PARECER
EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Processo
nº: 2003084-87.2014.8.26.0000
Requerente: Mesa da Câmara Municipal de Cerquilho
Requerido: Prefeito do Município de Cerquilho
Ementa:
1) Ação
Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 2.198/1999, de Cerquilho,
que instituiu novos mecanismos de controle e fiscalização de atos do Executivo.
A função de controle e fiscalização da Câmara deve ser exercida nos estritos
limites fixados pela Constituição. Necessidade de manter a simetria com o modelo
federal.
2) Violação do princípio da independência e
harmonia entre os Poderes. Precedentes do TJSP.
3) Parecer
pela procedência da ação.
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator,
Colendo Órgão
Especial:
Trata-se de ação
direta de inconstitucionalidade proposta pela Mesa Diretora da Câmara Municipal
de Cerquilho em face da Lei n. 2.198, de 12 de maio de 1999, do Município de
Cerquilho, que “Dispõe sobre a apresentação de cópias dos editais de licitações
de todas as modalidades expedidos pelos órgãos da administração direta e
indireta e dá outras providências”.
Alega a autora que
referida legislação padece de inconstitucionalidade por violar o princípio da
separação dos poderes, eis que de autoria parlamentar.
Aponta como violados
os arts. 5º, 8º e 10 da Constituição Estadual; os arts. 2º e 70 a 75 da
Constituição Federal; a Lei Federal n. 12.527/2011 e a Lei Orgânica do
Município de Cerquilho.
O pedido de medida liminar foi deferido à fl. 18.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 24/25).
Apesar de devidamente notificado, o Prefeito do Município de Cerquilho deixou de prestar informações (fl. 31).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A presente ação é procedente.
Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal, de Lei Federal e da Constituição Federal.
Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com da Constituição Estadual.
Com efeito, a Lei n.
2.198, de 12 de maio de 1999, do Município de Cerquilho, apresenta a seguinte
redação:
“Art. 1º - Fica o Executivo obrigado a
encaminhar à Câmara Municipal de Cerquilho, para conhecimento dos interessados,
cópias dos editais de licitações de todas as modalidades expedidos pelos órgãos
da administração direta e indireta, de todas as propostas apresentadas e dos
contratos assinados dentro das mesmas licitações, bem como da relação de
compras diretas de que trata o art. 16 da Lei n. 8666, de 21 de junho de 1993,
atualizada pela Lei n. 8.883, de 08 de junho de 1994.
Parágrafo Único- A obrigação constante deste
artigo deve ser cumprida da seguinte forma:
I- Editais: 15 dias após a assinatura dos
mesmos;
II- Propostas: até 15 dias após a homologação
das respectivas licitações;
III- Contratos: até 15 dias após a assinatura
dos mesmos pelas partes;
IV- Relação de compras diretas até o décimo
dia útil do mês subsequente.
Art. 2º - As despesas decorrentes com a
aplicação da presente lei correrão por conta de dotações orçamentárias
próprias.
Art. 3º - Esta lei entrará em vigor na data
de sua publicação revogadas as disposições em contrário”.
A par de
sua função normativa, a Câmara desempenha outras relevantes funções, dentre as
quais a função de controle e fiscalização dos atos do Executivo, que
possui caráter político-administrativo.
Basicamente, tal
poder vem expresso nos arts. 29, inciso XI; 49, V, IX e X; 50, §§ 1.º e 2.º;
51, inciso II, 58, § 3.º e 70 a 75 da Constituição da República, os quais foram
reproduzidos nos arts. 13, § 1.º, 2, 3, 5, 8 e 10, § 2.º, 20, incisos VI, IX,
X, XIV, XVI e XXVI, 32 a 35 da Carta Política Estadual.
Acerca desse tema,
HELY LOPES MEIRELLES leciona que:
“A
função de controle e fiscalização da Câmara Municipal mereceu do Constituinte
de 1988 destaque idêntico ao da função legislativa, na medida em que o art. 29,
XI, da Constituição Federal as coloca dentre os preceitos obrigatórios a serem
observados na elaboração das leis orgânicas municipais.
Há de se destacar,
aqui, o poder de ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do
poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa’, previsto
expressamente na Constituição da República como uma das competências exclusivas
do Congresso Nacional (art. 49, V), ressaltando a grande ênfase
que o Constituinte de 1988 deu ao Poder Legislativo.
A função de controle e fiscalização da Câmara
sobre a conduta do Executivo tem caráter político-administrativo e se expressa
em decretos legislativos e resoluções do plenário, alcançando unicamente os
atos e agentes que a Constituição da República, em seus arts. 70 e 71, por
simetria, e a lei orgânica municipal, de forma expressa, submetem à sua
apreciação, fiscalização e julgamento. No nosso regime municipal, o controle político-administrativo
da Câmara compreende a fiscalização contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial, através do julgamento das contas do prefeito e de
suas infrações político-administrativas sancionadas com a cassação do mandato.
(...)
Exerce, ainda, a
Câmara o controle legislativo de determinados atos ou contratos do Executivo,
através de autorização prévia ou aprovação posterior, mas somente nos casos e
limites expressos na lei orgânica do Município.
Na autorizada
lição de Andreozzi, ‘a faculdade de fiscalização e controle das Câmaras sobre
os atos do Executivo não é uma faculdade interior ou adjacente à de editar
leis; pelo contrário, é fundamental e necessária para a própria elaboração das
leis, a fim de que o Legislativo conheça como funcionam os outros órgãos,
sobretudo o Executivo, em relação ao qual exerce amplo controle’. E remata o
mesmo constitucionalista argentino: ‘Não se pode dizer que estas funções
essenciais, que são consequência da natureza mesma das Câmaras Legislativas, sejam
faculdades incidentais e acessórias. A nosso juízo, são faculdades
fundamentais, transcendentais, de amplíssima projeção’.
No mesmo sentido, expõe Beckert que, ‘nos
regimes democráticos, o povo delega poderes, não só de legislação, mas e
sobretudo de fiscalização, a seus mandatários nas Câmaras, para que assegurem
um governo probo e eficiente.
Tal conceito se aproxima do de Galloway, ao
sustentar que ‘o controle do Executivo pelo Legislativo se desenvolve com três
finalidades: ajudar a legislação, supervisionar a Administração e informar a
opinião pública sobre o cumprimento da lei’.
Essa função fiscalizadora da Câmara pode ser
exercida individualmente por seus membros, por comissão permanente designada
para esse fim (nos moldes da comissão mista prevista nos arts. 166, § 1.º, e 72
da CF) ou por comissões especiais de investigação, que levarão à consideração
do plenário o que souberem ou o que apurarem sobre a atuação
político-administrativa do prefeito, como chefe do Executivo municipal, para
que se lhe aplique a sanção correspondente, na forma e nos casos previstos na
lei orgânica municipal.
Observe-se que essa função fiscalizadora foi
significativamente ampliada pelo Constituinte de 1988, quando dela cuidou em
relação ao Congresso Nacional, pois, agora, além do aspecto da legalidade,
deverão também ser examinados os aspectos da legitimidade, da economicidade, da
aplicação das subvenções e renúncia de receitas (cf. art. 70 da CF).
Podemos sustentar,
em face dos meios constitucionais postos à disposição dos administrados e
notadamente do disposto no art. 31, § 3.º, da CF, que a fiscalização da conduta
dos governantes, que antes era um privilégio do Poder Legislativo, na
atualidade se estendeu ao próprio cidadão, e em especial ao contribuinte, que
hoje em dia tem um direito subjetivo ao governo honesto. A moralidade pública e
a probidade administrativa dos agentes do poder são um direito do povo, daí a
razão por que o controle da legalidade da Administração foi ampliado até o mais
simples cidadão (CF, art. 5.º, LXXIII). Mas nem por isso descabe à Câmara
fiscalizar, controlar e reprimir os atos do Executivo, na medida e pela forma
que a Constituição da República e a lei orgânica do Município lhe asseguram.
Tratando-se de um controle político, só alcança os agentes políticos, e não os
servidores, sujeitos ao controle hierárquico do Executivo.” (Cf. ‘Direito Municipal Brasileiro’,
Malheiros, São Paulo, 8.ª edição, 1996, atualizada por Izabel Camargo Lopes
Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro e Célia Marisa Prendes, PP. 431/433).
No caso em análise, verifica-se que a Lei Municipal n.º 2.198, de 12
de maio de 1999, de Cerquilho, instituiu outros mecanismos de controle e
fiscalização dos atos do Prefeito, pelo Poder Legislativo, os quais, porém, não
guardam simetria com o arquétipo esboçado na vigente Constituição.
De fato, a Constituição em vigor não contemplou a necessidade de encaminhamento
quinzenal por parte do Poder Executivo ao Poder Legislativo, de cópias dos
editais de licitações de todas as modalidades expedidos pelos órgãos da
administração direta e indireta, de todas as propostas e dos contratos
assinados dentro das mesmas licitações, bem como da relação de compras diretas
até o décimo dia útil do mês subsequente.
Assim, ao editar
essa lei, o legislador local olvidou-se de que a função de controle e
fiscalização da Câmara deve ser exercida nos limites estritamente definidos
pela Constituição, ante sua implicação direta com a independência e harmonia
entre os Poderes, e, portanto, é-lhe vedado ampliar os mecanismos de controle e
fiscalização dos atos do Executivo, tal como ocorreu no presente caso, em que
se afigura patente a violação do referido princípio.
Ao examinar
proposituras semelhantes, o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça
assentou que:
“Ementa: Constitucional - Ação direta de
inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 1.332, de 10 de setembro de 2009, do
Município de Serrana, de iniciativa e editada pelo Poder Legislativo local,
depois de veto - Comando a determinar a remessa obrigatória à Câmara de
Vereadores de relação e relatórios acerca de todas as compras, obras e serviços
contratados pela Municipalidade, fixando prazos para o cumprimento de tais
providências,
inclusive - Ingerência do Legislativo na
Administração local - Maltrato ao principio da independência dos Poderes -
Ofensa aos arts. 5o "caput; 37; 47, II e XIV; 111 e 144 da Constituição do
Estado - Precedentes – Inconstitucionalidade declarada.” (ADI n.º 994.09.230430-0, Rel. Des. IVAN
SARTORI, j. em 7/4/2010, v.u.)
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Artigo 61,
incisos X, 2.ª parte, XI, XIII e XVI, da Lei Orgânica do Município de
Pirapozinho (Lei n.º 1.942, de 30 de março de 1990), dispositivo esse que
determina o envio pelo Executivo, até o dia 20 do mês subsequente, de
balancetes de receitas e despesas da Prefeitura Municipal, com seus respectivos
documentos comprobatórios, incluindo cópias daqueles empenhados e não
pagos no decorrer de cada mês, além da remessa mensal à Câmara Municipal de
cópias reprográficas de contratos, recibos, bem como de relatórios dos gastos
de todos os órgãos vinculados à Administração direta e indireta, e qualquer
entidade filantrópica ou assistencial que receba verba ou auxílio público,
devendo comunicar à Câmara Municipal, no prazo máximo de 48 horas, o
recebimento de qualquer auxilio ou verba recebida do
Estado ou da União, encaminhando, até o décimo dia
útil, relação de licitações realizadas no mês anterior, acompanhada de cópias
autênticas dos processos licitatórios, de forma integral, constando empresas
participantes, atas elaboradas pela Comissão de Licitação, bem como todos os
procedimentos pertinentes a cada processo. Norma que implica em indevida
ingerência do Legislativo na Administração local e custos para a administração,
não previstos no dispositivo questionado. Inadmissibilidade. Ofensa ao
principio constitucional da separação e independência de poderes. Violação dos
artigos 5.º, "caput", 25, 37, 47, II e XIV, 111 e 144, todos
da Constituição do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade da lei impugnada.”
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Artigo 61,
incisos X, 2.ª parte, XI, XIII e XVI, da Lei Orgânica do Município de
Pirapozinho (Lei n.º 1.942, de 30 de março de 1990), dispositivo esse que
determina o envio pelo Executivo, até o dia 20 do mês subsequente, de
balancetes de receitas e despesas da Prefeitura Municipal, com seus respectivos
documentos comprobatórios, incluindo cópias daqueles empenhados e não
pagos no decorrer de cada mês, além da remessa mensal à Câmara Municipal de
cópias reprográficas de contratos, recibos, bem como de relatórios dos gastos
de todos os órgãos vinculados à Administração direta e indireta, e qualquer
entidade filantrópica ou assistencial que receba verba ou auxílio público,
devendo comunicar à Câmara Municipal, no prazo máximo de 48 horas, o
recebimento de qualquer auxilio ou verba recebida do Estado ou da União,
encaminhando, até o décimo dia útil, relação de licitações realizadas no mês
anterior, acompanhada de cópias autênticas dos processos licitatórios, de forma
integral, constando empresas participantes, atas elaboradas pela Comissão
de Licitação, bem como todos os
procedimentos pertinentes a cada processo. Norma que implica em indevida
ingerência do Legislativo na Administração local e custos para a administração,
não previstos no dispositivo questionado. Inadmissibilidade. Ofensa ao
principio constitucional da separação e independência de poderes. Violação dos
artigos 5.º, "caput", 25, 37, 47, II e XIV, 111 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo. Ação
julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei impugnada.” (ADI
n.º 994.09.224086-5, Rel. Des. MÁRIO DEVIENNE FERRAZ, j. em 17/3/2010, v.u.)
Conclui-se, assim, à
vista da argumentação desenvolvida e dos precedentes jurisprudenciais trazidos
à colação, que, ao instituir mecanismos de controle e fiscalização de atos do
Poder Executivo diversos daqueles já existentes, em desacordo com o modelo
constitucionalmente estabelecido, a Lei n.º 2.198/99, de autoria parlamentar,
contrariou o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, que vem
expressamente consagrado no art. 5º da Carta Política Estadual, e, por
conseguinte, deverá ser extirpada do ordenamento jurídico-constitucional em
vigor.
Diante do
exposto, o parecer é pela procedência da presente ação direta,
declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.198, de 12 de maio de 1999,
do Município de Cerquilho.
São Paulo, 8 de maio de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb