Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Autos nº. 2062217-60.2014.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Catanduva
Requerido:
Presidente da Câmara Municipal de Catanduva
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.477, de 04 de novembro de 2013, de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que “institui a obrigatoriedade de 30% de funcionários de carreira em todos os cursos de capacitação profissional realizados e pagos pelo Município”.
2) Violação das regras da separação de poderes e da reserva de administração. Criação de despesas sem fonte específica de receita (arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual).
3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo Senhor
Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Senhor Prefeito Municipal de Catanduva, tendo como alvo a Lei Municipal nº 5.477, de 04 de novembro
de 2013, de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que trata “institui a obrigatoriedade de 30% de
funcionários de carreira em todos os cursos de capacitação profissional
realizados e pagos pelo município”.
Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, tendo havido desrespeito ao princípio da separação de poderes, sendo certo, ainda, que a lei provoca aumento de despesa sem a correspondente indicação da receita.
Concedida a liminar (fls. 16), o Presidente da Câmara prestou as informações que lhe foram solicitadas, aduzindo que, malgrado o projeto de lei contasse com parecer desfavorável da Assessoria Jurídica, que vislumbrou vício de iniciativa, sua aprovação obedeceu a todos os trâmites regimentais e legais.
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 61/63).
É a síntese necessária.
A Lei Municipal nº 5.477, de 04 de novembro de 2013, de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que “institui a obrigatoriedade de 30% de funcionários de carreira em todos os cursos de capacitação profissional realizados e pagos peço Município”, tem a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º. Regulamenta
a obrigatoriedade de que nos cursos de capacitação realizados ou pagos pelo
município, estejam incluídos entre os membros que realizarão os cursos pelo
menos 30% de funcionários públicos de carreira, ou seja, efetivos da Prefeitura.
Art. 2º. O
estabelecido no ART 1º, deste projeto de lei estende-se também às Autarquias
Municipais.
Art. 3º. Caberá
à Prefeitura Municipal de Catanduva adotar as medidas necessárias à execução e
fiscalização do programa assim que instituído.
Art. 4º. Esta
lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.”
Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.
Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.
A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das
funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a)
especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros,
2006, 2ª ed., p. 44).
Se, em princípio, a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual) em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a jurisprudência:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO
DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a
ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva
competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
No caso, foi violentada a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).
A decisão sobre reservar 30% das vagas nos cursos realizados pelo Município, ou a de garantir a participação de 30% dos funcionários efetivos da Administração Pública direta e indireta nos cursos realizados (a lei, em princípio, permite duas interpretações) é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo. É da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo, alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo.
Não bastasse, ainda que a matéria demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade a lei local por sua iniciativa parlamentar.
Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:
“as regras do processo legislativo
federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas
de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“(...) I. - As regras básicas do
processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos
Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).
“(...) 2. A Constituição do Brasil,
ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de
autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários
princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador
estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo
sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI
1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe
22-08-2008).
“(...) I. - A jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo
legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva
de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos
estados-membros. (...)” (RT 850/180).
“(...) 1. A Constituição do Brasil,
ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de
autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários
princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o
legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à
iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).
Decorre do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual,
pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos
estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam,
já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles
recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks
and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’
(equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito
Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração (entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições, quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa, segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste sentido:
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
É inegável que a reserva de 30% das vagas a funcionários públicos municipais, ou o patrocínio do curso para 30% dos funcionários públicos ocupantes de cargos de provimento efetivo na Administração Pública Municipal direta e indireta importa em sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.
Com efeito, lei de iniciativa parlamentar que cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos, demandando diretamente a realização de despesa pública, não prevista no orçamento, para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura, inclusive para os exercícios seguintes, padece também de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas, seja porque este reserva ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:
“Ação direta de
inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e
atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do
Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação
orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo.
Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).
“Ação Direta de
Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do
Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e
Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do
Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de
dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder
Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA
ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM
CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO
DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício
de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar,
embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou
novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração,
composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus
para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea
‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa
para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165,
inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade
dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de
inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5.
Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n.
10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).
Posto isso, opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da lei municipal com os arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual.
São Paulo, 31 de julho de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
mao