PARECER EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo n.º 2046264-56.2014.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Jacareí

Objeto de impugnação: Lei Municipal n.º 5807, de 07 de março de 2014, de Jacareí.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 5807/2014, de Jacareí, de origem parlamentar, que dispôs sobre a prática de assédio moral no âmbito da administração pública direta e indireta autárquica e fundacional do Município de Jacareí. Matéria pertinente ao funcionalismo público municipal. Iniciativa reservada ao Executivo. Caracterizada a violação dos arts. 5.º e 24, § 2.º, 4, da Constituição do Estado de São Paulo. Precedentes do TJ/SP. Ação procedente.

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar, promovida pelo Prefeito Municipal de Jacareí, por meio da qual é impugnada a validade formal e material do ato legislativo em epígrafe, de origem parlamentar, que apresenta a seguinte redação:

 

 

Lei nº 5.807/2014

Dispõe sobre o assédio moral no âmbito da Administração Pública Direta, Indireta, Autárquica e Fundacional do Município de Jacareí.

 

O Vereador Edson A. A. Guedes Filho, Presidente da Câmara Municipal de Jacareí, de conformidade com o § 7º do Artigo 43 da Lei Orgânica do Município de Jacareí, faz saber que a Câmara Municipal aprovou e ele promulga a seguinte lei.

 

Art. 1º  A conduta considerada repetitiva, prolongada, ofensiva ou humilhante será considerada assédio moral na esfera da Administração Pública Direta, Indireta Autárquica e Fundacional do Município de Jacareí, conforme restar apurado.

 

Art. 2º O assédio moral será caracterizado pela exposição do servidor público a situações vexatórias, degradantes, humilhantes e constrangedoras, durante a jornada de trabalho.

 

Art. 3º O servidor público que sofrer qualquer tipo de ofensa ou constrangimento, tendo violada a sua dignidade pessoal, poderá denunciar o assédio moral, gerando a apuração em âmbito administrativo, para imposição de sanções na forma do Decreto Municipal nº 630, de 06 de maio de 2010.

Art. 4º A fiscalização do cumprimento desta Lei ficará a critério da autoridade de cada órgão público ou da pessoa por ele designada.

 

Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua

publicação.”

 

Deferida a liminar pelo digno Relator sorteado, Des. Guerrieri Rezende (fls. 86/87), promoveram-se a citação da Câmara de Vereadores de Jacareí (fls. 88) e do digno Procurador Geral do Estado (fls. 93/94).

A Câmara Municipal de Jacareí prestou as informações lhe foram solicitadas, sustentando a constitucionalidade da lei impugnada (fls. 96/102).

O Procurador-Geral do Estado, por seu turno, declinou de promover a defesa do ato normativo impugnado, ante a ausência de interesse estadual na preservação de lei que trata de matéria exclusivamente local (fls. 151/153).

É a síntese necessária.

A ação deve ser julgada procedente.

Na ordem constitucional em vigor, os Municípios foram dotados de autonomia administrativa e normativa – de conformidade com o disposto nos arts. 18, 29, caput, e 30, incisos I a VII, da Constituição da República, e no art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo –, e, consequentemente, podem legislar sobre os assuntos que sejam de interesse local, inclusive a organização do funcionalismo, o seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria, etc.

É bem de ver, porém, que a autonomia administrativa e normativa não pode ser confundida com soberania, porquanto a própria Constituição – que é a fonte da qual promana todo o poder estatal - impõe limites à atuação dos Municípios, ao exigir deles obediência aos princípios estabelecidos nela própria e na Constituição do respectivo Estado, conforme, aliás, reza o seu art. 29, ‘verbis’: “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (...)”.

Pois bem, dentre os princípios constitucionais estaduais cuja observância é obrigatória pelos Municípios destaca-se aquele previsto no art. 24, § 2.º, item 4, da Carta Paulista, por força do qual somente o chefe do Poder Executivo detém a iniciativa das leis que disponham sobre “servidores públicos, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria.  

Trata-se de simples reprodução de norma de observância obrigatória da Constituição da República, mais precisamente o seu art. 61, § 1.º, incisos I e II, alíneas “a” a “f”, que instituiu a reserva de iniciativa sobre determinadas matérias em favor do Presidente da República, cumprindo rememorar que, nos termos da jurisprudência assente no Supremo Tribunal Federal, “as regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos Estados-membros (também extensíveis aos Municípios) em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada – ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição da República.” (ADI 1.434-0/SP, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, DJ, Seção I, 3 de fevereiro de 2000, pág. 3).

Na espécie, ao editar a Lei n.º 5807/14, de origem iniciativa parlamentar, fixando regras pertinentes ao funcionalismo público municipal, a Câmara de Vereadores de Jacareí usurpou competência privativa do Prefeito, no campo da iniciativa reservada das leis, donde configurada a violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes, que vem expressamente consagrado no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Tal entendimento, vale ressaltar, é o que tem prevalecido no âmbito desse egrégio Tribunal de Justiça, conforme se vê das ementas abaixo reproduzidas:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Ação objetivando a desconstituição da Lei n. 2.117, de 25 de abril de 2005, do Município de General Salgado, de iniciativa parlamentar, que, alterando o regime jurídico do funcionalismo e tipificando o assédio moral, dispõe sobre a sua caracterização, nas dependências da Administração Pública Municipal, e aplicação de penalidades à sua prática, inclusive pelo Chefe do Poder Executivo ou Legislativo, e dá outras providências, cujo veto, rejeitado pela Câmara – Violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes – Interferindo em atividade tipicamente administrativa, e com evidente invasão de atribuição reservada ao Poder Executivo, a hostilizada lei arrosta com o princípio da independência e harmonia dos Poderes, instituído pelo artigo 5º da Constituição do Estado – Normas legais que tratam da definição de infração, inclusive, de natureza político-administrativa, bem como de seu processo e julgamento, flagrantemente inconstitucionais, porque os municípios não dispõem de competência para legislar sobre essa matéria – Matéria de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo competente – Violação direta do princípio constitucional da competência legislativa (Constituição Estadual, artigo 144, c.c. os artigos 22, I, 24, XI, e 29, da CF) – Inconstitucionalidade da Lei n. 2.117, de 25 de abril de 2005, do Município de General Salgado, por afronta aos artigos 5º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, combinados com os artigos 22, I, 24, XI, e 29, da Constituição Federal – Ação procedente.” (ADI n.º 123.183-0/1-00, Rel. Des. MOHAMED AMARO, j. em 24.05.06, m.v.)

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 10.195/2008, de São José do Rio Preto, emanada de proposição do legislativo. Proibição da prática de assédio moral por agentes públicos, nas dependências da Administração Pública Local, com cominação de penalidades. Vício de iniciativa. Matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos e de iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo. Violação dos arts. 5.o, caput, 24, §2.°, n° 4, e 144, da Constituição do Estado. Inconstitucionalidade declarada. Ação procedente.” (ADI n.° 994.08.014483-2, Rel. Des. JOSÉ ROBERTO BEDRAN, j . em 11.2.2009)

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de Presidente Prudente - Lei Municipal n° 6.123/03, que dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de "assédio moral" nas dependências da Administração Pública municipal direta e indireta por servidores públicos municipais - Matéria cuja iniciativa é reservada ao Chefe do Executivo – Vício de iniciativa configurado - Violação nos artigos 5.o e 144, da Constituição do Estado de São Paulo - Inconstitucionalidade configurada - Ação procedente.” (ADI n.° 994.06.013802-0, Rel. Des. WALTER DE ALMEIDA GUILHERME, j. em 19.9.2007)

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei de iniciativa de vereador, que dispõe sobre a aplicação de penalidade à prática de "assédio moral" nas dependências da administração pública municipal por servidores públicos municipais. Inadmissibilidade. Ato normativo que viola os princípios da separação de poderes e o da iniciativa reservada de lei a Prefeito Municipal, afrontando artigos da Constituição Estadual Paulista. Pedido procedente.” (ADI n° 994.06.011419-9, Rel. Des. CANELLAS DE GODOY, reg. 7.8.2007).

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal de Bragança Paulista. Matéria de iniciativa do Prefeito Municipal. Assédio moral de servidores públicos municipais. Projeto de lei proposto por vereador. Vício formal. Iniciativa. Separação dos poderes. Ação julgada procedente.” (ADI n.º 990.10.224522-5, Rel. Des. CAUDURO PADIN, j. em 9/2/2011, v.u.)

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONAUDADE - Lei n° 3.600, de 18 de abril de 2008, do Município de Guarujá – Lei de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre configuração do que define "assedio moral" e prevê aplicação de penalidades à sua prática por servidores públicos no âmbito do Poder Executivo e Legislativo do Município - Vício de iniciativa caracterizado - Matéria que se insere no denominado "regime jurídico do servidor", reservada ao Chefe do Poder Executivo - Entendimento assentado em julgados do E. Supremo Tribunal Federal - Inteligência do artigo 61, § 1o, inciso II, letra "c", da Constituição Federal e artigo 24, §2°, n° 4 da Constituição do Estado de São Paulo, dispositivos aplicáveis aos municípios por força do artigo 144 da Constituição Paulista - Usurpação de competência privativa - Violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 5o da Constituição do Estado de São Paulo - Precedentes deste C. Órgão Especial a respeito do tema - Ação procedente - Inconstitucionalidade declarada.” (ADI n.º 0212042-54.2010.8.26.0000, Rel. Des. JOSÉ REYNALDO, j. em 3/2/2011, v.u.)

 

Em tais circunstâncias, aguarda-se o julgamento de integral procedência da presente ação direta – confirmando-se, assim, a liminar inicialmente deferida – a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 5807, de 07 de março de 2014, do Município de Jacareí, ante a violação expressa dos arts. 5.º, 24, § 2.º, 4, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

São Paulo, 09 de maio de 2014.

 

                  

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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