Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 2007223-82.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 11.389/13 do Município de São José do Rio Preto. Proibição do comércio de pneus “ressulcados”.  Iniciativa parlamentar. Violação ao princípio da separação de poderes inexistente. Ofensa ao princípio federativo. Incompetência normativa do Município. Sanção administrativa a critério do executivo. Violação dos princípios da legalidade e impessoalidade. Procedência da ação. 1. A disciplina de matéria atinente à polícia administrativa, com sanções administrativas, como é o comércio, não constitui assunto da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, pois, não há regra explícita a respeito, e nem está arrolada na reserva da Administração. 2. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo que não se presume por ser direito estrito, exigindo explícita previsão normativa sobre o assunto. 3. Inexistência de violação ao art. 25, da Constituição Estadual, porque não foi imposta obrigação ao poder público, senão ao particular, além de haver na lei fonte de recursos próprios. 4. Procedência da ação, contudo, à luz do art. 30, I, CF/88, aplicável por força da norma remissiva do art. 144, CE, porque a lei local não se conteve aos limites da autonomia municipal por falta de predominância do exclusivo interesse local. 5. Expressão “ficam sujeitos a sanções administrativas, como suspensão ou cassará de alvará, a critério do Chefe do Poder Executivo, que se afasta da legalidade e impessoalidade (art. 111, CE/89).

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 11.389, de 1º de novembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a proibição de “ressulcamento” e pneus e seu comércio, sob alegação de violação ao princípio da separação de poderes, à impessoalidade, no tocante às aplicação de sanções administrativas, isonomia, além de provocar aumento de despesa sem a respectiva previsão orçamentária.

2.                Concedida liminar (fls. 20/22), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 31/33) e as informações foram prestadas (fls. 37/44).

3.                É o relatório.

4.                Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal ou com dispositivos da Lei Orgânica Municipal.  Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

5.                Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

6.                O pedido é procedente.

7.                De início, necessário apontar que a matéria objeto da lei impugnada é típico assunto da polícia administrativa e constitui tema da iniciativa legislativa comum ou concorrente.

8.                Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

9.                Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

10.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

 

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

11.              Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144). Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa ao objeto da lei impugnada.

12.              Tampouco o assunto se insere no art. 47 que institui a competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo, que consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo - traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo – não absorve matéria de polícia administrativa.

13.              Aliás, colhe-se da jurisprudência da Suprema Corte que a matéria respeitante à polícia administrativa em geral é da iniciativa legislativa concorrente:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

14.              Não há, também, como merecer amparo a arguição de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual.

15.              A lei prescreve obrigação, sob pena de sanções administrativas, ao particular, não se podendo cogitar que do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas sem cobertura financeiro-orçamentária, pois, o comércio urbano já é absorvido pela polícia administrativa preexistente. Ademais, a discussão desse tópico introduz na lide o debate sobre matéria dependente de fato e de prova, insuscetível na via estreita do controle concentrado de constitucionalidade.

16.              É verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

17.              É que diferentemente do ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema Corte”, assinala José Maurício Conti ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff).

18.              Neste sentido há decisão deste egrégio Órgão Especial (ADI 0188.878-26-2011-8-26.0000, Rel. Des. Guilherme G. Strenger, 01-02-2012, v.u.).

19.              Procede o pedido, porém, pois o ato normativo extrapola os limites do art. 30, I, da CF. O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

20.              Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal.

21.              Nessa perspectiva, a proibição do “ressulco” de pneus e sua comercialização não se afigura como matéria de predominante interesse local, a animar o exercício da competência normativa municipal à luz do art. 30, I, da Constituição Federal.

22.              Se é adequado afirmar que o Município, com base no art. 30, I, II e VIII, da Constituição Federal, tem competência normativa para disciplina de atividades comerciais no seu território, não é correto estendê-la para além de seu limites como se dá, por exemplo, com a prescrição abstrata e genérica de comando proibitivo do comércio de certo produto, porque se trata de questão de cunho nacional.

23.              O Supremo Tribunal Federal decidiu que:

“(...) 2. É inconstitucional lei municipal que, na competência legislativa concorrente, utilize-se do argumento do interesse local para restringir ou ampliar as determinações contidas em texto normativo de âmbito nacional. (...)” (RT 892/119).

“(...) 2. Enquanto a União regula o direito de propriedade e estabelece as regras substantivas de intervenção no domínio econômico, os outros níveis de governo apenas exercem o policiamento administrativo do uso da propriedade e da atividade econômica dos particulares, tendo em vista, sempre, as normas substantivas editadas pela União. (...)” (STF, ADI 1.918-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 23-08-2001, v.u., DJ 01-08-2003, p. 99).

24.              Assentado nessas premissas, a inconstitucionalidade se manifesta pelo contraste da lei local com o art. 30, I, da Constituição Federal.

25.              De outro lado, a previsão exemplificativa contida na lei impugnada (art. 3º), de aplicação de sanção de suspensão ou cassação do alvará, a critério do chefe do poder executivo,  afasta-se da legalidade prevista no art. 111 da Constituição Estadual.

26.              A imposição de sanção administrativa com base na prática de ilícito administrativo exige a observância da legalidade absoluta ou estrita (reserva forma de lei).

27.              Neste sentido, enuncia a jurisprudência que “o princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal” (STF, AgR-QO-AC 1.033-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 25-05-2006, v.u., DJ 16-06-2006, p. 04).

28.              Ademais, a previsão de que a sanção será aplicada a critério do chefe do poder executivo, por sua vez, também é incompatível com o princípio da impessoalidade (art. 111 da CE/89), abrindo margem ao casuísmo.

29.              Opino pela procedência da ação.

                   São Paulo, 27 de maio de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

AAAMJ