Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2024383-23.2014.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Guarulhos
Requerido:
Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.195, de 11 de novembro de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a“ Obrigatoriedade de divulgação na página oficial da Prefeitura de Guarulhos na internet, da relação de medicamentos que compõem os estoques da Secretaria Municipal de Saúde, incluindo os Hospitais, Pronto- Socorros, Pronto-Atendimentos, Unidades Básicas de Saúde e Unidades de Saúde da Família”.
2) Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.
3) Obrigatoriedade imposta a órgão público. Violação dos arts. 5º, caput, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos.
4) Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Senhor Desembargador
Relator
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.195, de 11 de novembro de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “Obrigatoriedade de divulgação na página oficial da Prefeitura de Guarulhos na internet, da relação de medicamentos que compõem os estoques da Secretaria Municipal de Saúde, incluindo os Hospitais, Pronto-Socorro, Pronto Atendimentos, Unidades Básicas de Saúde e Unidades de Saúde de Família”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes, invadir esfera de atuação do Poder Executivo e por criar despesas sem previsão de custeio. Daí, a alegação de violação dos arts. 5º, caput, 24, §2º, n. 1 e n. 2, 25, 47, II, XIV e XVII, 144, 174 e 176, I da Constituição Estadual e o 63, IV da Lei Orgânica do Município de Guarulhos (Fls. 1/36).
Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado (fls. 38/39).
Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 47/49).
Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado (fls. 54/61).
Nestas condições, vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
1. Da alegação de violação da Lei Orgânica
Municipal
Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal.
Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal, que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.
Por este motivo, passa-se à análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.
2.
Das
inconstitucionalidades
Procede o pedido
Com efeito, a Lei nº 7.195, de 11 de novembro de 2013, do
Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “Obrigatoriedade
de divulgação na página oficial da Prefeitura de Guarulhos na internet, da relação
de medicamentos que compõem os estoques da Secretaria Municipal de Saúde,
incluindo os Hospitais, Pronto-Socorro, Pronto Atendimento, Unidades Básicas de
Saúde e Unidades de Saúde de Família”, foi
promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do
executivo, com a seguinte redação:
“Art. 1º - A Prefeitura de Guarulhos deverá divulgar em sua página oficial na internet, a relação dos medicamentos que compõem os estoques da Secretaria Municipal de Saúde, incluindo os Hospitais, Prontos-Socorros, Prontos-Atendimentos, Unidades Básica de Saúde e Unidades de Saúde da Família.
Art. 2º - O Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 60 (sessenta) dias a contar de sua publicação.
Art. 3º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de verbas próprias consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.
Art. 4º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação”.
O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela Lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos
Secretários Estaduais ou Municipais.
A escolha e o conteúdo das matérias de divulgação na página oficial na Internet da Prefeitura Municipal é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita à disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode
por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre, invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, em função da obrigatoriedade em divulgar na página da internet do Município a relação de medicamentos à disposição da população, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, caput, 47, II, XIV e XIX, a,
e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes à interferência de outro poder (art. 47, II e XIV
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto, nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado,
viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção
da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria
essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art.
24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Por
fim, importante ressaltar que não se verifica violação aos arts. 25, caput, 174 e 176, I da Constituição Estadual,
uma vez que as providências administrativas criadas pelo ato normativo não
geram novas despesas para Administração Pública.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.195, de 11 de novembro de 2013, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 28 de abril de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb