Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 2052734-06.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

 

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal 7.245, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “obrigatoriedade da publicação de fotos de crianças e adolescentes desaparecidas no âmbito do Município de Guarulhos”.

2)      Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1. A iniciativa parlamentar de lei local que institui obrigação que gera ônus para a Administração é incompatível com o princípio da separação de poderes.

3)      Violação das regras da separação de poderes e da reserva de administração. Criação de despesas sem fonte específica de receita (arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual).

4)      Procedência da ação. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.245, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “obrigatoriedade da publicação de fotos de crianças e adolescentes desaparecidas no âmbito do Município de Guarulhos”.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.

Processada a ação, concedeu-se medida liminar que determinou a suspensão do ato normativo impugnado (fls. 62/63).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa da lei municipal atacada (fls. 69/71).

A Câmara Municipal prestou informações, sustentando a constitucionalidade do ato normativo (fls. 79/86).

É a síntese necessária.

A Lei Municipal nº 7.245, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a “obrigatoriedade da publicação de fotos de crianças e adolescentes desaparecidas no âmbito do Município de Guarulhos”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º Deverão ser publicadas as fotos de crianças e adolescentes desaparecidos no âmbito do Município de Guarulhos, em todos os materiais impressos e produtos fornecidos gratuitamente, bem como nos murais das repartições da Administração Pública Municipal Direta, Indireta, das Empresas Públicas e dos bens imóveis agregados em razão da delegação de serviços e atendimento público.

Parágrafo único. De acordo com o material impresso ou o produto mencionado no caput, fica o Poder Público condicionado a reservar espaço proporcional para a impressão de uma ou mais fotos, sendo indispensáveis os dados para contato.

Art. 2º Para o cumprimento do disposto nesta Lei, a Prefeitura de Guarulhos, através do órgão competente, em parceria com a Delegacia Seccional, o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares do Município, instituirá cadastro municipal de crianças e adolescentes que estejam na condição de desaparecidos.

Art. 3º Fica facultativa a participação de outras entidades da Sociedade Civil, de estabelecimentos de comércio em geral (padarias, bares, supermercados, lanchonetes, lojas e maganizes), bem como de empresas e cooperativas de transportes coletivos a divulgação das crianças e adolescentes desaparecidos, sendo que o Poder Público fornecerá o material de forma gratuita para a divulgação.

Art. 4º Os meios de divulgação do disposto nesta Lei deverão conter a foto do (a) menor, nome, data do possível desaparecimento, um número de telefone de discagem gratuita e do disque-denúncia, de forma a evitar a exposição das famílias envolvidas.

Parágrafo único. Consideram-se meios de divulgação, cartazes, folhetos, folders, banners, sacolas plásticas e outros tipos de materiais para possíveis divulgações das fotos das crianças e adolescentes desaparecidos.

Art. 5º As despesas decorrentes da execução da presente Lei, correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.

Art. 6º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade decorre da iniciativa parlamentar, agressiva da separação de poderes, porque seu objeto é típico ato de administração ordinária, reservado exclusivamente ao Poder Executivo e imune da interferência do Poder Legislativo, como se capta dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Se, em princípio, a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual) em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a jurisprudência:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

No caso, foi violada a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com a localização das crianças e adolescentes desaparecidos, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Com efeito, a decisão sobre fazer publicar, nos impressos da Administração Pública Municipal, fotos de pessoas desaparecidas e a de celebrar convênios com a Delegacia Seccional de Guarulhos e com outras entidades são da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo, alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo.

Se isso não bastasse, releva notar que ainda que a matéria demandasse lei formal, a lei municipal também padeceria de inconstitucionalidade por sua iniciativa parlamentar.

Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

Decorre do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração (entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições, quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa, segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste sentido:

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

É inegável que a “obrigatoriedade da publicação de fotos de crianças e adolescentes desaparecidas no âmbito do Município de Guarulhos” implica sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.

Lei de iniciativa parlamentar que cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos, demandando diretamente a realização de despesa pública, não prevista no orçamento, para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura, inclusive para os exercícios seguintes, padece também de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas, seja porque este reserva ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).

Diante do exposto, opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei Municipal nº 7.245, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, com os arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual.

 

São Paulo, 20 de maio de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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