Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo n. 2041153-91.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

EMENTA: Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.237, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos.  Publicidade das licenças de funcionamento expedidas. Iniciativa parlamentar. Violação ao princípio da separação de poderes inexistente. Inadmissibilidade da alegação de falta de recursos financeiros. Improcedência da ação. 1. Não há lugar para arguição de violação do princípio da separação de poderes em norma local que aumenta o grau de transparência administrativa determinando a divulgação das licenças de funcionamento expedidas, referentes a imóveis com capacidade superior a 50 (cinquenta) pessoas, face à inexistência de reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo ou de reserva da Administração. 2. Improcedente também a alegação de geração de despesas desacompanhada de indicação de sua cobertura porque a lei local não criou encargo novo para a Administração Pública municipal em razão da preexistência do dever de divulgação oficial de informações.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 7.237, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que obriga a publicidade das licenças de funcionamento expedidas, referentes a imóveis com capacidade superior a 50 (cinquenta) pessoas no Município, sob alegação de violação aos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 2, art. 37, 25, 47, II e XIV, 144, 174 e art. 176, todos da Constituição Estadual.

Concedida liminar (fls. 40/42), a douta Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 53/55) e as informações foram prestadas (fls. 57/66).

É o relatório.

O pedido não procede.

A lei impugnada assim dispõe:

“Art. 1º Fica o Poder Executivo Municipal obrigado a disponibilizar, todo dia 30 (trinta) de cada mês, no site oficial da Prefeitura do Município de Guarulhos:

I – a relação de licenças de funcionamento expedidas, com suas respectivas datas de validade, dos imóveis com instalação e funcionamento de atividades comerciais, industriais, institucionais, de prestação de serviços e similares com capacidade de lotação superior a 50 (cinquenta) pessoas;

II – o endereço completo dos imóveis, o nome constante dos estatutos da empresa, o nome utilizado para fins comerciais e de propaganda, a lotação máxima permitida e o nível máximo de ruído (som) permitido para o local.

Art. 2º Esta Lei será regulamentada por meio de Decreto no prazo de 90 (noventa) dias.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”

Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

 

A regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 

Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

 

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

 

Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144). Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa ao objeto da lei impugnada.

Tampouco o assunto se insere no art. 47, que institui a competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo que consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração - que veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A questão é de incremento dos níveis de transparência administrativa, permitindo à população o conhecimento e a vigilância sobre as ações estatais, inclusive no que toca à proteção urbanística (licenças de funcionamento de imóveis).

Ela se insere no âmbito do princípio da publicidade administrativa, prevista no art. 111 da Constituição Estadual.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que:

“Lei disciplinadora de atos de publicidade do Estado, que independem de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual, visto que não versam sobre criação, estruturação e atribuições dos órgãos da Administração Pública. Não-incidência de vedação constitucional (CF, artigo 61, § 1º, II, e)” (STF, ADI-MC 2.472-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Correa, 12-03-2002, v.u., DJ 03-05-2002, p. 13).

E este egrégio Tribunal de Justiça julgou que:

“Ação declaratória de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar.

1. Compete ao Executivo dispor a respeito dos serviços públicos criando-os, expandindo-os, reduzindo-os ou extinguindo-os consubstanciando, com exclusividade, a direção superior da administração (art. 47, II, CE).

2. A Lei de iniciativa parlamentar, que não cria serviço oneroso por já existir, mas só dispõe sobre inserção no site de dados objetivos da transparência da administração, quer em relação ao Executivo quer ao Legislativo, não viola os artigos 5º, 25 e 47, II, c.c. 144 da CE.

Ação julgada improcedente” (TJSP, ADI 0196610-92-2010-8-260000, Órgão Especial, Rel. Des. Laerte Sampaio, v.u., 09-02-2011).

Tampouco é admissível a arguição de ofensa aos arts. 25, 47, XVII, 174 e 176, I, da Constituição Estadual. A lei local não criou encargo novo para a Administração Pública municipal porque a divulgação oficial de informações, para além da publicação dos atos da Administração no órgão oficial, já existe; objetiva-se apenas, com a lei impugnada, prescrever conteúdo suficiente da publicidade governamental afeta às licenças de funcionamento expedidas, referente aos imóveis com capacidade superior a 50 (cinquenta) pessoas.

Neste sentido já se pronunciou este Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n° 3.503, de 19 de março de 2012, de iniciativa parlamentar, que estabelece a disponibilização, pelo Poder Executivo, na página do Município na internet, do "Portal da Transparência Pública de Ubatuba" – Vício de iniciativa não identificado - Lei em comento que apenas versou tema de interesse geral da população, concernente a informações relativas à atuação da Administração Pública Municipal, sem qualquer relação com matéria estritamente administrativa, que seria afeta apenas ao Poder Executivo - Acesso da população a registros administrativos e a informações sobre atos de governo que, ademais, se insere dentre os direitos e garantias fundamentais previstos na CF (art. 5o, XXXIII), tendo seu exercício regulado na Lei Federal n° 12.527/2011 - Município de Ubatuba que, outrossim, já possui página própria na rede mundial de computadores, a qual requer permanente atualização e manutenção, serviços para os quais certamente funcionários já foram designados - Determinação de inserção de novos dados, na forma definida na legislação ora impugnada, que, destarte, não representa qualquer incremento na despesa do ente público local e nem tampouco intromissão nas atribuições funcionais dos servidores envolvidos, uma vez que atinentes às mesmas obrigações que já lhes haviam sido destinadas - Inocorrência, nessa linha, de violação ao princípio da separação dos poderes – Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0270082-58.2012.8.26.0000- TJSP, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. em 26/06/2013)

         Feitas estas considerações, manifesta-se pela improcedência do pedido, não se reconhecendo a inconstitucionalidade da Lei n. 7.237/2014, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos.

 

 

São Paulo, 21 de maio de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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