Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2042754-35.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Tietê

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Tietê

 

 

 

Ementa: Constitucional. Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Decreto Legislativo n. 02, de 17 de fevereiro de 2014, da Câmara Municipal de Tietê. Sustação do Decreto n. 5.521/13. Tabela de valores para lançamento de ofício do ISS (Imposto sobre serviços de qualquer natureza). Exorbitância do poder regulamentar. Invasão da reserva legal. Improcedência da ação. 1. A definição dos elementos da obrigação tributária – entre eles, a base de cálculo – é matéria da exclusiva reserva legal do tributo em foco (ISS), exorbitando o poder regulamentar decreto executivo que majora valores, não se tratando de mera atualização monetária. 2. Consectária compatibilidade constitucional do decreto legislativo que o sustou. 3. Improcedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito Municipal de Tietê contesta o Decreto Legislativo n. 02, de 17 de fevereiro de 2014, da Câmara Municipal de Tietê, que sustou o Decreto n. 5.521/13, que dispõe sobre a adoção da tabela de valores para o lançamento de ofício do ISS nos termos do art. 84, § 1º, da Lei Complementar n. 12/06, alegando incompatibilidade com os arts. 5º, 20, IX, 37 e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

2.                Concedida a liminar, a Câmara Municipal de Tietê prestou informações defendendo a validade da norma impugnada porque houve aumento de valores, diferentemente de mera atualização monetária, o que caracteriza exorbitância do poder regulamentar. O douto Procurador-Geral do Estado se absteve da defesa da norma objurgada. Há notícia da interposição de agravo e de pedido de suspensão da liminar.

3.                É o relatório.

4.                Em pauta decreto legislativo que susta os efeitos de decreto executivo que alterou tabelas de valores para os fins de lançamento do imposto, sob o fundamento de exorbitância do poder regulamentar.

5.                A petição inicial sustenta a inconstitucionalidade do decreto legislativo por ofensa à separação de poderes fulcrada na inocorrência de excesso regulamentar e invasão da competência do Poder Executivo.

6.                A ação direta de inconstitucionalidade é cabível, conforme já decidido:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL - DECRETO LEGISLATIVO - CONTEÚDO NORMATIVO - SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DE ATO EMANADO DO GOVERNADOR DO ESTADO - CONTROLE PARLAMENTAR DA ATIVIDADE REGULAMENTAR DO PODER EXECUTIVO (CF, ART. 49, V) - POSSIBILIDADE DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA - AÇÃO DIRETA CONHECIDA. REDE ESTADUAL DE ENSINO - CALENDÁRIO ESCOLAR ROTATIVO - PREVISÃO NO PLANO PLURIANUAL - ALEGADA INOBSERVÂNCIA DO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - EXERCÍCIO DE FUNÇÃO REGULAMENTAR PELO EXECUTIVO - RELEVÂNCIA JURÍDICA DO TEMA - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. - O CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE TEM OBJETO PRÓPRIO. INCIDE EXCLUSIVAMENTE SOBRE ATOS ESTATAIS PROVIDOS DE DENSIDADE NORMATIVA. A NOÇÃO DE ATO NORMATIVO, PARA EFEITO DE FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE EM TESE, REQUER, ALÉM DE SUA AUTONOMIA JURÍDICA, A CONSTATAÇÃO DO SEU COEFICIENTE DE GENERALIDADE ABSTRATA, BEM ASSIM DE SUA IMPESSOALIDADE. - O DECRETO LEGISLATIVO, EDITADO COM FUNDAMENTO NO ART. 49, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, NÃO SE DESVESTE DOS ATRIBUTOS TIPIFICADORES DA NORMATIVIDADE PELO FATO DE LIMITAR-SE, MATERIALMENTE, À SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DE ATO ORIUNDO DO PODER EXECUTIVO. TAMBÉM REALIZA FUNÇÃO NORMATIVA O ATO ESTATAL QUE EXCLUI, EXTINGUE OU SUSPENDE A VALIDADE OU A EFICÁCIA DE UMA OUTRA NORMA JURÍDICA. A EFICÁCIA DERROGATÓRIA OU INIBITÓRIA DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DOS ATOS ESTATAIS CONSTITUI UM DOS MOMENTOS CONCRETIZADORES DO PROCESSO NORMATIVO. A SUPRESSÃO DA EFICÁCIA DE UMA REGRA DE DIREITO POSSUI FORÇA NORMATIVA EQUIPARÁVEL A DOS PRECEITOS JURIDICOS QUE INOVAM, DE FORMA POSITIVA, O ORDENAMENTO ESTATAL, EIS QUE A DELIBERAÇÃO PARLAMENTAR DE SUSPENSÃO DOS EFEITOS DE UM PRECEITO JURÍDICO INCORPORA, AINDA QUE EM SENTIDO INVERSO, A CARGA DE NORMATIVIDADE INERENTE AO ATO QUE LHE CONSTITUI O OBJETO. O EXAME DE CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO LEGISLATIVO QUE SUSPENDE A EFICÁCIA DE ATO DO PODER EXECUTIVO IMPÕE A ANÁLISE, PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DOS PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DO EXERCÍCIO DESSA EXCEPCIONAL COMPETÊNCIA DEFERIDA A INSTITUIÇÃO PARLAMENTAR. CABE A CORTE SUPREMA, EM CONSEQUÊNCIA, VERIFICAR SE OS ATOS NORMATIVOS EMANADOS DO EXECUTIVO AJUSTAM-SE, OU NÃO, AOS LIMITES DO PODER REGULAMENTAR OU AOS DA DELEGAÇÃO LEGISLATIVA. A FISCALIZAÇÃO ESTRITA DESSES PRESSUPOSTOS JUSTIFICA-SE COMO IMPOSIÇÃO DECORRENTE DA NECESSIDADE DE PRESERVAR, ‘HIC ET NUN’, A INTEGRIDADE DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. - A PREVISÃO DO CALENDÁRIO ROTATIVO ESCOLAR NA LEI QUE INSTITUI O PLANO PLURIANUAL PARECE LEGITIMAR O EXERCÍCIO, PELO CHEFE DO EXECUTIVO, DO SEU PODER REGULAMENTAR, TORNANDO POSSÍVEL, DESSE MODO, A IMPLANTAÇÃO DESSA PROPOSTA PEDAGÓGICA MEDIANTE DECRETO. POSIÇÃO DISSIDENTE DO RELATOR, CUJO ENTENDIMENTO PESSOAL FICA RESSALVADO” (RTJ 143/510).

7.                A matéria gira em torno do art. 49, V, da Constituição Federal, reproduzido no art. 20, IX, da Constituição Estadual, que, à luz do princípio da divisão funcional do poder, legitima o Parlamento à sustação de ato normativo do Poder Executivo que exorbite do poder regulamentar, e, por sua própria natureza, concita à apreciação da constitucionalidade do ato normativo de autoria do Chefe do Poder Executivo. É conflito que se radica na disputa entre os Poderes Executivo e Legislativo na condução política dos negócios públicos, derivando para a funcionalidade primordial do princípio da legalidade como garantia dos direitos dos indivíduos, notadamente no domínio das relações tributárias. Neste sentido:

“REGULAMENTO - BALIZAS - SUSTAÇÃO - EXECUTIVO VERSUS LEGISLATIVO. Mostra-se constitucional decreto legislativo que implique sustar ato normativo do Poder Executivo exorbitante do poder regulamentar. TETO - APLICAÇÃO - LEI E REGULAMENTO. O regulamento pressupõe a observância do objeto da lei. Extravasa-a quando, prevista a aplicação do teto de remuneração de servidores considerada a administração direta, autárquica e fundacional, viabiliza a extensão às sociedades de economia mista e empresas públicas” (STF, ADI 1.553-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 13-05-2004, v.u., DJ 17-09-2004, p. 52).

8.                O fundamento do decreto legislativo reside na inadmissibilidade de alteração dos valores da tabela para efeito de lançamento ex officio do imposto por decreto regulamentar na medida em que não se restringiu a mera atualização monetária.

9.                Não há dúvida que a lei tributária local confere ao Poder Executivo competência normativa para a edição da tabela de valores, pois, o decreto legislativo contestado manteve expressamente no art. 2º a vigência do ato normativo anterior e revogado pelo Decreto n. 5.521/13 – o Decreto n. 3.178/05 – que dispunha com idêntico escopo.

10.              Cotejados esses dois atos normativos regulamentares percebe-se, inequivocamente, que a tabela estabelece valores para o cálculo do imposto, prevendo o Decreto n. 5.521/13 a atualização monetária periódica de acordo com a variação dos respectivos índices que funcionam como paradigmas.

11.              Pode decreto regulamentar disciplinar a matéria? A tabela estipula os valores dos serviços de construções em geral. Seu embasamento – expressamente invocado no texto normativo impugnado – é o § 1º do art. 84 da Lei Complementar n. 12/06, in verbis:

“A Secretaria Municipal de Finanças poderá proceder ao lançamento de ofício para cobrança do imposto incidente nos serviços descritos nos subitens 7.02, 7.04 e 7.05 da tabela I, bem como para outros casos, na forma a ser fixada em Regulamento”.

12.              A lei delega ao Poder Executivo o lançamento ex officio na forma a ser estabelecida no regulamento, mas, não lhe confere a possibilidade de definição de um dos elementos da obrigação tributária, isto é, a base de cálculo.

13.              Ora, o decreto regulamentar invade matéria que é do domínio da reserva absoluta de lei ex vi do art. 163, I, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 150, I, da Constituição Federal. Se é inadmissível “a delegação a decreto de matérias albergadas sob o manto da reserva legal” (RTJ 220/50), é inconstitucional o regulamento avançar em assunto que não lhe compete. Essa é a orientação prevalente, como estampa o aresto cuja ementa é adiante transcrita:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTÁRIA - DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA - MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO - POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - CONVENIÊNCIA DA SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DAS NORMAS LEGAIS IMPUGNADAS - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. - A essência do direito tributário - respeitados os postulados fixados pela própria Constituição - reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto consubstanciado na Carta da Republica, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributaria. Considerações em torno das dimensões em que se projeta o princípio da reserva constitucional de lei. - A nova Constituição da Republica revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo. A delegação legislativa externa, nos casos em que se apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de formação não se ajusta a disciplina ritual fixada pelo art. 68 da Constituição. A vontade do legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária, objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de competência normativa primaria, revela-se írrita e desvestida de qualquer eficácia jurídica no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva constitucional de lei. - Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado - como o Poder Executivo - produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. O legislador, em consequência, não pode deslocar para a esfera institucional de atuação do Poder Executivo - que constitui instância juridicamente inadequada - o exercício do poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas - (a) a outorga de isenção fiscal, (b) a redução da base de calculo tributária, (c) a concessão de crédito presumido e (d) a prorrogação dos prazos de recolhimento dos tributos -, as quais se acham necessariamente submetidas, em razão de sua própria natureza, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. - Traduz situação configuradora de ilícito constitucional a outorga parlamentar ao Poder Executivo de prerrogativa jurídica cuja sedes materiae - tendo em vista o sistema constitucional de poderes limitados vigente no Brasil - só pode residir em atos estatais primários editados pelo Poder Legislativo” (STF, ADI-MC 1.296-PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 14-06-1995, DJ 10-08-1995, v.u., p. 23.554).

14.              E nem se diga tratar-se de mera atualização monetária de valores, pois, como mostrou a fundamentação do decreto legislativo houve efetiva majoração de caráter real.

15.              Destarte, o decreto legislativo não padece de inconstitucionalidade porque houve exorbitância do poder regulamentar.

16.              Face ao exposto, opino pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 03 de julho de 2014.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

em exercício

 

wpmj