Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2035575-50.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba

Requerida: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei nº 10.478 de 24 de junho de 2013, de iniciativa parlamentar, do Município de Sorocaba. Normas sobre prevenção e combate a incêndios­­­­­­­­­­. Âmbito do contencioso de constitucionalidade de lei municipal. Parametricidade. Polícia administrativa.  Iniciativa legislativa concorrente. Competência suplementar do Município. Desproporcionalidade da multa. Procedência parcial.   1. Lei que dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de rede de “Sprinklers” de prevenção e combate a incêndios expressa norma atinente à polícia administrativa municipal, não se situa na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem na reserva da Administração. 2. Competência concorrente, com possibilidade de competência suplementar do Município. 3. Multa que obriga ao pagamento do valor venal do imóvel para cada evento realizado em caso de descumprimento implica violação do art. 111 da Constituição Estadual, dada a desproporcionalidade e a falta de razoabilidade do valor da multa fixado. 4. Procedência parcial.

 

 

 

                            Egrégio Tribunal:

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Sorocaba impugnando a Lei 10.478, de 24 de junho de 2013, do Município de Sorocaba, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de rede de “Sprinklers” de prevenção e combate a incêndios, suscitando contrariedade aos arts. 5º, 24, § 2º, 47, inciso II e, 111, todos da Constituição do Estado de São Paulo (fls. 01/29).

2.                Concedida a liminar (fls. 228/229), o douto Procurador-Geral do Estado se absteve da defesa da lei impugnada (fls. 240/242).

3.                A Câmara Municipal de Sorocaba prestou informações a fls. 244/255.

4.                É o relatório.

5.                A lei local, de iniciativa parlamentar, disciplina a obrigatoriedade de instalação de rede de “Sprinklers” de prevenção e combate a incêndios (arts. 1º, 2º e 3º), sob pena de sanções administrativas (arts. 4º e 5º).

6.                Trata-se de lei de polícia administrativa, condicionando o exercício de atividade particular em prol do interesse público, que não se situa na iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo nem na reserva da Administração.

7.                A iniciativa legislativa reservada é matéria de direito excepcional, sendo impositiva sua interpretação restritiva que não permite dilatação nem presunção. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

8.                Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).

9.                Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.

10.              Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:

“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

11.              Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...). A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

12.              Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

13.              Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24, § 2º e 47, II, XIV e XIX, a).

14.              Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; (c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

15.              Por outro lado, há a reserva da Administração Pública. Compete ao Chefe do Poder Executivo o exercício da direção superior da Administração, a prática de atos de administração típica e ordinária, e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual), consagrando atribuições de chefia de governo. Trata-se de espaço conferido com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

16.              Como antes acentuado, o objeto da lei não se encarta em nenhuma dessas reservas, motivo bastante para desabonar a arguição de violação de separação de poderes.

17.              O tema prevenção e combate a incêndios não consta do rol de competência exclusiva da União, listadas no art. 22 da Constituição Federal, nem do rol da competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, dispostas no art. 24 da Carta Constitucional.

18.              Não é o caso de se considerar a matéria vinculada, necessariamente, à defesa civil (art. 22, inciso XXVIII, da Constituição Federal), visto que o tema está diretamente associado a calamidades públicas e a grandes catástrofes, e não ao controle rotineiro de incêndios, embora um incêndio apenas se possa tornar uma grande catástrofe.

19.              Do mesmo modo, não se justifica considerar o assunto como afeto às normas gerais sobre Corpos de Bombeiros Militares, nos termos do art. 22, inciso XXI, da Magna Carta. O diploma legal impugnado não estabelece normas relativas à disciplina da corporação ou seu funcionamento, mas versa sobre a prevenção e combate a incêndios. Em que pese os assuntos possuírem um espaço de inter-relação evidente, obviamente, não são sinônimos.

20.              Nesse particular, para a doutrina balizada, a prevenção de incêndios é questão que se insere no âmbito do Direito Urbanístico, acerca do qual os Municípios possuem competência supletiva, com vistas a atender interesses locais. Desse modo, nos socorre Álvaro Lazarini:

“(...) o Estado pode legislar concorrentemente com a União a respeito do Direito Urbanístico, que é capítulo do Direito Administrativo, podendo, portanto, legislar sobre prevenção de incêndios, ficando ao Município a competência de suplementar essa legislação, sempre atendendo ao fim social da propriedade.” (Direito Administrativo e Prevenção de Incêndios, Revista de Direito Processual Geral, Rio de Janeiro, 45, 1992).

21.              Ademais, a questão não estaria afeta propriamente a atos de administração e gestão do Município, mas sim, genericamente, à segurança da população, podendo ser objeto de deliberação direta pelo Poder Legislativo Municipal.

22.              Acredita-se, dessa forma, que o tema prevenção e combate a incêndios, está enquadrado na competência residual dos Estados, prevista pelo art. 25, § 1º, da Constituição Federal. Naquilo que concerne a peculiaridades locais, respeitadas as normas estaduais, caberá à legislação municipal, nos termos do art. 30, incisos I e II, do mesmo diploma, dispor a respeito.

23.              Refere Hely Lopes Meirelles que, a respeito dos serviços de segurança pública desempenhados pelos Municípios, restringem-se à guarda dos seus edifícios, à prevenção contra incêndios e à extinção de animais nocivos. E, precipuamente, quanto à prevenção de incêndios diz:

“O serviço de prevenção contra incêndios, principalmente em seu aspecto preventivo, é da competência do Município. As providências cautelares devem ser exigidas desde a aprovação dos projetos de construção, para os quais o Código de Obras e as normas especiais estabelecem requisitos de segurança contra fogo e impõem dispositivos de salvamento nos edifícios de utilização coletiva, casas de diversão, recintos de espetáculos e demais estabelecimentos ou locais sujeitos à incêndio.” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 375).

24.              Desta forma, não resta dúvida que o Município tem competência legislativa para dispor acerca de prevenção de incêndios, eis que a matéria é de visível interesse local. Assim, a Lei Municipal de Sorocaba nº 10.478, de 24 de junho de 2013, nesse ponto, é constitucional, e encontra-se em plena vigência no âmbito do Município, sendo de observância obrigatória tanto para o Poder Público, através de seu dever fiscalizatório, como de observância obrigatória para os particulares.

25.              Neste sentido, fixa-se o dever de Estados e Municípios, para juntos, evitar incêndios, consoante entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“No mérito razão não assiste ao Estado do Rio de Janeiro e Município, (...) por tentarem se eximir da obrigação de reparar o dano. Porém, subsiste quanto a eles o dever de indenizar, pois tais entes da Administração Pública, com seu poder de polícia, deveriam desempenhar rigorosa fiscalização nas instâncias comerciais no que concerne aos indicadores de propagação do fogo.” (STF, Agravo de Instrumento 772810/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento 23-05-2012, DJe-115, Divulgado em 13-06-2012, Publicado 14-06-2012).

26.              Por derradeiro, como já mencionado, embora seja competência do Estado-membro, através do Corpo de Bombeiros, o exercício das atividades de defesa civil, é certo que isso não defere aos Estados, em prejuízo dos Municípios, a competência, o poder de polícia e a fiscalização de edificações e empresas que não disponham e não apresentem sistemas de segurança contra incêndio, pois esta é atividade tipicamente de interesse local, portanto, de competência específica dos Municípios (Constituição Federal, art. 30, incisos I e II). Por conseguinte, o exercício do poder de polícia e a punição dos infratores, por meio de multas, é competência do ente municipal.

27.              Não obstante, padece a norma local impugnada de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da razoabilidade, inscrito no art. 111 da Constituição do Estado, eis que o valor da multa fixado, por ser deveras excessivo, mostra-se desproporcional, não sendo razoável a cobrança relativa ao valor venal do imóvel por descumprimento à lei municipal.

28.              Esse valor não tem relação lógica e razoável com o valor jurídico cuja tutela se pretende, evidenciando sua arbitrariedade por extrapolar tanto a adequação quanto a necessidade.

29.              Face ao exposto, opino pela procedência parcial da ação, apenas para declarar a inconstitucionalidade da expressão “valor venal do imóvel” do art. 5º da Lei 10.478/2013, do Município de Sorocaba, por sua incompatibilidade com o art. 111 da Constituição
Estadual.

                  

São Paulo, 14 de maio de 2014.

 

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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