Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2041028-26.2014.826.0000

Requerente: Sindepark – Sindicato das Empresas de Garagens e Estacionamentos do Estado de São Paulo

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Campinas

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 11.139, de 14 de fevereiro de 2002, do Município de Campinas e seu Decreto Regulamentador nº 18.158/2013. Gratuidade de estacionamento em locais públicos e particulares para os deficientes físicos. Alteração da disciplina do uso privativo de bem público comum do povo consistente no estacionamento regulamentado (Zona Azul). Inconstitucionalidade. Reserva de Administração. Lei Municipal que interfere na atividade econômica e no direito de propriedade. Artigo 144 da Constituição Estadual. Ofensa a princípios constitucionais de obrigatória observância pelo município.  Procedência da ação. 1. É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que disciplinando o uso privativo de bem público de uso comum do povo, consistente no estacionamento regulamentado, confere isenção para deficientes físicos, nas vias públicas da Zona Azul, por se situar a matéria no âmbito da reserva de Administração decorrente do princípio da separação de poderes, ao refletir o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo. 2. Ofensa aos arts. 5º e 47, II e XIV, CE. 3. Padece de inconstitucionalidade lei municipal que, determinando a gratuidade de estacionamento em locais particulares, ofende a livre iniciativa e o direito de propriedade, princípios de observância obrigatória por Estados e Municípios. Incompatibilidade vertical com o artigo 144, CE. Procedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contestando a Lei n. 11.139, de 14 de fevereiro de 2002, de iniciativa parlamentar, do Município de Campinas. Concedida liminar (fl. 59/62), o Prefeito Municipal prestou informações, noticiando veto do Chefe do Poder Executivo ao projeto de lei aprovado, o qual foi posteriormente rejeitado por maioria absoluta da Câmara de Vereadores (fls. 74/77). O Presidente da Câmara, por seu passo, sustentou a constitucionalidade do ato normativo impugnado (fls. 110/113). A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou de sua intervenção (fls. 106/108).

2.                É o relatório.

3.                A Lei n. 11.139, de 14 de fevereiro de 2002, do Município de Campinas, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º - Obriga aos estacionamentos públicos e particulares do município a dar gratuidade de estacionamento para portadores de deficiência física.

§ 1º - Entende-se por deficiente físico, para os efeitos desta lei, toda a pessoa portadora de deficiência que está impossibilitada de locomover-se, usuária de cadeira de rodas ou muletas, com veículo especialmente adaptado ou transportada por terceiro.

§ 2º - Inclui-se, neste caso, idosos que se utilizem de aparelho que auxilie a locomoção do tipo ‘andador’ e, também, pessoa acidentada, temporariamente incapacitada, com gesso nos membros inferiores, enquanto perdurar a incapacitação.

Art. 2º - Entende-se por estacionamentos públicos, as vias públicas, (Zona Azul) e áreas públicas cedidas à exploração à entidade filantrópica ou similar e por estacionamentos particulares, todo local onde haja prestação de serviço essencial – agências bancárias, edifícios de consultórios médicos e clínicas, shopping center’s, supermercados e hipermercados, estacionamento conveniado a estes estabelecimentos, mesmo quando explorados por terceiros.

Art. 3º - Cabe à Prefeitura Municipal regulamentar por Decreto esta Lei, no prazo máximo de sessenta dias.

Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”

 

4.                A lei impugnada, de uma só vez, criou obrigações ao Chefe do Poder Executivo Municipal e aos profissionais da iniciativa privada, determinando gratuidade de estacionamento para deficientes nos espaços denominados “Zona Azul” e nos estacionamentos de clínicas médicas, shopping center’s, supermercados, agências bancárias e similares.

5.                O estacionamento remunerado rotativo em vias e logradouros públicos reflete o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo. Sob este primeiro aspecto da lei municipal contestada, denota-se a violação ao princípio da separação dos poderes pela usurpação da reserva da administração, perceptível dos incisos II e XIV do art. 47 c.c. o art. 5º, da Constituição Estadual, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144.

6.                A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

7.                Em caso similar, este egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -Lei Municipal n° 7.192 de 17/11/2008, de Jundiaí, de iniciativa de vereador, vetada pelo Prefeito, cujo veto foi rejeitado pela Câmara Municipal, sendo promulgada pelo Presidente desta - Alegação de inconstitucionalidade por violação do principio da independênciados Poderes (artigo 5º, caput, da Constituição Estadual) – Alegação procedente porque a lei disciplina como a responsabilização de empresa operadora de estacionamento rotativo de veículos - Matéria típica de Administração de competência exclusiva do Prefeito – Ação procedente” (TJSP, ADI 176.012-0/5-00, Rel. Des. Antonio C. Malheiros, v.u., 22-09-2009).

8.                Destarte, a lei local contestada, por configurar intromissão indevida do Poder Legislativo na esfera de competência privativa do Poder Executivo, evidenciando afronta ao princípio de separação de poderes, é incompatível com a Constituição Estadual.

9.                Nesse sentido, já decidiu esse egrégio Tribunal de Justiça que:

“(...) a regulamentação do estacionamento na via pública é consequência natural dessa administração, constituindo matéria de exclusiva atribuição do Prefeito, não cabendo à Câmara Municipal dizer que os integrantes desta ou daquela categoria profissional devem estacionar seus veículos aqui ou acolá. É matéria de execução e não de legislação. No que diz respeito à isenção de pagamento nas “Zonas Azuis”, também fica caracterizada a invasão na esfera de poder do Executivo. As ‘Zonas Azuis’ produzem receita que ingressa no orçamento municipal. Leis que afetam a produção da receita são de iniciativa do Prefeito” (Arguição de Inconstitucionalidade de Lei na Apelação Cível 30.581-0/5, São Paulo, Órgão Especial, Rel. Des. Barbosa Pereira, v.u., 10-04-1996).

10.              Mas não é só. A lei também padece de inconstitucionalidade no que diz respeito à gratuidade de estacionamento em locais particulares.

11.              Com efeito, o ato normativo em questão institui o estacionamento gratuito em bancos, shopping centers, hiper e supermercados e demais locais onde haja prestação de serviço essencial.

12.              Referido dispositivo é inconstitucional por contrariar os artigo 144 da Constituição do Estado de São Paulo.  A dicção de tal dispositivo é a seguinte:

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição."

13.              Na Constituição da República, expressamente referida pelo artigo 144 da Constituição Estadual, tem-se:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá sua função social;”

''Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência (...);”

“Art. 174 - Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.''

14.              A lei municipal objurgada, ao estipular a gratuidade de estacionamento para deficientes nos locais do setor privado, interfere na ordem econômica, ofendendo a livre iniciativa, um dos fundamentos da República.

15.              A oferta de estacionamento aos consumidores – é de sabença geral - envolve uma série de encargos e despesas financeiras, tais como a manutenção de manobristas e vigilantes, aquisição de câmeras e dispositivos de segurança, resultando em custo econômico nada desprezível, principalmente quando se leva em consideração os impostos e demais encargos da folha de pagamento.  É lícito, pois, que, por meio de relação contratual, tal custo seja repassado aos consumidores usuários do serviço. 

16.              A lei impugnada, a par de avançar em seara de competência da União (Direito Civil e Direito Econômico), conspurca tanto o direito de propriedade como a própria livre iniciativa, interferindo na ordem econômica instituída pela Constituição.

17.              Sobre o fundamento e a natureza da ordem econômica, ensina José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 37ª edição, Malheiros, pag. 800:

“A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar significa que, embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV).

18.              E sobre a livre iniciativa, proclama o insigne MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Saraiva, v. 2, p. 170):

''Livre iniciativa. O primeiro dos princípios que devem reger a ordem econômica e social, para a realização do desenvolvimento nacional e a justiça social, é a liberdade de iniciativa. Esta deflui de direitos individuais consagrados no art. 5° da Constituição. De fato, decorre por um lado da liberdade de trabalho e concerne intimamente à liberdade de associação. A consagração da liberdade de iniciativa, como primeira das bases da ordem económica e social, significa que é através da atividade socialmente útil a que se dedicam livremente os indivíduos, segundo suas inclinações, que se procurará a realização da justiça social e, portanto, do bem-estar social. Como reflexo da liberdade humana, a liberdade de iniciativa mereceu acolhida nas encíclicas papais de caráter social, inclusive na mencionada, a 'Mater et Magistra', de João XXIII. Esta, textualmente, afirma que "no campo econômico, a parte principal compete à iniciativa privada dos cidadãos, quer ajam em particular, quer associados de diferentes maneiras a outros" (2a Parte, n. I). Daí decorre que ao Estado cabe na ordem econômica posição secundária, conquanto importante, já que sua ação deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade. E deve ser tal que "não reprima a liberdade de iniciativa particular mas antes a aumente para a garantia e proteção dos direitos essenciais de cada indivíduo".  O desdobramento desse princípio é o que está adiante, no art. 173 da Constituição. Neste, reconhece-se competir à empresa privada organizar e explorar as atividades econômicas. Igualmente, nele se fixa o papel do Estado, ao qual é dado apoiar e suplementar a atividade privada. Entretanto, a liberdade de iniciativa não é ilimitada na Constituição, conforme se verá adiante.  Liberdade contratual. Os autores franceses, como Laubadère, consideram esta liberdade compreendida na livre iniciativa (cf. André de Laubadère e Pierre Delvolvé, Droit public économique, 4. ed. Paris, Dalloz, 1983, n. 142). Na verdade, ela decorre da liberdade 'tout court', da qual é uma das mais lídimas expressões' (destacamos).

19.              Não se ignora que, nos termos da Constituição, a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII).

20.              Ocorre que a gratuidade estabelecida, malgrado se reconheça a boa intenção que animou o legislador municipal, não guarda relação com esse princípio, pois do fato de o beneficiário da lei ser deficiente não decorre, necessariamente, hipossuficiência econômica a justificar a gratuidade estabelecida.

21.              Ao revés, não se pode descartar a possibilidade de que indivíduos, dotados de plena capacidade econômica e com total possibilidade de, sem prejuízo do próprio sustento, arcar com o preço do estacionamento, venham a ser beneficiados com a gratuidade concedida pela edilidade.

22.              Posto isso, o parecer é pela procedência da ação, para que a lei municipal impugnada seja declarada incompatível com o artigo 144 da Constituição Estadual.

                  

São Paulo, 03 de junho de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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