Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2039951-79.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Taquaral

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Taquaral

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 601, de 12 de novembro de 2013, de Taquaral, de iniciativa parlamentar, que “autoriza o Poder Executivo a instituir o 14º salário a todo o funcionalismo público do município de Taquaral”.

2)      Servidor Público. Remuneração. 14º Salário. Violação à reserva de iniciativa legislativa do chefe do poder executivo decorrente do princípio da separação de poderes. Lei Municipal, de iniciativa parlamentar, que institui o 14º salário a todo o funcionalismo público municipal, é incompatível com a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo para fixação da remuneração e disciplina do regime jurídico dos servidores públicos (arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4 da CE/89).

3)      Despesa pública, não prevista no orçamento, para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura, padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da Constituição Estadual.

4)      Não se amolda aos princípios de moralidade, razoabilidade e finalidade (art. 111, CE/89) nem aos requisitos de interesse público e exigências do serviço (art. 128, CE/89) a instituição de décimo quarto salário aos servidores públicos, e que consiste na outorga de vantagem pecuniária que não tem qualquer causa jurídica hígida e significa autêntica liberalidade com o dinheiro público.

5)      Procedência da ação.  

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Taquaral, tendo como alvo a Lei Municipal nº 601, de 12 de novembro de 2013, do Município de Taquaral, de iniciativa parlamentar, que institui o 14º salário a todo o funcionalismo público do Município de Taquaral.

Sustenta o autor, em apertada síntese, desrespeito aos princípios da separação de poderes e de reserva de iniciativa, porquanto a iniciativa, em se tratando de lei que versa sobre remuneração dos servidores públicos, é reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal. Aduz, ainda, violação ao artigo 25 da Constituição Estadual, pois a lei municipal provoca aumento de despesa sem a necessária indicação da respectiva receita.

Processada a ação, concedeu-se medida liminar que determinou a suspensão do ato normativo impugnado (fls. 34/35).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa da lei municipal atacada (fls. 46/48).

A Câmara Municipal prestou informações, sustentando a constitucionalidade do ato normativo (fls. 50/59).

É a síntese necessária.

A ação é integralmente procedente.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito, assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Decorrente do princípio da divisão funcional do poder é explícito que as regras acerca da remuneração e do regime jurídico dos servidores públicos são da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4, Constituição Estadual), sendo interditado seu tratamento por lei de iniciativa parlamentar ou pela lei orgânica municipal (RTJ 167/355).

Deveras, em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

Esse concerto, como se sabe, advém do caráter compulsório das regras do processo legislativo federal (arts. 2º e 61, § 1º, II, a e c, Constituição Federal) no âmbito estadual e municipal (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

Destarte, a iniciativa legislativa da lei local é incompatível com o art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual, que decorre do princípio da separação de poderes contido no art. 5º da Constituição Estadual (e que reproduzem o quanto disposto nos arts. 2º e 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Federal), aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144.

Mas não é só.

É inegável que a instituição de 14º salário a todo o funcionalismo público municipal implica sobrecarga de ônus financeiro, o que, também por isso, demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.

Com efeito, lei de iniciativa parlamentar que institui 14º salário, demandando diretamente a realização de despesa pública, não prevista no orçamento, para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura, inclusive para os exercícios seguintes, padece de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas, seja porque este reserva ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).

À luz do conceito de causa de pedir aberta elementar à sindicância objetiva de constitucionalidade (RTJ 200/91) – que torna possível o contraste da norma contestada com outros preceitos da Constituição Estadual que não foram suscitados na petição inicial – verifica-se que a lei local contraria os arts. 111 e 128 da Constituição Bandeirante.

A literatura adverte que “a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 1991, p. 111).

A lei choca-se com os arts. 111 e 128 da Constituição do Estado de São Paulo na medida em que não atende aos princípios de moralidade, razoabilidade, e finalidade, pois, para impedir a criação de mordomias lesivas ao erário, tem-se como baliza que “as vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço”.

Não se vislumbra interesse público nem socorro às exigências do serviço a título de remuneração ou indenização a outorga de vantagem pecuniária que não tem qualquer causa jurídica hígida e significa autêntica liberalidade com o dinheiro público. O art. 128 da Constituição Estadual, norma que descende diretamente dos princípios de seu art. 111, condiciona a criação normativa subordinando a outorga de vantagens aos servidores aos motivos nele indicados (interesse público e exigências do serviço).

Nem se alegue semelhança com o décimo terceiro salário, direito de estatura constitucional que os servidores públicos também gozam (art. 39, § 3º, Constituição Federal; art. 124, § 3º, Constituição Estadual), e cuja origem é a concessão de gratificação natalina.

Não há na vantagem outorgada pela lei impugnada qualquer causa razoável a justificar sua instituição.

A lei, como se vê, é manifestamente inconstitucional.

Posto isso, aguarda-se seja julgada procedente a ação.

 

São Paulo, 22 de agosto de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

mao