Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2012726-84.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Piquete

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Piquete

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 019/2013 à Lei Orgânica do Município de Piquete de iniciativa parlamentar. Restrições similares às da “Lei Ficha Limpa” no provimento de cargos comissionados. Alegações de ofensa ao artigo 34, § 1º, da Lei Orgânica Municipal, ao artigo 29 da Constituição Federal, ao princípio da separação de poderes e de invasão da competência normativa federal. procedência da ação.  1. Parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica ou da Constituição Federal. 2. Alegação de vício no processo legislativo, por inobservância de regras relativas ao processo legislativo. Hipótese em que não se divisa ofensa direta à Constituição do Estado. Eventual inconstitucionalidade, se existente, seria reflexa ou indireta e não poderia ser sindicada em ADIN. 3. Emenda à Lei Orgânica Municipal que não é votada em dois turnos de votação, conforme previsto no artigo 29 da Constituição Federal. Violação ao artigo 144 da Constituição Estadual. Ofensa a princípios constitucionais de obrigatória observância pelo Município. Procedência da ação. 4. Lei municipal que dispõe sobre a nomeação para cargos de provimento em comissão, adotando restrições semelhantes às da “Lei Ficha Limpa”, não invade a competência normativa federal (art. 22, I, CF), porque não tratou das matérias ali enumeradas, e não cuidou de eleições, mandatos, responsabilidade criminal, situando-se no espaço da autonomia municipal (arts. 29 e 30, CF). 3. O Chefe do Poder Executivo tem iniciativa legislativa reservada para o provimento de cargos públicos (art. 24, § 2º, 1 e 4, CE; art. 61, § 1º, II, a e c, CF), mas, a exigência de honorabilidade para o provimento de cargos públicos, tal e qual a restrição ao nepotismo, se situa no raio de incidência do princípio da moralidade administrativa (art. 37, CF; art. 111, CE), não impondo a observância dessa reserva. 4. Ademais, a reserva de iniciativa legislativa é referente aos requisitos para o provimento de cargos públicos, e não para as condições para provimento de cargos públicos, matéria que está no domínio da iniciativa legislativa comum ou concorrente, porque não se refere ao acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício. 5. Improcedência da ação.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Eminente Relator

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Prefeita do Município de Piquete impugnando a Emenda nº 019/2013 à Lei Orgânica do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que, em síntese, estabelece restrições similares às da “Lei Ficha Limpa” no provimento de cargos comissionados na Administração Pública Municipal, sob alegação de desrespeito ao devido processo legislativo, violação ao princípio da separação de poderes e de invasão da competência normativa da União.

2.                Indeferida a liminar (fls. 70/87), o Presidente da Câmara Municipal de Piquete prestou informações reconhecendo ter havido vício na formação do ato normativo impugnado, cujo projeto foi votado em um único turno de votação. Quanto ao conteúdo da lei atacada, o Presidente da Câmara sustentou sua constitucionalidade (fls. 105/107).

3.                A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 92/93).

4.                É o relatório.

5.                O parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual, consoante dispõe o art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica ou da Constituição Federal.

6.                A Prefeita do Município de Piquete, de proêmio, afirma que a lei impugnada padece de inconstitucionalidade formal, porque, em seu processo de formação, não teriam sido atendidas as disposições constantes da Lei Orgânica Municipal que estabelecem a iniciativa legislativa de pelo menos 1/3 dos vereadores e a aprovação do projeto de lei em dois turnos de votação.

7.                Como se sabe, o processo legislativo corresponde ao conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis e é objeto de previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 675).

8.                O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República (Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo, Atlas, 2008, p. 641), conduz, de fato, à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

9.                A Constituição Federal, entretanto, não desce às minúcias do processo legislativo. A Carta elenca as espécies normativas (art. 59), trata da proposta das Emendas constitucionais (art. 60), cuida das hipóteses da iniciativa reservada das leis (art. 61), dispõe sobre a disciplina das medidas provisórias (art. 62) e sobre limite do poder de emendar (art. 63), mas deixa para os regimentos internos das casas legislativas a regulação do trâmite dos projetos de lei no âmbito desses órgãos.

10.              José Afonso da Silva ensina que “a disciplina das discussões e votações é matéria regimental, que, mesmo que seja desrespeitada, não reflete na validade da lei consequente” (Processo constitucional de formação das leis, 2ª. ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 359).

11.              Para o ilustre constitucionalista, o defeito nesse procedimento nada mais é que vício regimental, “que pode ser corrigido por reclamação de qualquer parlamentar” (idem, p. 359).

12.              Seguindo essa lição, não comungamos da linha de raciocínio desenvolvida pela proponente e pensamos que a eventual ofensa à Lei Orgânica não corresponde à violação da Constituição Paulista.

13.              De todo modo, se inconstitucionalidade houvesse, esta seria reflexa ou indireta, não podendo ser sindicada em ADIN. Confira-se:

“As ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

14.              Entretanto, no que concerne à alegação de que a emenda à Lei Orgânica do Município foi aprovada em um único turno de votação, contrariando a determinação constante do artigo 29 da Constituição Estadual, razão assiste à Senhora Prefeita Municipal.

15.              Isso porque, por força do artigo 144 da Constituição Estadual, a regra do artigo 29 da Constituição Federal deve ser fielmente observada pelos municípios, o que impõe o reconhecimento de que a Emenda à Lei Orgânica padece de vício formal de inconstitucionalidade.

16.              Por conta disso, a ação deve ser julgada procedente.

17.              Por outro lado, com relação ao outro argumento, consistente em violação ao princípio da separação de poderes, convém obtemperar que não se situa no domínio da reserva da Administração ou da discricionariedade administrativa o estabelecimento de condições para o provimento de cargos públicos. É tradicional no direito brasileiro cláusula da reserva legal a respeito do assunto, e que se encontra hospedada no art. 37, I, da Constituição Federal, reproduzida no art. 115, I, da Constituição do Estado.

18.              Oportuno lembrar, ainda, salutar admoestação do Marques de São Vicente, mui apropriada ao caso:

“A arte e o tino do govêrno está em assinar aos homens que reunem o talento à probidade o lugar que lhes compete, não só para que o auxiliem, como para que não lhe criem embaraços e não procurem abrir carreira, forçando as traves que lhe são opostas” (José Antonio Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império, Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, pp. 379-433, RT 731/678).

19.              O ponto central de discussão reside, sob o color do princípio da separação de poderes, em decifrar se a iniciativa legislativa para o provimento de cargos comissionados é reservada ou não ao Chefe do Poder Executivo.

20.              A primeira impressão, extraída do art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Federal, tende a uma resposta positiva.

21.              Porém, essa questão recebeu diferente tratamento em situação absolutamente similar, consistente na edição de regras de combate ao nepotismo, afinal, a exigência de honorabilidade para o provimento de cargos públicos é algo que se situa no raio de incidência do princípio da moralidade administrativa (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição Estadual), base que une a legislação reacionária ao nepotismo e de adoção da “ficha limpa” no provimento de cargos públicos comissionados.

22.              Se, como naquela hipótese semelhante, concluiu-se que o princípio da moralidade administrativa era bastante para orientar a criação e a interpretação de norma restritiva, a solução deste caso deve adotar idênticas premissas, lembrando-se que com razão Diógenes Gasparini não visualizou a proibição do nepotismo nas matérias da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (“Nepotismo político”, in Corrupção, Ética e Moralidade Administrativa, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, pp. 73-98).

23.              E no julgamento da questão o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

“a norma insculpida no § 1º do artigo 61 da Carta Federal, mais precisamente na alínea ‘a’ do inciso II, há que ter alcance perquirido sem apego exacerbado à literalidade. É certo que são da iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração (...) Evidentemente, está-se diante de  preceitos jungidos à atividade normativa ordinária, não alcançando o campo constitucional, porquanto envolvidos aqui  interesses do Estado de envergadura maior e, acima de tudo, da necessidade de se ter, no tocante a certas matérias, trato  abrangente a alcançar, indistintamente, os três Poderes da República. Assim o é quanto ao tema em discussão. Com a Emenda Constitucional nº 12 à Carta do Rio Grande do Sul, rendeu-se homenagem aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da isonomia e do concurso público obrigatório, em sua acepção maior. Enfim, atuou-se na preservação da própria res pública. A vedação de contratação de parentes para cargos comissionados - por sinal a abranger, na espécie, apenas os cônjuges, companheiros e parentes consanguíneos, afins ou por adoção até o segundo grau (pais, filhos e irmãos) - a fim de prestarem serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de grande prestígio, mostra-se como procedimento inibidor da prática de atos da maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de tratamento jurídico único - artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de servidores públicos conforme a maior ou menor fidelidade do Poder aos princípios básicos decorrentes da Constituição Federal” (STF, ADI 1.521-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 12-03-1997, m.v., DJ 17-03-2000, p. 02, RTJ 173/424).

24.              Esse posicionamento é perfilhado no Supremo Tribunal Federal (STF, RE 183.952-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 19-03-2002, v.u., DJ 24-05-2002, p. 69; STF, RE 372.911-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 03-04-2007, DJ 08-06-2007, p. 94) e neste egrégio Tribunal de Justiça (TJSP, ADI 71.670-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Fortes Barbosa, 17-10-2001; TJSP, ADI 148.788-0/5-00, Órgão Especial, Rel. Des. Ivan Sartori, v.u., 19-09-2007).

25.              Há de se ponderar, nesta quadra, a diferença entre requisitos para o provimento de cargos públicos - matéria situada na iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (STF, ADI 2.873-PI, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 20-09-2007, m.v., DJe 09-11-2007, RTJ 203/89) - e condições para o provimento de cargos públicos - que não se insere na aludida reserva, e está no domínio da iniciativa legislativa comum ou concorrente entre Poder Legislativo e Poder Executivo – porque não se refere ao acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício.

26.              Por fim, não se vislumbra ângulo para o sucesso da ação mesmo em face do argumento segundo o qual não poderiam ocorrer exonerações de nomeações pretéritas em descompasso com a lei. Como já julgado neste egrégio Tribunal de Justiça em fundamentação integralmente apropriada à hipótese, “não terá sentido algum proibir o administrador de praticar o nepotismo, a não ser se for também para impor àquele a coibição da prática que estiver em curso, fazendo-o exonerar ou demitir os parentes ou rescindir seus contratos de trabalho, o que, data venia, não deixa de ser disposição para o futuro, com força de extirpar qualquer sentido retroativo da norma em exame” (TJSP, ADI 148.484-0/8-00, Órgão Especial, Rel. Des. Palma Bisson, m.v., 02-04-2008).

27.              Posto isso, opino pela improcedência da ação, única e exclusivamente por ofensa ao artigo 144 da Constituição Estadual.

 

                            São Paulo, 09 de junho de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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