Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 2009107-49.2014.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Hortolândia

Objeto: Lei nºs 2.893 e 2.894, de 02 de dezembro de 2013,  do Município de Hortolândia

 

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito: Lei nº 2.893, de 02 de dezembro de 2013, que “Cria o Programa de Horta Comunitária no Município de Hortolândia e dá outras providencias”; Lei nº 2.894, 02 de dezembro de 2013, que “dispõe sobre a divulgação nas instituições financeiras no Município de Hortolândia sobre a proibição de venda casada de produtos ou serviços”.

2) Lei nº 2.893, de 02 de dezembro de 2013. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Instituição de obrigação que gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, 2; 25; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da CE.

 3) Lei nº 2.894, de 02 de dezembro de 2013. Inexistência de violação de iniciativa reservada do Chefe do Executivo, ou mesmo do princípio da separação de poderes. Interpretação estrita da regra de reserva de iniciativa legislativa do Poder Executivo. Precedentes do STF. Normas que não geram, direta e imediatamente, nenhum encargo para a administração pública, como nos casos de criação de cargos, aumento de despesas, alteração de regime jurídico de servidores, ou mesmo modificação de rotina de serviços. Temas contidos no âmbito do interesse local (art. 30, I da CR/88), por consistirem na disciplina do poder de polícia municipal e da proteção aos consumidores.

4) Procedência parcial da ação. 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face das Leis n. 2.893 e 2.894, de 02 de dezembro de 2013, do Município de Hortolândia, de iniciativa parlamentar, que dispõem, respectivamente, sobre: a) criação do Programa de Horta Comunitária no Município de Hortolândia; b) obrigação de divulgação, nas instituições financeiras no Município de Hortolândia, sobre a proibição de venda casada de produtos ou serviços.

O autor alega violação à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo e de criação de despesa sem cobertura orçamentário-financeira, suscitando ofensa aos arts. 5º, 25 e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

A liminar requerida foi deferida (fl. 25).

A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua participação na lide (fls. 31/33).

A Câmara Municipal não prestou informações (fls. 39).

É o relatório.

1.   Da Lei n. 2.893, de 02 de dezembro de 2013:

O ato normativo impugnado assim dispõe:

“Art. 1° Fica instituído o programa de Horta Comunitária no Município de Hortolândia, com os seguintes objetivos:

I - aproveitar mão-de-obra desempregada;

II - proporcionar terapia ocupacional para portadores de deficiência e homens e mulheres da terceira idade;

III - aproveitar áreas devolutas;

IV - manter terrenos limpos e utilizados.

Parágrafo único. A Prefeitura Municipal de Hortolândia, através da Secretaria Municipal de Inclusão e Desenvolvimento Social, organizará e administrará o programa referido no caput deste artigo.

Art. 2° A implantação das hortas comunitárias poderá se dar:

I - em áreas públicas municipais;

II - em áreas declaradas de utilidade pública e ainda não utilizadas;

III - em terrenos ou glebas particulares;

IV - em faixas de servidão de passagem aérea da CPFL.

§ 1° - A utilização em áreas do inciso III deste artigo se dará com a anuência formal do proprietário e de acordo com o artigo 2° da Lei n° 1.979, de 13 de Dezembro de 2007.

§ 2° Quando utilizada a área do inciso IV, deverão ser atendidas as especificações da CPFL.

Art. 3° Cada área poderá ser trabalhada por uma pessoa ou por um grupo de pessoas, que se cadastrarão individualmente ou coletivamente no órgão encarregado da gerência do programa.

Art. 4° O processo de implantação de uma horta comunitária seguirá os seguintes passos:

a) localização, por parte dos cadastrados, da área a ser trabalhada;

b) consulta ao proprietário, em caso de terrenos particulares;

c) oficialização da área junto ao órgão gerenciador, após formalizada a permissão do uso para o fim determinado nesta Lei.

Art. 5° Quando utilizado como terapia ocupacional, o programa de hortas comunitárias deverá ser iniciado a partir das Unidades Básicas de Saúde do Município, através dos profissionais.

Art. 6° O produto das hortas comunitárias poderá ser comercializado livremente pelos produtores, bem como atender as entidades assistenciais estabelecidas no Município.

Art. 7° Caso haja a necessidade de ligação de água tratando-se de imóvel urbano, deverá a Prefeitura Municipal acionar o órgão responsável para que a efetue.

Art. 8° Para emitir a realização do programa de hortas comunitárias a Prefeitura Municipal de Hortolândia fica autorizada a celebrar convénios com órgãos Estaduais ou Federais para orientação dos trabalhos e fornecimento de sementes.

Art. 9° A Prefeitura Municipal de Hortolândia deverá dar ampla publicidade ao programa de Hortas Comunitárias através da veiculação de cartazes explicativos afixados nas unidades públicas de saúde, educação, ação social entre outros.

Art. 10 A Prefeitura Municipal da Hortolândia dará conhecimento do programa de hortas comunitárias aos sindicatos com sede no Município, com os quais poderá celebrar convénios para o atendimento de desempregados da referida categoria.

Art. 11 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

                  

Ocorre, porém, que a referida lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a, e 144, os quais dispõem o seguinte:

Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no artigo 47, XIX;

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

                  

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a distribuição de profissionais da saúde (nutricionistas) pelas unidades de atendimento, bem como a fixação de horário e período de atendimentos.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou o Programa “Horta Comunitária”, a ser implantado pelo executivo municipal, inclusive dentro de unidades de saúde, e com utilização de áreas públicas (art. 2º, I).

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Não se duvida que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação de programas governamentais, com geração de obrigações, é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente.

Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade para a criação do Programa “Horta Comunitária”.

Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XIX da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a criação do Programa Horta Comunitária gera despesa para o Município, não havendo indicação de eventuais recursos disponíveis, o que se incompatibiliza com os artigos 25 e 176, I, da Constituição do Estado.

Portanto, patente a inconstitucionalidade da Lei n. 2.893, de 02 de dezembro de 2013.

2. Da Lei n. 2.894, de 02 de dezembro de 2013:

O referido ato normativo assim dispõe:

“Art. 1° As instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, que tenham estabelecimento neste Município, ficam obrigadas a divulgar aos clientes a proibição de venda casada de qualquer produto ou serviço.

Art. 2° A prática de venda casada consiste em condicionar o oferecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos, constituindo-se em prática abusiva e expressamente vedada pelo artigo 39, inciso l, da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).

Art. 3° O cartaz ou placa deverá conter a seguinte mensagem de forma destacada e ser afixada em locais de fácil visualização:

"É proibido condicionar a abertura de contas, concessão de crédito ou fornecimento de qualquer outro serviço à aquisição de outro produto ou serviço desta instituição".

Art. 4° As instituições a que se refere esta Lei, terão o prazo de 60 (sessenta) dias, a partir da publicação desta Lei, para o cumprimento de suas disposições, sob pena de:

I - advertência;

II - multa no valor de 900 (novecentas) UFMH;

III - o dobro da multa imposta em caso reincidência;

Parágrafo único. Considera-se reincidência para os fins desta Lei, a infração repetida ou continuada, apurada dentro do prazo de 30 (trinta) dias, após sua punição definitiva.

Art. 5° A fiscalização do cumprimento da presente Lei e a aplicação das penalidades referidas no artigo anterior serão exercidas pelas autoridades administrativas municipais competentes, os quais atuarão de ofício ou mediante denúncia.

Art. 6° A inobservância de qualquer dispositivo desta Lei, poderá ser processada mediante procedimento administrativo instaurado por iniciativa do usuário ou da fiscalização junto ao PROCON (Órgão de Proteção e Defesa do Consumidor), o qual encaminhará os fatos e as provas ao Poder Executivo.

Art. 7° O Executivo regulamentará a presente Lei no que lhe compete.

Art. 8° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

 

Trata a lei impugnada de matéria inerente à polícia administrativa incidente sobre o ramo comercial, e que é conferida aos Municípios, por se tratar de interesse local (art. 30, I, da CF). A respeito do assunto, calha invocar tradicional lição doutrinária estampando que:

 

“Além dos vários setores específicos que indicamos precedentemente, compete ao Município a polícia administrativa das atividades urbanas em geral, para a ordenação da vida da cidade. Esse policiamento se estende a todas as atividades e estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e funcionamento, não para o controle do exercício profissional e do rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação da segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do empreendimento (escritório, consultório, banco, casa comercial, indústria, etc.) em relação aos usos permitidos nas normas de zoneamento da cidade (...)

Nessa regulamentação se inclui a fixação de horário do comércio em geral e das diversificações para certas atividades ou estabelecimentos, bem como o modo de apresentação das mercadorias, utilidades e serviços oferecidos ao público. Tal poder é inerente ao Município para a ordenação da vida urbana, nas suas exigências de segurança, higiene, sossego e bem-estar da coletividade” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1993, 6ª. ed., pp. 368, 371).

                 

 Como é cediço, nosso ordenamento constitucional adotou o regime da repartição constitucional de competências, por meio do qual à União são reservados assuntos de interesse geral, aos Estados os de interesse regional, e aos Municípios os de interesse local.

De todo modo, a interpretação das regras constitucionais na matéria deve levar em consideração qual o interesse prevalente, na medida em que toda e qualquer disciplina legislativa sempre traz algum aspecto que é relevante para mais de uma esfera da Federação.

A chave da solução dos problemas concretos está, assim, na identificação do interesse predominante. A propósito, confira-se, na doutrina: José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.477 e ss; Fernanda Dias Menezes de Almeida, Competências na Constituição de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, passim; Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.270 e ss; entre outros.

Embora caiba à União editar leis complementares dispondo sobre o sistema financeiro nacional, bem como instituições financeiras e suas operações (art.48 XIII, art.192 red. EC nº 40/03, CR/88), isso não inibe a competência dos Municípios para, mesmo em se tratando de serviços prestados por instituições financeiras, editar normas de interesse local, relacionadas à proteção do consumidor e à qualidade dos serviços prestados (art.30 II da CR/88).

A matéria é pacífica no âmbito do E. STF. Confira-se: RE 312.050, rel. Min. Celso de Mello, DJ 06.05.05; RE 208.383, rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 07.06.99. Oportuno ainda transcrever a seguinte ementa:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGÊNCIAS BANCÁRIAS. TEMPO DE ATENDIMENTO AO PÚBLICO. COMPETÊNCIA. MUNICÍPIO. ART. 30, I, CB/88. FUNCIONAMENTO DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ARTS. 192 E 48, XIII, DA CB/88. 1. O Município, ao legislar sobre o tempo de atendimento ao público nas agências bancárias estabelecidas em seu território, exerce competência a ele atribuída pelo artigo 30, I, da CB/88. 2. A matéria não diz respeito ao funcionamento do Sistema Financeiro Nacional [arts. 192 e 48, XIII, da CB/88]. 3. Matéria de interesse local. Agravo regimental improvido.” (STF, RE-AgR 427463/RO, 1ª T., rel. Min. Eros Grau, j. 14/03/2006, DJ 19-05-2006, PP-00015).

 

 No julgado acima, ao emitir seu voto, o i. Min. Relator, Eros Grau, formulou as seguintes ponderações:

“(...)

Ao legislar sobre o tempo de atendimento ao público nas agências bancárias estabelecidas em seu território, o Município exerceu competência a ele atribuída pelo art.30, inciso I, da Constituição do Brasil.

A matéria respeita a interesse local do Município, que não se confunde com a atinente às atividades-fim das instituições financeiras. Ademais, incluem-se no âmbito dos assuntos de interesse local os relativos à proteção do consumidor. Vale mesmo dizer: o Município está vinculado pelo dever de dispor, no plano local, sobre a matéria.

A lei municipal não dispôs sobre política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores – art.22 inciso VII, da CB/88. Também não regulou a organização, o funcionamento e as atribuições de instituições financeiras. Limitou-se a impor regras tendentes a assegurar adequadas condições de atendimento ao público na prestação de serviços, por essas instituições, ao consumidor/cliente.

Não envolve transgressão da competência reservada ao Congresso Nacional pelo art.48, inciso XIII, da Constituição do Brasil, para dispor sobre matéria financeira e funcionamento de instituições financeiras. Também não diz respeito à estruturação do sistema financeiro nacional, matéria que, nos termos do disposto no art.192 da CB/88, há de ser regulada por lei complementar.

(...)

No mais, devo fazer breve alusão aos argumentos aportados às razões do agravo pelo parecer juntado aos autos, inicialmente observando que a exigência de lei complementar veiculada pelo art.192 da Constituição abrange apenas o quanto respeite à regulamentação da estrutura do sistema. Isso é nítido como a luz solar passando através de um cristal bem polido.

(...)”

 

É irrelevante, para o funcionamento da instituição financeira (esse sim objeto de lei federal), a previsão, em lei municipal, de obrigatoriedade de afixação de placas relativas à venda casada de produtos e serviços.

Tais aspectos dizem respeito apenas à qualidade do atendimento ao consumidor dos serviços bancários. Aprimoram o serviço prestado. São aspectos que revelam interesse local. Podem ser objeto de lei municipal.

 Ora, emerge desses fundamentos a plenitude da autonomia municipal para, nos limites do interesse social, disciplinar o respeito aos direitos dos consumidores.

Não bastasse esta digressão, improcede a alegação de vício de ofensa à reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo.

Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

                  

                   Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

 

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerusclausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em consequência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).

Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144).

Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa, assim como no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo.

O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

Na espécie, a norma local impõe obrigação a particulares, afeta à proteção do consumidor, sujeita à fiscalização do Poder Executivo, sem invadir a esfera de reserva da administração ou reserva de iniciativa do poder executivo. Assim, não há ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II e XIX, a, da Constituição Estadual.

Colhe-se da jurisprudência da Suprema Corte que a matéria respeitante à polícia administrativa em geral é da iniciativa legislativa concorrente:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

 

                    Portanto, não há inconstitucionalidade na Lei n. 2.894/13.

 

3.   Conclusão.

 

Feitas estas considerações, requer-se a procedência parcial da presente ação, com o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei n. 2.893, de 02 de dezembro de 2013 e da constitucionalidade da Lei n. 2.894, de 02 de dezembro de 2013.

                  

 

São Paulo, 29 de abril de 2014.

 

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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