipalidade.

Na exordial, o requerente alega a existência de vícios formal e material da lei vergastada, utilizando-se como parâmetro de controle dispositivos da Lei Orgânica do Município (fls. 1/7).

Inicialmente, fora indeferido monocraticamente o pedido liminar (fls. 53). Todavia, após a interposição de agravo regimental em face da aludida decisão o E. Tribunal de Justiça, em decisão colegiada, alterou seu entendimento, concedendo a liminar pleiteada pelo Prefeito do Município.

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 64/66). A Câmara Municipal manifestou-se a fls. 68/75.

É o relato do essencial.

De início, importante consignar que o contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF/88), sendo inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica Municipal.

Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional não merece cognição, haja vista ser “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

Superadas as considerações iniciais, posiciona-se pela procedência da ação.

A Lei Municipal nº 11.412, de 03 de dezembro de 2013, tem a seguinte redação:

“Art. 1° - Todos os eventos públicos oficiais realizados no Município de São Jose do Rio Preto e Distritos deverão contar com a participação de um intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), reconhecida pela Lei no 10.436/2002.

Art. 2° - O objetivo da presente Lei é oferecermos mecanismos que garantam a ampliação da inclusão das pessoas com deficiência auditiva e/ou surdas.

Art. 3° - O Poder Executivo regulamentara a presente Lei, no que couber, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da data de sua entrada em vigor.

Art. 4° - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias.

Art. 5° - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Preliminarmente, não se visualiza vício de iniciativa na matéria posta a lume, tal qual argumentado pelo requerente.

Em regra, a iniciativa de diplomas normativos pertencente ao Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente, na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, confira-se o entendimento da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE/89), a Carta Bandeirante insculpiu em seu art. 24, § 2º, a iniciativa legislativa reservada do Chefe do Executivo (aplicável na órbita municipal por força do art. 144). No entanto, da análise do objeto desta ação direta, não se verifica nesse preceito a reserva de iniciativa legislativa, não podendo se patrocinar tese nesse sentido.

Pois bem.

No que tange à alegação de inconstitucionalidade material em razão da criação ou aumento de despesa sem a respectiva indicação de recursos disponíveis para tanto, prevista no art. 25 da CE/89, em com desdobramentos no art. 176, I, do mesmo diploma, em que pese o requerente ter suscitado indevidamente tal inconstitucionalidade à luz do art. 132 da Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto, é notória a aplicação do conceito de causa petendi aberta ao contencioso objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo (RTJ 200/91) que torna possível o contraste da norma contestada com outros preceitos da Constituição Estadual, ainda que não suscitados na petição inicial.

Assim, ao estabelecer a obrigatoriedade de intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) em todos os eventos públicos da municipalidade sem indicar a respectiva dotação orçamentária a custear tal despesa, a Lei Municipal nº 11.412/13 ofendeu os arts. 25 e 176, I, da Carta Paulista:

“Artigo 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Parágrafo único - O disposto neste artigo não se aplica a créditos extraordinários.

(...)

Artigo 176 - São vedados:

I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;”

Ademais, além da ofensa supramencionada, a lei vergastada, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144. In verbis:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabem privativamente ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

Em se tratando de imposição de intérprete da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) em todos os eventos da municipalidade, resta patente que tal matéria é de natureza relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo, não podendo a Câmara Municipal, ainda que por instrumento legislativo, interferir nesta seara de atuação, porquanto trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais, de competência privativa do Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, invade, de forma indevida, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes (art. 5, caput, CE/89).

De acordo com balizada doutrina, a qual serve de esteio ao entendimento sedimentado na jurisprudência, ao Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, prima facie, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Nesse contexto, imperioso rememorar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

No esteio das considerações tecidas, colaciona-se entendimento assentado na jurisprudência pátria:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Ante os fundamentos esposados, há, outrossim, manifesta incompatibilidade vertical da lei em epígrafe com os artigos 5º e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

Face ao exposto, opino pela procedência da ação em razão da incompatibilidade da Lei nº 11.412, de 03 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto com os artigos 5º, 25, 47, II e XIV, 144 e 176, I, todos da Constituição Estadual.

 

São Paulo, 01 de agosto de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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