Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2057497-50.2014.8.26.0000
Requerente: Sindicato das Empresas de Transportes de
Passageiros da Região Metropolitana de São Paulo - SETMETRO
Requeridos: Prefeito Municipal e Presidente da Câmara
Municipal de Poá
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.577, de 02 de julho de 2.012, do Município de Poá, que Regulamenta o uso gratuito pelos idosos maiores de 65 anos, do sistema de transportes coletivos que operam no Município e dá outras providências.
2) Preliminar. Legitimidade de Sindicato de atuação estadual ou municipal (art. 90, V da Constituição Estadual).
3) Impossibilidade de realização do controle concentrado de constitucionalidade adotando como parâmetros dispositivos da legislação federal ou da própria Lei Orgânica do Município. Precedentes do STF.
4) Mérito. A concessão de isenção ao pagamento de preço público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial, executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo (art. 120, Constituição Estadual).
5) O parâmetro constitucional ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da tarifa inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual. Procedência da ação. Quebra das condições efetivas da proposta, afetando o equilíbrio econômico financeiro do contrato (art. 117 da Constituição Estadual)
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros da Região Metropolitana de São Paulo - SETMETRO, tendo como alvo a Lei nº 3.577, de 02 de julho de 2.012, do Município de Poá, que Regulamenta o uso gratuito pelos idosos maiores de 65 anos, do sistema de transportes coletivos que operam no Município e dá outras providências.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa (só poderia ter partido do Prefeito a iniciativa para a isenção tarifária); por identificar os seus destinatários e por importar em quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão sem falta de indicação da fonte de custeio. Daí a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, XVII e 144 da Constituição Estadual, das Leis nº 8.666/93, 9.074/95 e da Lei Orgânica Municipal de Poá.
Foi indeferido o pedido de liminar, fls. 130/131.
Devidamente notificado (fl. 137), o Prefeito Municipal de Poá apresentou informações a fls. 144/152, levantando preliminar de ilegitimidade ativa e falta de interesse de agir. No mérito afirma a constitucionalidade do ato normativo impugnado.
Notificado (fl. 139), o Presidente da Câmara Municipal de Poá apresentou informações sustentando preliminares de ilegitimidade ativa, uma vez que o sindicato não teria âmbito nacional, e falta de interesse de agir porque o art. 39, § 3º da Lei Federal nº 10.741/03, dispõe caber a lei local estabelecer as condições para a gratuidade do transporte compreendido entre 60 e 65 anos. No mérito defendeu a constitucionalidade da lei impugnada.
Citado regularmente (fl. 142), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 155/157).
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
É o relato do essencial.
DAS PRELIMINARES
A preliminar de ilegitimidade de parte deve ser afastada uma vez que no âmbito estadual do controle de constitucionalidade o art. 90, V da Constituição Estadual atribui legitimidade ativa para as entidades sindicais ou de classe, de atuação estadual ou municipal, demonstrando seu interesse jurídico no caso.
A preliminar relativa a falta de interesse de agir na verdade confunde-se com o mérito e com o mesmo será analisada.
DO MÉRITO
A Lei nº 3.577, de 02 de julho de 2.012, do Município de Poá, que Regulamenta o uso gratuito pelos idosos maiores de 65 anos, do sistema de transportes coletivos que operam no Município e dá outras providências, tem a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º O artigo 1º, da Lei nº 2.163, de 16 de maio de 1991, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1º Os idosos maiores de 60 anos ficam isentos do pagamento de passagem de ônibus, no sistema de Transportes Coletivos que operam no território do Município de Poá.
Art. 2º Os beneficiários deverão usar a porta da frente do veículo para o embarque e desembarque.
Parágrafo Único. O documento de identificação hábil e legal do idoso, para o embarque será a cédula de identidade expedida por órgão oficial ou carteira profissional do trabalho.
Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”
(...)”
É necessário observar, inicialmente, a impossibilidade, na ação direta de inconstitucionalidade estadual, de adoção de dispositivos da Constituição da República, da legislação federal, bem como da Lei Orgânica do Município, como parâmetros para o controle abstrato.
Foi por essa razão que na ADI 347/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 20/09/2006 (DJ 20/10/2006) foi declarada a inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo, que permitia a adoção de parâmetro constitucional federal no controle de constitucionalidade estadual. Eis a ementa do julgado:
“(...)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ART. 74, XI. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE LEI OU ATO NORMATIVO MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROCEDÊNCIA. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, antes e depois de 1988, no sentido de que não cabe a tribunais de justiça estaduais exercer o controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos municipais em face da Constituição federal. Precedentes. Inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição do Estado de São Paulo. Pedido julgado procedente.
(...)”
Dessa forma, não comportam exame, nesta ação direta, as alegações do autor de que o ato normativo contraria dispositivos da Constituição Federal, da legislação federal (v.g. a Leis nº 8.666/93 e 9.074/95), ou mesmo da própria Lei Orgânica do Município (relativamente à limitação de iniciativa legislativa na matéria em debate).
Reitere-se: a ação direta de inconstitucionalidade no plano estadual tem escopo limitado, e consiste, exclusivamente, em instrumento de verificação quanto à existência de compatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado.
Esse sistema decorre do art. 125, § 2º da Constituição da República, pelo qual “cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (...)” (g.n.).
Portanto, declarar a inconstitucionalidade da lei municipal
utilizando como parâmetro de controle dispositivo da Constituição Federal ou
mesmo da legislação infraconstitucional significaria contrariar o art. 125, § 2º, da Constituição Federal.
Ademais, no mérito a ação deve ser julgada procedente.
A
matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao
Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da
Constituição Paulista (que reproduz, de modo geral, o disposto no art. 61, §
1º, da CR), inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser
declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a
edição do ato normativo em epígrafe.
No
entanto, há violação ao postulado constitucional da independência e harmonia
entre os Poderes.
A concessão de isenção ao pagamento de preço
público (tarifa) pela prestação de serviço público comercial ou industrial,
executado direta ou indiretamente, é matéria reservada ao Poder Executivo, nos
termos do que dispõe o art. 120 da Constituição Estadual.
Com
efeito, ao prever a competência do órgão executivo competente para fixação da
tarifa, tal inclui alterações, isenções etc., e, portanto, a outorga de isenção
por ato normativo do Poder Legislativo, de iniciativa parlamentar, viola a
cláusula da separação de poderes constante do art. 5º da Constituição Estadual.
O
Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de
administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da
Administração).
Assim, quando o Poder Legislativo edita lei estabelecendo hipóteses de isenção tarifária no transporte urbano coletivo, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.
De
outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O diploma
impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, pois envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução
de atos de governo, no caso em análise representados pela concessão de isenção
tarifária nos serviços de transporte urbano coletivo. A atuação legislativa
impugnada, equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a
garantia constitucional da separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
A importância da reserva da Administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE
PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência
normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência
administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não
se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do
Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob
pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir,
por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder
Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais.
Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei,
transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento
heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação
político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas
prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
Em caso similar, este egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:
“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei do Município de
Andradina, de iniciativa parlamentar, que concedeu isenção de tarifa de água e
esgoto a aposentados - Violação à separação de Poderes - Matéria referente à
tarifa e preço público pela remuneração dos serviços que é de competência do
Executivo (art. 120, da CE) - Vício de iniciativa caracterizado - Ação
procedente, para reconhecer a inconstitucionalidade da Lei 2.733, de 19 de
setembro de 2011, do Município de Andradina. (TJSP, ADI 0256692-55.2011.8.26.0000, Rel. Des. Enio Zuliani, v.u., 23-05-2012).
De
outro lado, a inclusão de nova isenção no curso de contrato administrativo de
concessão dos transportes públicos, importa em violação ao art. 117 da Constituição
Estadual, na medida em que não estariam resguardadas as condições efetivas da
proposta do edital de licitação, base da definição da equação econômico
financeiro do contrato.
Diante
do exposto, aguarda-se seja dada procedência ao pedido para declaração da
inconstitucionalidade da Lei nº 3.577, de 02 de julho de 2.012, do
Município de Poá.
São Paulo, 16 de junho de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
aca