Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 20548333-46.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 7.244, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a “TRANSFORMAÇÃO DA CENTRAL DE ABASTECIMENTO DO PARQUE CECAP, DR. HORÁCIO DE ALMEIDA, EM MERCADO MUNICIPAL”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). “Reserva de administração”. Precedentes do STF.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.244, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a “TRANSFORMAÇÃO DA CENTRAL DE ABASTECIMENTO DO PARQUE CECAP, DR. HORÁCIO DE ALMEIDA, EM MERCADO MUNICIPAL”.

Sustenta o autor (fls. 01/24) que a lei impugnada seria formalmente e materialmente inconstitucional, tanto pelo seu temário como pelo vício de iniciativa do processo legislativo, considerada a violação à regra da separação de poderes (invasão da esfera da gestão administrativa).

Segundo argumenta, a lei municipal impugnada apresenta dois problemas insanáveis de inconstitucionalidade, um decorrente de vício formal, violando os arts. 24, § 2º, 47, II e XIV, e 144, da Constituição Estadual, consistente na ausência de competência para deflagração da lei, e outro, consistente em vício material, por afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, consubstanciado nos arts. 5º, 47, II e XIV, e 144, da Constituição Bandeirante.

Refere-se, também, à questão de os recursos a serem destinados à execução e fiscalização da lei municipal, afirmando que o cumprimento desta aumentará as despesas do erário referentes à fiscalização de seu cumprimento, sem a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atendimento dos novos encargos.

 Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia da norma impugnada (fl. 39).

O Senhor Procurador-Geral do Estado, citado, declinou da defesa do ato normativo (fls. 51/53).

A Presidência da Câmara Municipal apresentou informações, sustentando a constitucionalidade do ato normativo (fls. 55/61).

É o relato do essencial.

 

PRELIMINAR: impossibilidade de exame de parâmetros infraconstitucionais ou contidos na Constituição Federal

O exame da inconstitucionalidade apontada na inicial restringe-se, na ação direta estadual, ao confronto entre o texto normativo impugnado e a Constituição do Estado, sendo inviável a utilização de parâmetros, para fins de reconhecimento da inconstitucionalidade apontada, que estejam assentados na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, confira-se o entendimento assente do STF nos seguintes precedentes, indicados exemplificativamente: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-2003, Plenário, DJ de 20-4-2006; RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011.

A análise a ser aqui realizada, portanto, deve ficar limitada ao exame da existência de incompatibilidade entre a norma impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo.

 

MÉRITO

A Lei Municipal nº 7.244, de 18 de março de 2014, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar que dispõe sobre a “TRANSFORMAÇÃO DA CENTRAL DE ABASTECIMENTO DO PARQUE CECAP, DR. HORÁCIO DE ALMEIDA, EM MERCADO MUNICIPAL”, tem o seguinte teor:

“(...)

Art. 1º. Transforma em Mercado Municipal, a central de abastecimento do Parque CECAP “Dr. Horácio de Almeida” – Varejão do Parque CECAP.

Art. 2º. O local terá os dias e horários de funcionamento regulamentado pela Prefeitura.

Art. 3º. A Prefeitura determinará quais produtos poderão ser comercializados nesse Mercado Municipal.

Art. 4º. Respeitadas as leis vigentes, os comerciantes que já vendem seus produtos na feira realizada aos sábados na Central de Abastecimento do Parque CECAP “Dr. Horácio de Almeida” terão preferência na ocupação dos espaços do Mercado Municipal.

Art. 5º. As despesas decorrentes da execução da presente Lei, correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento suplementadas se necessário.

Art. 6º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

Pois bem.

A ação deve ser julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da lei impugnada.

Note-se, inicialmente, que ao determinar que específica providência administrativa seja adotada pelo Poder Público (transformação de central de abastecimento em mercado municipal), o Poder Legislativo Municipal pretende regrar atividade que está inserida na esfera da gestão executiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo deliberar a respeito da organização dos seus serviços, inclusive, voltando a atenção para a hipótese em exame, sobre a transformação de uma central de abastecimento em Mercado Municipal, e qual será seu horário de funcionamento ou quais produtos poderão ser comercializados.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei adotando deliberação concreta que, a rigor, cumpre exclusivamente ao Poder Executivo adotar, isso significa invasão da esfera de gestão administrativa e, portanto, violação ao princípio da separação de poderes, assentado no art. 5º e no art. 47, II e XIV da Constituição Paulista.

Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema, por tratar-se de hipótese da denominada “reserva de administração”.

Nesse sentido o posicionamento do STF, aplicável à hipótese mutatis mutandis:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais. (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)

Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do chefe do Poder Executivo Distrital na condução da administração pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. (ADI 3.343, Rel. p/ o ac. Min. Luiz Fux, julgamento em 1º-9-2011, Plenário, DJE de 22-11-2011.)

(...)

 É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Por último e não menos importante, o ato normativo impugnado não fornece elementos concretos, que permitam aferir se do seu cumprimento decorrerá ou não aumento de despesa. Por essa razão não deverão ser adotados como fundamentos para a declaração da inconstitucionalidade o art. 24, § 5º e o art. 25 da Constituição do Estado.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.244, de 18 de março de 2014, de Guarulhos.

São Paulo, 23 de maio de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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