Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2049482-92.2014.8.26.000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei Municipal nº 11.424, de 19 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que “Permite a atividade de “Minimercado” na Rua Frei Remberto Lessing, nº 895, Quadra M, Lote 08, no Bairro Parque São Miguel, em São José do Rio Preto”.

2)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3)      Inconsistência da arguição de inconstitucionalidade de lei de zoneamento firmada na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo decorrente da separação de poderes.

4)      Inconstitucionalidade, todavia, de lei municipal que trata da ocupação e uso do solo, por violação das diretrizes constitucionais que determinam a necessidade de planejamento e participação popular na legislação relacionada ao tema (art. 5º, art. 47, II, art. 144, art. 180, II, art. 181, § 1º, da Constituição Paulista).

5)      Violação ao princípio da impessoalidade. Atividade legislativa teve por escopo beneficiar empreendimento privado plenamente identificável. Violação do art. 111 da Constituição Estadual.

6)      A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade, e sua conformidade com as normas urbanísticas (arts. 180, V, e 181, § 1º, CE/89).

7)      Parecer pela procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator;

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como alvo a Lei Municipal nº 11.424, de 19 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que “Permite a atividade de “Minimercado” na Rua Frei Remberto Lessing, nº 895, Quadra M, Lote 08, no Bairro Parque São Miguel, em São José do Rio Preto”.

Sustenta o autor, em síntese, que a lei impugnada, em face da qual opôs veto integral, violou os arts. 5º e 144 da Constituição Estadual, alegando ofensa ao princípio da tripartição dos poderes, vício de iniciativa e violação ao princípio da isonomia, em razão da produção normativa de efeito concreto tendente a beneficiar sujeito específico.     

A apreciação da medida liminar foi postergada para momento posterior ao da apresentação das informações (fls. 52/53).

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo (fls. 61/63).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal esclareceu que o projeto legislativo que culminou na publicação da lei vergastada seguiu o processo regular, obtendo aprovação da Comissão de Obras e, também, da Comissão de Justiça e Redação, após a realização de duas audiências públicas, ocorridas em 17.09.2013, às 9:30 e 10:00 (fls. 67/70).

É a síntese do ocorrido nos autos.

A Lei nº 11.424/13, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que disciplina aspecto relacionado ao uso e ocupação do solo urbano no referido Município, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica permitida a atividade de “Minimercado” na Rua Frei Remberto Lessing, nº 895, Quadra M, Lote 08, no Bairro Parque São Miguel, em São José do Rio Preto.

Art. 2º - Esta Lei entra em vigor a partir da data de sua publicação”.

Em que pese a defesa da constitucionalidade do ato impugnado pela Câmara de Vereadores de São José do Rio Preto, há, de fato, incompatibilidade da lei impugnada com a Constituição de São Paulo.  

De antemão, cumpre lembrar que embora algumas das razões expostas a seguir, tais como ausência de planejamento prévio e participação popular na edição de normas relativas ao desenvolvimento urbano (art. 181, § 1º, da Constituição Estadual), não tenham sido invocadas na inicial, a natureza aberta da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade permite o exame da norma impugnada através de fundamento constitucional não adotado expressamente pelo autor.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Nesse sentido, aliás, vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

“Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...)” (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno, DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

Assim, passa-se ao exame individualizado da lei vergastada em face dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista: 111, 144, 180, II e V, 181, §1º, e 191.

A. DA NÃO VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

A lei local impugnada altera a destinação de lote específico, inserido em zona exclusivamente residencial, para autorizá-lo a ser utilizado para desenvolvimento de atividade comercial (“minimercado”).  Segundo a petição inicial, a iniciativa parlamentar tisna de inconstitucionalidade a norma.

Concessa venia, o argumento não é procedente.

Conforme orientação devotada pela Suprema Corte, a iniciativa legislativa para promover o adequado ordenamento territorial (art. 30, VIII, da CF) é comum ou concorrente, como se colhe do seguinte julgado:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

Portanto, não merece abono a arguição de ofensa ao art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, adicionando que a matéria depende de lei e como a iniciativa legislativa reservada é excepcional demanda expressa previsão constitucional, não se presumindo.

Todavia, conforme será demonstrado, a ação é procedente por outros fundamentos.

B - DA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO PLANEJAMENTO E DA PARTICIPAÇÃO POPULAR

O ato normativo impugnado é fruto de iniciativa parlamentar. Após ser discutido e aprovado na Câmara Municipal de São José do Rio Preto, foi alvo de veto integral do Chefe do Poder Executivo. O veto, porém, foi rejeitado pelo Poder Legislativo e a lei, finalmente, foi levada à promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal, sem que tivesse havido efetivo planejamento, bem como oportunidade concreta de participação popular.

Não há dúvida alguma quanto à indispensabilidade de planejamento prévio e de participação popular, princípios que devem ser observados na edição de leis relacionadas ao zoneamento e ao uso do solo, nos termos dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista:

“Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal.

(...)

Artigo 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico”.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo, seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc), deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, orientada pelo conjunto de regras e princípios disciplinados no respectivo ordenamento urbanístico. Por isso, a exigência de planejamento e estudos técnicos para elaboração de normas urbanísticas.

O art. 182, caput, da Constituição Federal, ao qual filiam-se os arts. 180 e 181 da Constituição Bandeirante, disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade, ela deve decorrer de um planejamento, isto é, um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente de acordo com os objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Previsto e exigido pela Constituição (arts. 48, IV, 182, da CF e art.180, II, da CE), tornou-se imposição jurídica a obrigação de elaborar planos e estudos quando se tratar da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.

Discorrendo a respeito do tema, Joseff Woff consigna que o plano urbanístico não constitui simples conjunto de relatórios, mapas e plantas técnicas, configurando um acontecer unicamente técnico. Compenetrando-se da realidade a ser transformada e das operações de transformação que consubstanciam o processo de planejamento, sob pena de ser mera abstração sem sentido, o plano urbanístico adquire, ele próprio, por contaminação necessariamente dialética, as características de um procedimento jurídico dinâmico, ao mesmo tempo normativo e ativo, no sentido de que os anteprojetos elaborados por técnicos e especialistas adquirem a categoria de diretrizes para a política do solo e sua edificação, ao mesmo temo que, em seus desdobramentos, se manifesta como conjunto de atos e fundamentos para a produção de atos de atuação urbanística concreta. (El Planeamiento Urbanístico del Território y lãs Normas que Garantizan su Efectividad, conforme a la Ley Federal de Ordenación Urbana, em La Ley Federal Alemana de Ordenación Urbanística y los Municípios, p. 28, apud José Afonso da Silva, Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A propósito do tema, José Afonso da Silva chega a observar que:

“Muitos fatores contribuem para dificultar a implantação desse processo, tais como carência de meios técnicos de sustentação, de recursos financeiros e de recursos humanos, bem assim certo temor do Prefeito e da Câmara de que o processo de planejamento substitua sua capacidade de decisão política e de comando administrativo”. (Direito Urbanístico Brasileiro, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 83).

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade que tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas, no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

Presume-se que na época que o município de São José do Rio Preto elaborou seu sistema urbanístico, observando os mandamentos constitucionais sobre o tema, tenha definido as áreas residenciais e comerciais a partir de um planejamento prévio, pautado no interesse e bem-estar da população. É funcional e necessário que áreas residenciais tenham, ao menos, padarias, lanchonetes, farmácias e minimercados no seu entorno, evitando grandes deslocamentos dos moradores para realização de atividades cotidianas e concentração comercial. Porém, a criação de pequenas áreas comerciais em áreas genuinamente residenciais depende do interesse coletivo e, sobretudo, de prévio planejamento.

Nesse sentido, não se admite modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

José Afonso da Silva ensina quanto às hipóteses de alteração de zoneamento que:

“(...) recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 251).

Acerca da importância do planejamento urbanístico que deve preceder a toda e qualquer legislação elaborada nesta matéria, discorre Toshio Mukai que:

“(...) a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 29).

No caso em tela, pela análise do processo legislativo da Lei Municipal, verifica-se que não foram providenciados estudos técnicos ou qualquer planejamento abalizado para a alteração promovida.

Deste modo, patente a inconstitucionalidade do ato normativo oriundo do Legislativo Municipal que, sem qualquer estudo prévio, autorizou a atividade de “minimercado” em área residencial, ferindo frontalmente o disposto nos artigos 180, caput e inciso II, e 181, caput e § 1º, da Constituição Estadual, bem como, por força do artigo 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos nos artigos 182, caput e §1º, e 30, inciso VIII, da Constituição Federal.

Não bastasse a ausência de planejamento, a lei vergastada também não observou a exigência de participação popular.

A validade e legitimidade da norma urbanística, em virtude dos condicionamentos e limitações que impõe à atividade e aos bens dos particulares e de seu objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, pressupõe participação comunitária em todas as fases de sua produção.

Os planos e normas urbanísticas devem levar em conta o bem-estar do povo. Cumprem esta premissa quando são sensíveis às necessidades e aspirações da comunidade. Esta sensibilidade, porém, há de ser captada por via democrática e não idealizada autoritariamente. Nesse sentido, confira-se o posicionamento de José dos Santos Carvalho Filho:

Por conseguinte, será forçoso reconhecer que, diante das normas disciplinadoras do Estatuto, não há mais espaço para falar em processo impositivo (ou vertical) de urbanização, de caráter unilateral e autoritário e, em consequência, sem qualquer respeito às manifestações populares coletivas. Em outras palavras, abandona-se o velho hábito de disciplinar a cidade por regulamentos exclusivos e unilaterais do Poder Público. Hoje as autoridade governamentais, sobretudo as do Município, sujeitam-se ao dever jurídico de convocar as populações e, por isso, não mais lhe fica assegurada apenas a faculdade jurídica de implementar a participação popular no extenso e contínuo processo de planejamento urbanístico” (José dos Santos Carvalho Filho, Comentários ao Estatuto da Cidade, Lumen Juris, 4ªed, Rio de Janeiro: 2011, p. 298, g.n.).

 O planejamento urbanístico democrático pressupõe a possibilidade e efetiva participação do povo na sua elaboração. Sendo democrático, ele se coloca contra pressões ilegítimas ou equivocadas em relação ao crescimento e ordenamento da cidade, busca contê-las e orientá-las adequadamente.

O princípio da participação comunitária no estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano é uma exigência da Constituição Estadual (arts. 180, II, e 191).

A interpretação correta desse comando constitucional é no sentido de que o controle social nas três esferas de poder, longe de ser uma formalidade ritual, é requisito de validade da norma. Nesse sentido, mais do que possibilitar um canal de comunicação com a população local – convocando audiências públicas, por exemplo – o ente federativo deve zelar para que a comunidade conheça e use seus instrumentos de voz e, ainda, para que o interlocutor público internalize, discuta e devolva à população uma solução (construída dialeticamente) para a questão posta em debate.

Posto dessa forma, o controle social é uma via de mão dupla, que exige, além da via de acesso, o fluxo e a troca de informações pelos interlocutores. Se a comunidade se manifesta e o poder público permanece silente, o controle está fadado ao insucesso. Em termos práticos, submeter algum tema à participação popular é possibilitar a construção democrática de ideias, é absorver sugestões e alterar projetos originais, é, também, fundamentar a rejeição de propostas oriundas do povo. 

A participação popular é garantia constitucional do cidadão e, por isso, exige do Poder Judiciário um controle rígido acerca da sua aplicabilidade. Aliás, essa é a leitura do princípio da proporcionalidade como proibição da proteção insuficiente, face oposta da proporcionalidade enquanto proibição do excesso.  

“Schlink observa, porém, que, se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção. Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição do excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas. Daí concluiu que “a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermassig), porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhaltnismassig im engeren Sinn)” (Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Grundrechte – Staatsrech. 4ªed. Heidelberg, 1988 apud Gilmar Mendes Ferreira e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, 8ª ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013, pág. 227-228).

Nesse passo, não há falar que o Poder Legislativo Rio-pretense observou o controle social ao convocar duas audiências públicas para a mesma data (17.09.2013) com intervalo de trinta minutos entre uma e outra. Se o esperado era dialogar com a comunidade por apenas meia hora, parece óbvio que a intenção dos vereadores não era oportunizar o diálogo, mas vencer um requisito meramente formal.     

O entendimento jurisprudencial sufraga a necessidade não só de prévio estudo técnico e planejamento como da participação comunitária na produção de normas de ordenamento urbanístico. Neste sentido, convém transcrever as seguintes ementas:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Leis ns. 11.764/2003, 11.878/2004 e 12.162/2004, do município de Campinas - Legislações, de iniciativa parlamentar, que alteram regras de zoneamento em determinadas áreas da cidade - Impossibilidade - Planejamento urbano - Uso e ocupação do solo - Inobservância de disposições constitucionais - Ausente participação da comunidade, bem como prévio estudo técnico que indicasse os benefícios e eventuais prejuízos com a aplicação da medida - Necessidade manifesta em matéria de uso do espaço urbano, independentemente de compatibilidade com plano diretor - Respeito ao pacto federativo com a obediência a essas exigências - Ofensa ao princípio da impessoalidade - Afronta, outrossim, ao princípio da separação dos Poderes - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Leis dispuseram sobre situações concretas, concernentes à organização administrativa - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade das normas.” (ADI 163.559-0/0-00, rel. des. Maurício Ferreira Leite, j. 10.02.2008).

“DIREITO CONSTITUCIONAL - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIPLOMA NORMATIVO QUE ALTERA A LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO - ORIGEM PARLAMENTAR - VÍCIO DE INICIATIVA - AUSÊNCIA DE ESTUDO E AUDIÊNCIA PRÉVIOS - INCONSTITUCIONALIDADE - EXISTÊNCIA - É inconstitucional a Lei Complementar Municipal de Catanduva 359, de 8 de março de 2007, que altera a Lei Complementar Municipal 355, de 26 de dezembro de 2006, que institui o "Plano Diretor Participativo, a Lei de Uso e Ocupação do Solo e a Lei de Parcelamento do Solo do Município de Catanduva e dá outras providências", pois originada de projeto de lei parlamentar, e não do Poder Executivo, único competente para deflagrá-lo - Não realização de estudos e audiências prévios - Violação dos arts. 5°, 47, incisos II, XI e XIV, 144, 180, II, e 181, "caput" e § 1o, da Constituição do Estado de São Paulo - Jurisprudência deste Colendo Órgão Especial - Ação procedente.”  (ADI 0077486-81.2011.8.26.0000, rel. des. Xavier de Aquino, j. 16/11/2011) 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE proposta contra a Lei Municipal n. 6.427, de 13 de julho de 2010, do Município de Mogi das Cruzes. Norma relativa ao desenvolvimento urbano. Lei de ordenamento do uso e ocupação do solo. Ausência de estudos e de planejamentos técnicos e de participação comunitária. Imprescindibilidade. Incompatibilidade vertical da norma mogicruzense com a Constituição Paulista. Ocorrência. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Ofensa ao artigo 180, II e 191 da Constituição Bandeirante. Inconstitucionalidade configurada. Ação procedente.” (ADI 0494837-36.2010.8.26.0000, rel. des. Guerrieri Rezende, j. 12/09/2012)

No mesmo sentido: ADI 9031477-73.2009.8.26.0000, Rel. Des. Elliot Akel, j. 17/10/2012; ADI 0225476-76.2011.8.26.0000, Rel. Des. De Santi Ribeiro, j. 01/08/2012; ADI 0207644-30.2011.8.26.0000, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, j.  21/03/2012; 0587046- ADI 24.2010.8.26.0000, Rel. Des. Cauduro Padin, j. 21/03/2012; ADI 0194034-92.2011.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, j. 29/02/2012.

Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo que subtraiu a possibilidade e exigência constitucional de efetiva participação popular, ferindo frontalmente o disposto nos arts. 180, caput e inciso II, 181, caput e §1º, e 191, da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição Estadual, os princípios constitucionais estabelecidos no art. 182, caput e §1º, e no art. 30 e inciso VIII, da Constituição Federal.

C- DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Repise-se, o fundamento das normas urbanísticas há de ser sempre o de atender às necessidades prioritárias da comunidade.

A Lei nº 11.424, de 19 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, ao autorizar a atividade de minimercado em área residencial, valendo-se de propriedade específica (Rua Frei Remberto Lessing, nº 895, Quadra M, Lote 08), violou o princípio da impessoalidade, adotado expressamente no art. 111, caput, da Constituição do Estado de São Paulo, bem como no art. 37, caput, da Constituição Federal, aplicável ao caso por força do art. 144 da Carta Bandeirante.

Ainda que a instalação de minimercado na área residencial fosse necessária – o que não foi demonstrado em planejamento - o Poder Legislativo não poderia autorizá-la de forma individualizada. Especificando a propriedade, deixou-se claro que, além de transgredir a sistemática urbanística, pautada no interesse coletivo, a fez em benefício de pessoa determinada (proprietária do lote).

         A lei impugnada adequa-se simetricamente ao conceito de lei de efeito concreto ou, se preferir, norma de caráter casuístico. Embora a Constituição Federal não tenha feito expressa menção à proibição de leis dessa natureza, essa limitação é implícita, posto que decorre do princípio da igualdade. Aliás, outro entendimento não seria possível na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito, avesso à prática de atos discriminatórios ou arbitrários.

          Em artigo sobre o princípio da igualdade, Fábio Konder Comparato anota que “a força desse princípio impõe-se não só ao aplicador da lei, na esfera administrativa ou judiciária, mas também ao próprio legislador. Em outras palavras, quando a Constituição consagra a igualdade, ela está proibindo implicitamente, quer a interpretação inigualitária das normas legais, quer a edição de leis que consagrem, de alguma forma, a desigualdade vedada. Ao lado, pois, de uma desigualdade perante a lei, pode haver uma desigualdade da própria lei, o que é muito mais grave” (Cf. “Precisões sobre os conceitos de lei e de igualdade jurídica”, Editora Revista dos Tribunais, ano 87, v. 750, abril de 1998, pp. 11/19).

A clareza do tratamento anti-isonômico da Lei n. 11.424/13 a faz inconstitucional de plano. Ao privilegiar injustificadamente o proprietário do lote citado no ato normativo, o Município – como não poderia deixar de ser - manteve a restrição de uso residencial aos proprietários dos lotes vizinhos, de tal sorte que se estes a contrariassem poderiam sofrer as consequências do art. 182, §4º, da Constituição Federal. De outro lado, contribuiu para a rentabilidade do “minimercado”, vez que não haverá concorrência nas suas proximidades.

         O princípio da impessoalidade não é senão manifestação típica do princípio da igualdade (Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, "O conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade", p. 68).  Olvidou-se o legislador que a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos (Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Malheiros, São Paulo, 1995, 3.ª ed., p. 10).

D – DA PROIBIÇÃO DE CRIAÇÃO DE NORMAS URBANÍSTICAS ALHEADAS AO PLANO DIRETOR

A lei também é inconstitucional por ofensa aos arts. 180, V, e 181, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

Das normas municipais de desenvolvimento urbano se impõe compatibilidade às normas urbanísticas (art. 180, V, Constituição Estadual) e, outrossim, delas se exige, inclusive no tocante às limitações administrativas, que instituam conformidade com diretrizes do plano diretor, que deve caráter integral (art. 181 e § 1º Constituição Paulista).

A adoção de normas municipais alheadas ao plano diretor configura indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas, isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral, vulnerando sua compatibilidade com o plano diretor e sua integralidade. O Supremo Tribunal Federal entende possível o contencioso de constitucionalidade sem que se configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio direto e frontal à Constituição:

“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).

E – DA CONCLUSÃO

Ante o exposto, conclui-se, em síntese, que a inconstitucionalidade da Lei Municipal de São José do Rio Preto n. 11.424/13 decorre: (a) da inexistência do planejamento prévio e da deficiente participação popular; (b) da violação ao princípio da isonomia; e, por fim, (c) da criação de normas urbanísticas alheadas ao plano diretor.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de acolhimento da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 11.424, de 19 de dezembro de 2013, do Município de São José do Rio Preto.

 

  São Paulo, 19 de agosto de 2013.

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça Jurídico

 

 

AAAMJ/MML