Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo nº 2047470-08.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Jacareí
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jacareí
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.805, de 07 de março de 2.014, que altera a Lei Municipal nº 4847/2005 que “Dispõe sobre o Uso, Ocupação e Urbanização do Solo do Município de Jacareí e dá outras providências”.
2) Lei de iniciativa parlamentar que determina que nos novos loteamentos aprovados sejam implantadas ciclovias e rebaixamento das calçadas. Encontra-se na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo dispor acerca do uso e ocupação do solo, uma vez que se trata de matéria subordinada a planejamento prévio, típica atividade administrativa, e participação comunitária. A suspensão de atividade administrativa é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Violação da separação de poderes, bem como das diretrizes constitucionais que determinam a necessidade de planejamento e participação popular na legislação relacionada ao tema (arts. 5º, 47, II e XIV, 144, 180, II, e 181, § 1º, da Constituição Estadual).
3) Parecer no sentido da procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Senhor Prefeito Municipal de Jacareí, tendo como alvo a Lei Municipal nº
5.805, de 07 de março de 2014, que altera a Lei Municipal nº 4847/2005 que “Dispõe sobre o Uso, Ocupação e Urbanização
do Solo do Município de Jacareí e dá outras providências”.
Sustenta o requerente, em síntese, a inconstitucionalidade em razão do vício de iniciativa e violação do princípio da separação de poderes.
Foi deferida a liminar (fl. 69/70).
Citado (fl. 77), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo (fls. 161/163).
Devidamente notificado (fl. 73), o Presidente da Câmara Municipal de Jacareí apresentou informações a fls. 79/90, defendendo a constitucionalidade do ato normativo impugnado.
Nestas condições, vieram os autos para manifestação final.
É o relato do essencial.
Procede o pedido.
A Lei Municipal nº 5.805, de 07 de março de 2014, do Município de Jacareí, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:
“Art. 1º Altera-se o § 1º do artigo 109 da Lei nº 4.847 de 07 de janeiro de 2005, a qual dispõe sobre Uso, Ocupação e Urbanização do Solo do Município de Jacareí, que passa a vigorar com a seguinte redação:
§ 1º Fica liberado para comercialização qualquer empreendimento referente ao parcelamento do solo, somente após a completa execução e aceite pela municipalidade, das obras de terraplenagem, abertura do sistema viário, abertura de ciclovias, demarcação dos lotes e áreas públicas com marcos de concreto e rebaixamento das calçadas.
I – As ciclovias deverão garantir um percurso interligado às ciclovias existentes e às projetadas conforme Plano Diretor do Município.
II – O rebaixamento da calçada consiste em rampa de acesso construída ou implantada na calçada ou passeio, destinada a promover a concordância de nível entre estes e o leito carroçável, que deverão estar em conformidade com as normas técnicas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.”
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II e XIV, 180, II, e 181, § 1º, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
(...)
Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
(...)
II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;
(...)
Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.
§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal. (g.n.)
O ato normativo impugnado, fruto de iniciativa parlamentar, ao impor novo requisito urbanístico para os novos loteamentos, referentes à construção de ciclovias e guias rebaixadas, viola o princípio da iniciativa que em matéria referentes ao uso e ocupação do solo cabe ao Poder Executivo.
A disciplinar do uso e ocupação do solo está vinculada a planejamento e estudos prévios, atividades tipicamente administrativa, razão pela qual inserida na iniciativa legislativa do Poder Executivo voltada
A atividade exigida antes da
propositura legislativa encontra-se no âmbito da atividade administrativa do
município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito
Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
Assim, formulação de requisitos para empreendimentos de parcelamento do solo urbano é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, referente ao ordenamento urbanístico, a cargo do Chefe do Executivo.
A criação de novas ciclovias
depende de estudo e planejamento acerca da circulação viária, atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.
A inconstitucionalidade
decorre da violação da regra da separação de poderes e da gestão do ordenamento
urbanístico municipal, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos
Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV, 144,
180, II, e 181, § 1º).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
Cabe ainda ressaltar que o ato normativo foi editado sem qualquer estudo ou planejamento prévio, nem mesmo participação comunitária que pudesse lhe conferir legitimidade.
Nos termos dos art. 180, II e 181, § 1º, da Constituição Estadual, pode-se extrair que planejamento é indispensável à validade e legitimidade constitucional da legislação relacionada o uso do solo.
Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.) deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico, razão pela qual a exigência de planejamento e estudos técnicos.
O art. 182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.
Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.
A norma urbanística é, por sua natureza uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.
Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.
O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.
Previsto e exigido pela Constituição (Arts. 48, IV, 182 CF e art. 180, II, da CE), tornou imposição jurídica a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.
A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.
A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.
Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Tratando-se de matéria atinente a gestão da cidade, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A competência que disciplina a gestão administrativo-patrimonial é privativa do Chefe do Poder Executivo, assim a iniciativa do Legislativo importa em violação frontal ao texto constitucional que consagra a separação dos poderes estatais.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de acolhimento da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.805, de 07 de março de 2014, de Jacareí.
São Paulo, 19 de maio de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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