Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 2018746-91.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

Objeto: Lei nº 10.673, de 16 de dezembro de 2013, do Município de Sorocaba

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Lei n. 10.673, de 16 de dezembro de 2013, do Município de Sorocaba. proibição de corte de fornecimento de água onde residam pessoas portadoras de necessidades especiais e acamados. Matéria relacionada à administração do Município. Reserva do chefe do poder executivo. violação à separação de poderes. Procedência da ação. 1. Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da 10.673, de 16 de dezembro de 2013, do Município de Sorocaba , que “Dispõe sobre a proibição do corte de fornecimento de água nos imóveis onde residam pessoas portadoras de necessidades especiais e acamados e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que estabelece ações concretas à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. 2. Ofensa aos artigos 5º; 47, II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Sorocaba, tendo por objeto a Lei nº 10.673, de 16 de dezembro de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a proibição do corte de fornecimento de água nos imóveis onde residam pessoas portadoras de necessidades especiais ou acamados e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, de forma que o ato normativo impugnado violou o princípio da separação dos poderes, além de não ter indicado a fonte de recursos para custeio dos novos encargos criados. Aponta, ainda, invasão da esfera de competência da União, uma vez que a lei impugnada legislou acerca de produção e consumo, bem como proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência. Aponta como violados os arts. 5º, 24, § 2º, 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 158/160).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 168/170).

A Câmara Municipal prestou informações a fls. 172/181. Alega que a matéria objeto da lei impugnada não é de iniciativa privativa do Prefeito Municipal, atende ao princípio que tutela a dignidade da pessoa humana, bem como não representa aumento de gastos ao executivo municipal.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente.

A lei impugnada “dispõe sobre a proibição do corte de fornecimento de água nos imóveis onde residam pessoas portadoras de necessidades especiais ou acamados e dá outras providências”, nos seguintes termos:

“Art. 1º Fica proibido o corte do fornecimento de água nos imóveis onde, comprovadamente, residam pessoas portadoras de necessidades especiais ou acamadas enquanto perdurar essa condição.

§1º Para obter o benefício de que trata esta Lei, o interessado deverá preencher requerimento próprio junto ao SAAE Serviço Autônomo de Águas e Esgoto de Sorocaba, instruindo-o com laudo médico que comprove a necessidade especial ou a condição de acamado.

§2º Só fará jus ao benefício desta Lei o interessado que comprovar possuir apenas um único imóvel.

§3º A condição prevista no caput deste artigo deve ser apurada por assistente social.

Art. 2º As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de dotação orçamentária própria.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas de execução dos serviços públicos municipais de fornecimento de água e energia elétrica, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara proibiu e dispôs sobre a forma de execução de atividades de órgãos públicos municipais. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, visando a tutela das pessoas portadoras de necessidades especiais e acamados, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Afinal, cabe ao Poder Executivo o início do processo legislativo relativo à conduta dos agentes públicos em relação à execução de serviços públicos municipais.

Com efeito, a iniciativa do processo legislativo em relação ao funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Em matéria similar, este Colendo Órgão Especial assim se pronunciou:

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei n. 3.274/11, do Município de Tietê - Proibição de corte do fornecimento de energia elétrica, água, gás e telefone por inadimplência do consumidor nos dias que antecederem sábados, domingos e feriados - Organização de serviço público de iniciativa legislativa exclusiva do Executivo - Ofensa ao principio da separação e independência dos Poderes Declaração de inconstitucionalidade do diploma normativo por ofensa aos artigos 5º, 47, II, e 144 da Carta Paulista - Procedência.” (Adin 0158883-31.2012.8.26.0000 – j. em 27 de fevereiro de 2013, Rel. Des. Alves Bevilacqua)

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 10.673, de 16 de dezembro de 2013, do Município de Sorocaba.

São Paulo, 23 de abril de 2014.

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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