Parecer
Processo n. 2035476-80.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba
Requerida: Câmara Municipal de Sorocaba
Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 9.955, de 07 de março de 2012, do Município de Sorocaba. Creches públicas. Funcionamento ininterrupto. Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1. A iniciativa parlamentar de lei local que disciplina o funcionamento ininterrupto de creches municipais, inclusive nos períodos de férias ou recesso escolar é incompatível com o princípio da separação de poderes, sem olvidar desafio à acessibilidade de cargo ou emprego público e à excepcionalidade da admissão temporária (arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, CE/89). 2. Impertinência da invocação do art. 24, § 5º, I, CE/89, na medida em que se trata de lei de iniciativa parlamentar e o preceito constitucional é regra que institui limitação ao poder de emenda parlamentar cujo pressuposto é o exercício da iniciativa legislativa reservada. 3. Procedência da ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pelo Prefeito do Município de Sorocaba impugnando a Lei n. 9.955, de
07 de março de 2012, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar,
dispondo sobre o funcionamento ininterrupto de creches públicas, inclusive nos
períodos de férias ou recesso escolar, suscitando sua incompatibilidade com os
arts. 5º, 24, §§ 2º e 5º, I, 25, 47, II, e 144 da Constituição Estadual.
Concedida a liminar, a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da
lei vergastada, e a Câmara Municipal de Sorocaba sustentou sua constitucionalidade.
2. É
o relatório.
3. É impertinente a invocação do
art. 24, § 5º, I, da Constituição do Estado na medida em que se trata de lei de
iniciativa parlamentar e o preceito constitucional é regra que institui
limitação ao poder de emenda parlamentar cujo pressuposto é o exercício da
iniciativa legislativa reservada.
4. A inconstitucionalidade decorre
da iniciativa parlamentar, agressiva da separação de poderes, porque seu objeto
é típico ato de administração ordinária, reservado exclusivamente ao Poder
Executivo e imune da interferência do Poder Legislativo, como se capta dos
arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da
Constituição Estadual.
5. Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.
6. A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da
Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de
invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas
e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de
poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
7. Se, em princípio, a competência normativa é do domínio
do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza
eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II,
XIV e XIX, a, Constituição Estadual)
em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a
jurisprudência:
“RESERVA DE
ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva
de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias
sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)”
(STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ
14-12-2001, p. 23).
8. No caso, foi violentada a reserva da Administração
Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior,
a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a
disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer
ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).
9. A decisão sobre o horário de funcionamento de creches
municipais é da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas
linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo,
alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição
de governo do Chefe do Poder Executivo.
10. Não bastasse, ainda que a matéria
demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade a lei local
por sua iniciativa parlamentar.
11. Em se tratando de processo
legislativo é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e
extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia
a jurisprudência:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).
12. Decorre
do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos
de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
13. A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes
mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração
(entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições,
quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa,
segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste
sentido:
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“À luz do
princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual
as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a
questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual,
quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto
do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da
Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
14. É inegável que a extensão do horário de funcionamento de creche pública implica sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.
15. Quando lei de iniciativa
parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos
demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no
orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte
de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de
inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da
Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para
atendimento das novas despesas seja porque este reserva ao Chefe do Poder
Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o
Supremo Tribunal Federal:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do
Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria
Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.
Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução
da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada
procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do
Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3.
Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7.
Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF
v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.
10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO
PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O
PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO
II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o
projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria
típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração
Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois
Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao
disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil.
3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei
orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição
de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei
atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos
seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para
declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do
Sul” (RTJ 200/1065).
16. O colendo Órgão Especial deste
egrégio Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de apreciar situação similar
em venerando acórdão relatado pelo eminente Desembargador Roberto Mac Cracken,
assim ementado:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Douta e Nobre Prefeita do Município de Guarujá/SP, visando à declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n° 3.703, de 28 de novembro de 2008, que dispõe sobre o funcionamento de creches no horário noturno e adota outras providências - INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL - Matéria de competência privativa do Chefe do Poder Executivo local - Presença de vício de inconstitucionalidade formal na produção da norma impugnada.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROCEDENTE” (ADI 0151911-11.2013.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, v.u., 27-11-2013).
17. Esse
julgado se apoiou em precedentes do colendo Órgão Especial (ADI
0129730-16.2013.8.26.0000, Rel. Des. Luis Soares de Mello, 23-10-2013; ADI
135.527-0/5-00, Rel. Des. Carlos Stroppa, 03-10-2007).
18. Face ao exposto, opino pela
procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei n. 9.955, de 07 de
março de 2012, do Município de Sorocaba, com os arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual.
São
Paulo, 12 de maio de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj