Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2006811-54.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Analândia

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Analândia

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Constitucional. Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Instituição de Taxas de Limpeza e Conservação de Vias e Logradouros. Súmulas Vinculantes 19 e 29 do STF. Inconstitucionalidade das taxas previstas nos incisos II e III do art. 151 e 154 da Lei Municipal n. 1.053, de 14 de dezembro de 1992. Afronta ao art. 160, II, da Constituição do Estado, que reproduz o art. 145, II, da CR/88. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Analândia, tendo como alvo os arts. 151 e 154 da Lei Municipal n. 1.053 de 14 de dezembro de 1992, do Município de Analândia.

Indeferiu-se o pedido liminar, conforme decisão de fls. 26/27.

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 34/36).

A Câmara Municipal não se manifestou, conforme certidão de fl. 40.

 É o relato do essencial.

Os dispositivos combatidos, constantes do Código Tributário Municipal, possuem a seguinte redação:

"Art.151 - ....................

Parágrafo único: Considera-se serviço de limpeza:

I- A coleta e remoção de lixo domiciliar.

II- A varrição, a lavagem e a capinação das vias e logradouros.

III- A limpeza de córregos, bueiros e galerias pluviais.

Art. 152 – O custo dispendido com a atividade de limpeza pública será dividido proporcionalmente às testadas dos imóveis situados em locais em que se de a atuação da prefeitura.

Parágrafo único – Os imóveis de esquina ou mais de uma frente, terão sua taxa cobrada em função da testada principal.

Art. 153 - As remoções de lixo ou entulho que excedam a um metro cúbico serão feitas mediante o pagamento do preço público.

SEÇÃO VI

DA TAXA DE CONSERVAÇÃO DE

VIAS E LOGRADOUROS PÚBLICOS

Art. 154 - A taxa de conservação de vias públicas e logradouros públicos tem como fato gerador a utilização efetiva ou a possibilidade de utilização pelo contribuinte de serviços municipais de conservação de ruas, praças, jardins, parques, caminhos, avenidas, outras vias e logradouros públicos dotados pelos menos, de um dos seguintes melhoramentos:

I- Pavimentação de qualquer tipo

II- Guias e sarjetas

III- Guias”

 

Entende a requerente ser pacífico o entendimento de que é indevida a cobrança de referidas taxas por se tratar de serviço inespecífico, não mensurável e indivisível, ferindo o disposto no artigo 145, inciso II da Constituição Federal. Alega que referidas taxas são uma afronta aos princípios constitucionais, por violação aos artigos 111; 160, § 1°; 163, II e IV e 144, todos da Constituição Paulista.

Com razão.

Com exceção do art. 151, I, os demais preceitos normativos são verticalmente incompatíveis com nossa sistemática constitucional.

Veja-se que a Súmula Vinculante 19 do STF preceitua que “A TAXA COBRADA EXCLUSIVAMENTE EM RAZÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE COLETA, REMOÇÃO E TRATAMENTO OU DESTINAÇÃO DE LIXO OU RESÍDUOS PROVENIENTES DE IMÓVEIS NÃO VIOLA O ARTIGO 145, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL”. Referida Súmula tem o seguinte precedente representativo:

"(...) observo, inicialmente, que o Supremo Tribunal Federal fixou balizas quanto à interpretação dada ao art. 145, II, da Constituição, no que concerne à cobrança de taxas pelos serviços públicos de limpeza prestados à sociedade.
Com efeito, a Corte entende como específicos e divisíveis os serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, desde que essas atividades sejam completamente dissociadas de outros serviços públicos de limpeza realizados em benefício da população em geral (uti universi) e de forma indivisível, tais como os de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos (praças, calçadas, vias, ruas, bueiros).
Decorre daí que as taxas cobradas em razão exclusivamente dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis são constitucionais, ao passo que é inconstitucional a cobrança de valores tidos como taxa em razão de serviços de conservação e limpeza de logradouros e bens públicos. (...)
Além disso, no que diz respeito ao argumento da utilização de base de cálculo própria de impostos, o Tribunal reconhece a constitucionalidade de taxas quem na apuração do montante devido, adote um ou mais dos elementos que compõem a base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não se verifique identidade integral entre uma base e a outra."RE 576.321 RG-QO (DJe 13.2.2009) - Relator Ministro Ricardo Lewandowski - Tribunal Pleno.

De rigor destacar, no mesmo sentido, os seguintes julgados:

"EMENTA (...) 1. Pacífica é a jurisprudência desta Corte no sentido de ser legítima a cobrança de taxa de coleta de lixo domiciliar, haja vista ser esse serviço de caráter divisível e específico."
RE 596.945 AgR (DJe 29.3.2012) - Relator Ministro Dias Toffoli - Primeira Turma.

"EMENTA (...) 1. O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido da legitimidade da taxa de coleta de lixo proveniente de imóveis, entendendo como específico e divisível o serviço público de coleta e tratamento de lixo domiciliar prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição."AI 311.693 AgR (DJe 19.12.2011) - Relator Ministro Dias Toffoli - Primeira Turma.

"EMENTA: (...) 1. O exame da possibilidade de o serviço público ser destacado em unidades autônomas e individualizáveis de fruição não se esgota com o estudo da hipótese de incidência aparente do tributo. É necessário analisar a base de cálculo da exação, que tem por uma de suas funções confirmar, afirmar ou infirmar o critério material da regra-matriz de incidência. As razões de agravo regimental, contudo, não indicam com precisão como a mensuração do tributo acaba por desviar-se da prestação individualizada dos serviços de coleta e remoção de lixo. 2. "A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis, não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal" (Súmula Vinculante 19). Agravo regimental ao qual se nega provimento."

RE 571.241 AgR (DJe 4.6.2010) - Relator Ministro Joaquim Barbosa - Segunda Turma.

No mesmo sentido: RE 540.951 AgR (DJe 19.9.2012) - Relator Ministro Joaquim barbosa - Segunda Turma; AI 632.521 AgR (DJe 25.4.2011) - Relator Ministro Ayres Britto - Segunda Turma; RE 602.741 AgR (DJe 25.6.2010) - Relator Ministro Celso de Mello - Segunda Turma.

Por seu turno, a Súmula Vinculante 29 do STF reza que “É CONSTITUCIONAL A ADOÇÃO, NO CÁLCULO DO VALOR DE TAXA, DE UM OU MAIS ELEMENTOS DA BASE DE CÁLCULO PRÓPRIA DE DETERMINADO IMPOSTO, DESDE QUE NÃO HAJA INTEGRAL IDENTIDADE ENTRE UMA BASE E OUTRA”.

Do exposto é possível concluir que a taxa de conservação é inconstitucional, bem como as exações previstas nos incisos II e III do art. 151.

Com efeito, a “Taxa de Conservação de Vias e Logradouros Públicos” é inconstitucional, pois afronta o art. 160, II, da Constituição Estadual (que reproduz o disposto no art.145 II da CR/88), e tem a seguinte redação:

“Art.160. Compete ao Estado instituir:

 

(...)

 

II – taxas em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos de sua atribuição, específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte, ou postos a sua disposição.”

         O dispositivo impugnado instituiu tributo cujo fato gerador é a prestação de serviço geral e indivisível, o que o torna incompatível com a sistemática constitucional tributária.

         Não se nega que foi outorgado aos Municípios autonomia, inclusive para fins de instituição e arrecadação de tributos, desde que atendidos os princípios constitucionais estabelecidos, que fixam limites ao exercício dessa competência constitucional (art.29 caput e art.30 III da CR/88).

         A Constituição da República, ao regular o sistema constitucional tributário, estabeleceu a denominada “regra matriz de incidência”. Embora não tenha ela própria criado tributos, indicou, de forma genérica, a norma padrão de incidência, ou seja, as hipóteses genericamente consideradas, das quais o legislador infraconstitucional de todas as esferas da Federação pode se valer para criar tributos.

         A competência das pessoas políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), para instituir e arrecadar tributos, deve se desenvolver dentro desses limites, sob pena de mostrar-se inconstitucional.

         É indispensável invocar, nesse passo, as considerações formuladas por Roque Antônio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário, 4ªed., Malheiros, 1993, p.257): “A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu – ainda que, por vezes, de modo implícito e com uma certa margem de liberdade para o legislador – a norma padrão de incidência (o arquétipo genérico, a regra matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital) enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional”.

         Além disso, a respeito da hipótese de incidência das taxas anota Roque Antônio Carrazza que deve ser “uma prestação de serviço público diretamente referida a alguém”. São os serviços específicos, prestados uti singuli. “Gozam, portanto, de divisibilidade, é dizer, da possibilidade de avaliar-se a utilização efetiva ou potencial, individualmente considerada. É o caso dos serviços de telefone, de transporte coletivo, de fornecimento domiciliar de água potável, de gás, de energia elétrica, etc. Estes sim podem ser custeados por meio de taxas de serviço” (op. cit., p.271/272).

         No mesmo sentido, anotou oportunamente Geraldo Ataliba (Hipótese de Incidência Tributária, 4ªed., São Paulo, RT, 1991, p. 128 e ss.) que a taxa é espécie de tributo vinculado, tendo em vista o critério jurídico do aspecto material do fato gerador, ou seja, a “hipótese de incidência”, devendo assim ser serviço especificamente ligado ao contribuinte.

         Nessa mesma linha de raciocínio, aduz Hely Lopes Meirelles (Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p.141), que “quanto à divisibilidade, o conceito do Código Tributário Nacional está correto, pois caracteriza como divisíveis os serviços uti singuli, i. é, os de utilização individual e mensurável, que se contrapõem aos serviços uti universi, prestados indistintamente a todos os usuários, sem possibilidade de individualização e medição, muito embora possam beneficiar mais determinadas categorias do que outras. (...) Somente a conjugação desses dois requisitos – especificidade e divisibilidade – aliada à compulsoriedade do serviço, pode autorizar a imposição de taxa”.

        É pacífico, na doutrina, o entendimento de que só serviços específicos e divisíveis podem render ensejo à tributação por meio de taxas. Confira-se, entre outros: Luciano Amaro Neto, Direito Tributário Brasileiro, 13ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.33 e ss; Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 14ªed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p.403; Leandro Paulsen, Direito Tributário, 9ªed., Porto Alegre, 2007, p.48.

         Essa posição também é assente junto ao E. STF, no sentido de não se admitir a tributação, por meio de taxas, de serviços que não sejam específicos e divisíveis. Confiram-se os seguintes precedentes: RE 367.004-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 31-5-07, DJ de 22-6-07; ADI 2.424, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-4-04, DJ de 18-6-04; ADI 948, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 9-11-95, DJ de 17-3-00; AI 245.539-AgR, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-12-99, DJ de 3-3-00; RE 249.070, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 19-10-99, DJ de 17-12-99; ADI 447, voto do Min. Carlos Velloso, julgamento em 5-6-91, DJ de 5-3-93.

         Apenas a título de exemplificação, confira-se a ementa transcrita a seguir, pela qual o E. STF reconheceu a inconstitucionalidade da “Taxa de Limpeza Pública”, por vício similar ao verificado na Taxa impugnada na presente ação direta:

“EMENTA: - CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. TAXA DE LIMPEZA PÚBLICA: MUNICÍPIO DE IPATINGA/MG. C.F., art. 145, II. CTN, art. 79, II e III. I. - As taxas de serviço devem ter como fato gerador serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição. Serviços específicos são aqueles que podem ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas; e divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos usuários. CTN, art. 79, II e III. II. - Taxa de Limpeza Pública: Município de Ipatinga/MG: o seu fato gerador apresenta conteúdo inespecífico e indivisível. III. - Agravo não provido.” (RE-AgR 366086/MG, REL. Min. CARLOS VELLOSO, j. 10/06/2003, 2ª T., DJ 01-08-2003 PP-00137, EMENT VOL-02117-45 PP-09708).

         Diversa não é a posição que vem sendo adotada por esse C. Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo.

         Quando do julgamento da ADI 151.685-0/2-00, rel. des. Damião Cogan, em 13.08.2008, por unanimidade foi reconhecida a inconstitucionalidade da taxa de conservação de vias e logradouros públicos instituída no Município de Tatuí, tendo o i. relator consignado em trecho de seu voto que:

“As atividades indicadas de conservação das vias e logradouros públicos devem ser realizadas através da receita pública obtida com os impostos, já que a Constituição da República não autoriza a instituição de taxa para o custeio de serviço público de utilização coletiva.”

         No mesmo sentido, a ementa transcrita a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigos 165 a 169, da Lei 803/03, do Município de Poloni. Institui taxa de conservação de vias e logradouros públicos- Remuneração de serviço público geral e indivisível voltados a toda a coletividade. Inadmissibilidade. Precedentes. Ofensa aos artigos da CE. Ação procedente.” (ADI 151.688-0/6, rel. des. Passos de Freitas, j. 11.06.2008, v.u.).

Quanto ao serviço de limpeza, verifica-se a inconstitucionalidade da exação. Engloba referida exação os seguintes serviços públicos: a) a coleta e remoção de lixo domiciliar; b) a varrição, a lavagem e a capinação das vias e logradouros; c) a limpeza de córregos, bueiros e galerias pluviais.

Também aqui há frontal desacordo com os arts. 144, 160, incisos II e III, § 2.º, 163, incisos I e II, da Carta Política Estadual.

Na mesma linha desse entendimento, o Colendo Supremo Tribunal Federal já assentou que: “É inviável a cobrança de taxa quando vinculada não somente a serviço público de natureza específica e divisível, como a coleta de lixo domiciliar, mas também a prestações de caráter universal e indivisível como a limpeza de logradouros públicos, varrição de vias públicas, limpeza de bueiros, de bocas-de-lobo e das galerias de águas pluviais, capina periódica e outros. Com base nesse entendimento, a Turma deu provimento a recurso extraordinário para reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que entendera que a Taxa de Limpeza Pública cobrada pelo Município de Belo Horizonte custeava serviço de caráter divisível e específico. Precedente citado: RE 245.539-RJ (DJU de 3.3.2000).” (RE 361.437-MG, rel. Min. ELLEN GRACIE, 19.11.2002).

Deste modo, suficientes são os fundamentos para o reconhecimento da inconstitucionalidade dos tributos impugnados.

São Paulo, 13 de junho de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico