Parecer
Processo n. 2042147-22.2014.8.26.0000
Requerente: Associação Nacional de Restaurantes
Requeridos: Prefeito e Câmara Municipal de Americana
Ementa: Constitucional. Administrativo. Processo Civil. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 5.537, de 16 de setembro de 2013, do Município de Americana. Associação nacional. Ilegitimidade ativa. Extinção do processo sem resolução do mérito. Obrigação imposta a restaurantes e estabelecimentos similares. Oferta de refeições à la carte, em porções ou sob rodízio com desconto de 50% ou de servir meia porção a pessoas cujo estômago tenha sido reduzido por cirurgia bariátrica ou qualquer outra gastroplastia. Lei de iniciativa parlamentar. Iniciativa legislativa concorrente. Ofensa à razoabilidade por agravo à proporcionalidade. Cerceio indevido da liberdade de empresa e invasão à competência normativa alheia. 1. Associação nacional de categoria econômica não é legitimada ativa para ação direta de inconstitucionalidade em que se contrasta lei municipal em face da Constituição Estadual. 2. Extinção do processo sem resolução do mérito. 3. Lei local, de iniciativa parlamentar, que obriga restaurantes e estabelecimentos similares de oferta de refeições à la carte, em porções ou sob rodízio com desconto de 50% ou de servir meia porção a pessoas cujo estômago tenha sido reduzido por cirurgia bariátrica ou qualquer outra gastroplastia. 4. Lei de polícia administrativa que não se insere na iniciativa legislativa reservada, mas, na concorrente. 5. Norma que, contudo, não se adstringe à predominância do interesse local, invadindo a esfera de competência normativa alheia. 6. Agravo à liberdade de empresa caracterizado pela falta de proporcionalidade da medida. 7. Procedência da ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela
Associação Nacional de Restaurantes contestando a Lei n. 5.537, de 16 de
setembro de 2013, do Município de Americana, de iniciativa parlamentar, que
dispõe sobre a obrigatoriedade da concessão de desconto ou meia porção para
pessoas que realizaram cirurgia bariátrica ou qualquer outra gastroplastia em
restaurantes, sob alegação de violação aos arts. 47, II e
XIV, e 111, da Constituição Estadual.
2. Concedida
liminar, a douta Procuradoria-Geral do Estado se absteve da defesa da lei
objurgada enquanto Prefeito
e Câmara Municipal de Americana prestaram informações defendendo sua
constitucionalidade baseados, entre outros argumentos, carência da ação pela
omissão na indicação de dispositivo constitucional violado e, no mérito, na
inexistência de reserva de iniciativa legislativa e na proteção à saúde.
3. É o
relatório.
4. Preliminarmente, deve a ação ser extinta sem exame do mérito, por
falta de legitimidade ativa da requerente.
5. De acordo com o art. 90, V, da
Constituição Paulista, são legitimadas para propor ação direta de
inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
entidades de atuação local, explicitamente “entidades sindicais ou de classe,
de atuação estadual ou municipal, demonstrando o interesse jurídico no caso”. A
requerente, todavia, é entidade de cunho nacional, não sendo legitimada ativa
para a demanda.
6. Este raciocínio está calcado na
simetria das questões jurídicas a serem examinadas no âmbito do controle de
constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal, de um lado, e pelos
tribunais estaduais, de outro: para o controle em face da Constituição da
República, o art. 103, IX, legitima entidades de âmbito nacional; enquanto para
o controle em face da Constituição do Estado, o art. 90, V, da Carta Paulista
legitima entidades de âmbito municipal ou estadual.
7. Não faz sentido, dentro dessa
sistemática constitucional - e considerando que as regras constitucionais não
são compostas por palavras ou expressões inúteis – imaginar que uma entidade de
âmbito nacional possa atuar no controle estadual, ou mesmo a situação inversa,
ou seja, que uma entidade local (municipal ou estadual) possa atuar no controle
nacional de constitucionalidade da lei. É por essa razão que a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de só admitir a iniciativa, em
ações diretas, de sindicatos ou entidades de classe se forem de âmbito nacional
(ADI 3.153-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 12-8-2004,
Plenário, DJ de 9-9-2005; ADI 2.797 e ADI 2.860, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 15-9-2005, Plenário, DJ de 19-12-2006; ADI 15, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007).
8. Ora, se o entendimento pacífico é
de que só entidades de âmbito nacional podem propor ações diretas junto à
Suprema Corte, é natural que, no plano do controle estadual só possam fazê-lo
entidades de representação local (municipais ou estaduais).
9. A preliminar de carência da ação
se envolve com o mérito, e com ele deverá ser examinada.
10. A ação deve ser julgada procedente.
11. Os
dispositivos constitucionais suscitados pela requerente para acusar a
inconstitucionalidade formal – incisos II e XIV do art. 47 da Constituição
Estadual – são inaplicáveis. Eles tratam da reserva da Administração – espaço
conferido ao Poder Executivo para edição de regras sem interferência do Poder
Legislativo, em caráter privativo, sobre assuntos da gestão ordinária. Decididamente, não é o caso. A lei objeto de
impugnação é típica lei de polícia administrativa, assunto que por envolver a
esfera de liberdades demanda lei em sentido formal à luz do princípio da
legalidade inscrito no art. 111 da Constituição Estadual que reproduz o art. 37
da Constituição Federal. E não emana do art. 24, § 2º, da Constituição
Estadual, que cunha a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder
Executivo, qualquer disposição a respeito.
12. Como reiteradamente tenho exposto,
a iniciativa legislativa reservada por ser taxativa e excepcional é
interpretada restritivamente e não se presume, pois, a regra, em obséquio ao princípio da separação
dos poderes, é iniciativa legislativa comum ou concorrente (arts. 2º e 61, caput e § 1º, Constituição Federal;
arts. 5º e 24, § 2º, Constituição Estadual), não sendo presumida.
13. Passo a apreciar a arguição de
ofensa ao art. 111 da Constituição Estadual.
14. Em verdade, e salvo o exame da
proporcionalidade da lei que também foi suscitado a esse título, a requerente
alega contrariedade à competência normativa concorrente entre União e Estados
sobre produção e consumo e falta de interesse local (arts. 24, V e 30, I,
Constituição Federal) e à liberdade de iniciativa econômica (arts. 1º, III, 170
e 174, Constituição Federal), o que bem poderia ser invocado pelo contraste da
lei municipal com a norma remissiva do art. 144 da Constituição Estadual que
determina também aos Municípios a observância dos princípios estabelecidos na
Constituição Federal.
15. Com efeito, o art. 144 da
Constituição Estadual - que reproduz o art. 29, caput, da Constituição Federal - determina a observância na esfera
municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da
Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na
medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete
para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo
Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de
lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes,
31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello,
18-10-2010, DJe 26-10-2010).
16. O princípio federativo está
assentado nos arts. 1º e 18 da
Constituição Federal. Através dele, a Carta Magna estabelece os termos da
repartição de competências. Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a
dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo constituinte
em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição
Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como
a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito
Federal, e Municípios, em relação à União. Anota a propósito Fernanda Dias
Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da
repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona
a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de
descentralização”. Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a
repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o
elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’,
‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de
1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, pp. 19-20).
17. A lei municipal cuida do comércio de
refeições excedendo os limites da autonomia municipal, uma vez que é à União
que o art. 22, I, da Constituição Federal atribui privativamente à União
legislar sobre norma que se reveste de nítido caráter comercial (direito
civil).
18. A disposição normativa local trata
de matéria de interesse geral (e não apenas estadual ou local), na medida em
que a categoria ou classe de pessoas que objetiva tutelar não se restringe em
sua ocorrência nos limites do território comunal. A proteção do consumidor que
se submeteu a cirurgia bariátrica ou qualquer outra gastroplastia é tema que
não se confina à Americana, se espargindo a todo o território nacional. Embora
o art. 30, inciso I, da Constituição Federal confira ao legislador Municipal
competência para “legislar sobre assuntos
de interesse local”, a hipótese em exame não se reveste de simples
interesse local. Mutatis mutandis,
ilustra a questão o seguinte precedente do Pretório Excelso:
“A competência dos Estados para legislar sobre a proteção e defesa da saúde é concorrente à União e, nesse âmbito, a União deve limitar-se a editar normas gerais, conforme o artigo 24, XII, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal (...)." (ADI 1.278, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 16-5-07, DJ de 1º-6-07).
19. Não bastasse, a Constituição
Federal prevê também, no art. 170, caput,
e respectivo inciso IV, como princípios gerais da atividade econômica, entre
outros a livre iniciativa e a livre concorrência. Tais princípios também são
aplicáveis aos Estados e Municípios por força do art. 144 da Constituição
Paulista. A lei local regulou indevidamente atividade comercial. Se o Município tem autonomia para disciplina da polícia do comércio,
não pode exercê-la para além dos limites daquilo que consubstancie a
predominância do interesse local. Neste sentido já se decidiu
que:
“(...) 2. A competência constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. (...)” (RT 851/128).
20. A ofensa à proporcionalidade propriamente dita também macula a lei contestada. Ninguém é compelido à ingestão de porção inteira, podendo dividi-la ou, ainda, pode procurar estabelecimentos que ofereçam porções a preço mediante pesagem, como sugerido. A medida, portanto, não passa pelo teste de adequação, necessidade e proporcionalidade, constituindo excesso normativo.
21. Face ao exposto, opino, preliminarmente, pela extinção do processo sem resolução do mérito por ilegitimidade ativa e, se superada a preliminar, pela procedência da ação.
São
Paulo, 26 de junho de 2014.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
em exercício
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