Parecer
Processo n. 2054961-66.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos
Requerida: Câmara Municipal de Guarulhos
Constitucional.
Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 7.176, de 10 de outubro de 2013, do
Município de Guarulhos. placas indicativas de sinalização de trânsito.
Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Reserva de iniciativa
legislativa. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1. Parâmetro
exclusivo da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a
Constituição Estadual, sendo defeso seu contraste com a legislação municipal. 2. A
iniciativa parlamentar de lei local que obriga o Município a instalar placas
indicativas de sinalização e deslocamentos de trânsito bilíngues em português e
inglês é incompatível com o princípio da separação de poderes (arts. 5º, 25,
24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e
174, III, CE/89). 3. A organização do trânsito urbano é
matéria que se inclui na predominância do peculiar interesse local do Município
(art. 30, I, CF/88). Lei municipal que
obriga o Município a instalar placas indicativas de sinalização não caracteriza
a edição de norma sobre trânsito e transporte reservada à União. 4. Procedência da
ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pelo Prefeito do Município de Guarulhos impugnando a Lei n. 7.176, de 10
de outubro de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que
estabelece a obrigatoriedade de instalação de placas indicativas de sinalização
e deslocamentos de trânsito bilíngues em português e inglês em vias e
principais acessos no âmbito do Município, suscitando sua incompatibilidade com
os arts. 5º; 24, §§ 2º n. 1 e n. 2; 25; 47, II, XIV e XVII; 144; 174 e 176, I da
Constituição Estadual; com o art. 22, XI da Constituição Federal e com o art.
63, IV da Lei Orgânica Municipal.
2. Concedida a liminar (fls. 44/47), a douta
Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei vergastada (fls. 53/55)
e a Câmara Municipal de Guarulhos sustentou sua constitucionalidade (fls.
62/67).
3. É
o relatório.
4. O
contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo
parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), sendo
inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica Municipal (fl. 13).
5. Qualquer alegação fundada em
norma infraconstitucional, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para
aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª
Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).
6. A inconstitucionalidade decorre
da iniciativa parlamentar, agressiva da separação de poderes, porque seu objeto
é típico ato de administração ordinária, reservado exclusivamente ao Poder
Executivo e imune da interferência do Poder Legislativo, como se capta dos
arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da
Constituição Estadual.
7. Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.
8. A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da
Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de
invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas
e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de
poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
9. Se, em princípio, a competência normativa é do domínio
do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza
eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II,
XIV e XIX, a, Constituição Estadual)
em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a
jurisprudência:
“RESERVA DE
ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva
de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias
sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)”
(STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ
14-12-2001, p. 23).
10. No caso, foi violentada a reserva
da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua
direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a
edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento,
imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).
11. A decisão sobre a obrigatoriedade
de instalação de placas indicativas de sinalização e deslocamentos de trânsito
bilíngues em português e inglês em vias e principais acessos no âmbito do
município é da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas
linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo,
alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição
de governo do Chefe do Poder Executivo.
12. Não bastasse, ainda que a matéria
demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade a lei local
por sua iniciativa parlamentar.
13. Em se tratando de processo legislativo,
é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por
simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a
jurisprudência:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).
14. Decorre
do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos
de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
15. A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes
mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração
(entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições,
quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa,
segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste sentido:
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“À luz do
princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual
as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a
questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual,
quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto
do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da
Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
16. É inegável que a instalação de placas de sinalização nas vias do município implica sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.
17. Quando lei de iniciativa
parlamentar cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos
demandando diretamente a realização de despesa pública não prevista no
orçamento para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte
de cobertura inclusive para os exercícios seguintes, ela também padece de
inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da
Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para
atendimento das novas despesas seja porque este reserva ao Chefe do Poder
Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o
Supremo Tribunal Federal:
“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do
Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria
Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo.
Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução
da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada
procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do
Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3.
Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4.
Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6.
Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7.
Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF
v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.
10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE
ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA
ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61,
§ 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa,
vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de
matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na
Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre
outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o
Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da
Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a
elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso
III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos
artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de
inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5.
Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n.
10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).
18. Na petição inicial o requerente assinalou que “a
legislação municipal guerreada não pode subsistir por afronta a competência
privativa da União para legislar sobre normas de trânsito e transporte” (sic) (fl. 15).
19. Não é admissível afirmar que lei
municipal que obriga a instalação de placas indicativas de sinalização e
deslocamentos de trânsito bilíngues em português e inglês em vias e principais
acessos no âmbito do município caracteriza a edição de norma sobre trânsito e
transporte.
20. Portanto, incogitável violação ao
art. 22 da Constituição da República no tocante ao inciso XI.
21. A organização do trânsito local é
matéria que se inclui na predominância do peculiar interesse do Município,
validando a Constituição da República a edição de legislação ao abrigo do art.
30, I.
22. Preciosa lição de Hely Lopes
Meirelles define trânsito e tráfego como o deslocamento de pessoas ou coisas
(veículos, animais) pelas vias de circulação, mas, ao tráfego se adita a missão
de transporte. E assim distingue as normas de trânsito das de tráfego:
“(...) aquelas dizem respeito às condições de circulação; estas cuidam das condições de transporte nas vias de circulação.
(...)
O trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal – conforme a natureza e âmbito do assunto a prover (...) Os meios de circulação e transporte interessam a todo o País, e, por isso mesmo a Constituição da República reservou para a União a atribuição privativa de legislar sobre trânsito e transporte.
(...)
De um modo geral pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V).
Realmente, a circulação urbana e o tráfego local, abrangendo o transporte coletivo em todo o território municipal, são atividades da estrita competência do Município, para atendimento das necessidades específicas da população.
O tráfego sujeita-se aos mesmos princípios enunciados para o
trânsito, no que concerne à competência para sua regulamentação: cabe à União
legislar sobre o tráfego interestadual; cabe ao Estado-membro prover o tráfego
regional; e compete ao Município dispor sobre o tráfego local, especialmente o
urbano” (Direito Municipal Brasileiro,
São Paulo: Malheiros, 1993, 6ª ed., pp. 318-319).
23. A norma local impugnada se manteve
nos limites do art. 30, I e II, da Constituição Federal.
24. São inconfundíveis os círculos da
competência normativa federal sobre trânsito e da competência normativa
municipal para organização e fiscalização do trânsito no seu território.
Remanesce espaço normativo ao Município para limitações ao tráfego de veículos
em suas vias públicas em atenção às peculiaridades locais e desde que não
neutralizada a legislação federal, o que abrange a imposição de certas
condições, como a disciplina do uso das vias, logradouros e espaços públicos.
Neste sentido, assim decidiu a Suprema Corte:
“CONSTITUCIONAL. MUNICÍPIO: COMPETÊNCIA: IMPOSIÇÃO DE MULTAS:
VEÍCULOS ESTACIONADOS SOBRE CALÇADAS, MEIOS- FIOS, PASSEIOS, CANTEIROS E ÁREAS
AJARDINADAS. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. I. - Competência
do Município para proibir o estacionamento de veículos sobre calçadas,
meios-fios, passeios, canteiros e áreas ajardinadas, impondo multas aos
infratores. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. Exercício de
competência própria ‘CF/67, art. 15, II, CF/88, art. 30, I’ que reflete
exercício do poder de polícia do Município. II. - Agravo não provido” (STF,
AgR-RE 191.363-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 03-11-1998, v.u., DJ
11-12-1998, p. 06).
25. Na espécie, não é crível supor-se
que o quanto disposto na lei municipal impugnada ventila assunto que extrapola
os limites da autonomia municipal.
26. Face ao exposto, opino pela
procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei n. 7.176, de 10 de
outubro de 2013, do Município de Guarulhos, com os arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual.
São
Paulo, 03 de junho de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj