Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo n. 2063567-83.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Guarujá   

Requerido: Câmara Municipal de Guarujá

 

Ementa: Constitucional. Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 168 de 7 de abril de 2014, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar. Lei tributária benéfica. Separação de poderes. reserva de iniciativa legislativa do chefe do Poder Executivo. Impossibilidade de sujeição de concessão de isenção tributária à autorização legislativa. Procedência parcial. 1. Não há reserva de iniciativa legislativa ao chefe do Poder Executivo em matéria tributária. Competência concorrente. 2. Ofende a reserva da Administração a exigência de autorização legislativa prévia e específica para concessão de isenção, sendo incompatível com os arts. 5º e 47, II, III e XIV, CE/89. 3. Parecer pela procedência parcial da ação.

 

Colendo Órgão Especial:

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Prefeita Municipal impugnando a Lei Complementar n.º 168, de 7 de abril de 2014, do Município de Guarujá, que alterou a Lei  Complementar nº 38, de 24 de dezembro de 1997  (Código Tributário Municipal), por incompatibilidade com os arts. 5º, 25, 47, II, III, XIV e XVIII, 144, 174 e § 6º do artigo 176, da Constituição Estadual.

2.                O pedido de medida liminar foi deferido parcialmente para suspender a eficácia do inciso VI acrescentado pela lei impugnada ao art. 207 da Lei Complementar nº 38/1997 (fl. 80/82).

3.                Citado regularmente, o Senhor Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 90/92).

4.                Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 97/107).

5.                É o relatório.

6.                A ação é parcialmente procedente.

7.                Com efeito, a Lei Complementar n.º 168, de 7 de abril de 2014, do Município de Guarujá, que “Altera dispositivo da Lei Complementar nº 38, de 24 de dezembro de 1997, que especifica e dá outras providencias”, apresenta a seguinte redação:

 

“Art. 1º. O artigo 207 da Lei Complementar nº 38, de 24 de dezembro de 1997, que estabelece o Código Tributário Municipal, passará a ter a seguinte redação:

“Art. 207. Ficam isentos de impostos e tributos municipais, os Clubes Esportivos de Várzea e Amador, Grêmios Recreativos, Escolas de Samba sem fins lucrativos, que preencham todos os seguintes requisitos abaixo:

I - sejam inscritos no Departamento de Turismo e Esportes da Prefeitura de Guarujá.

II - tenham sede e foro no Município e Comarca de Guarujá, com conselheiros e diretoria não remunerados por suas funções junto a agremiação.

III - comprometam-se, mediante assinatura de termo, a emprestar suas dependências aos Poderes Públicos Municipal de Guarujá, sempre que por este requisitados, para a prática esportiva ou realização de eventos de interesse público.

IV - mantenham convênio com a municipalidade para a prestação de serviços sociais, contra partidas sociais, eventos voltados para a população em geral que substituam os serviços de educação, esporte e lazer ofertados pela municipalidade.

V - no caso em que se tratar de Clubes Esportivos ou Grêmios Recreativos com arrecadação estimada em mais de 100.000 (cem mil) Unidades Fiscais do Município de Guarujá por ano, terão isenção somente aqueles que tenham no ano anterior ao pedido da isenção de impostos e tributos municipais, realizado doação, comprovadamente de 50% (cinquenta por cento) do valor estimado para a arrecadação a ser isenta pela municipalidade em favor de entidades que realizem trabalhos sociais e que sejam reconhecidas pela municipalidade como de Utilidade Pública no Município de Guarujá, terem cedido o uso de espaços do Clube Esportivo ou Grêmio Recreativo com arrecadação "estimada" em mais de 30.000 (trinta mil) Unidades Fiscais do Município de Guarujá por ano, ou, terem comprovadamente gasto 50% (cinquenta por cento) do valor estimado para a arrecadação a ser isenta pela municipalidade em Projetos Sociais aprovados por um dos Conselhos Municipais, que sejam entre eles os de Assistência Social, da Criança e Adolescente, Turismo, Esporte, Saúde ou Educação.

VI - aprovação do Poder Legislativo de Guarujá.

Parágrafo Único - Não se aplica o dispostos no caput deste artigo, aos Clubes Esportivos cuja finalidade é difundir a prática náutica em geral e que prestem serviços de atracação, docagem, guarda, movimentação e manutenção, tanto em vagas secas como no mar, de embarcações de esporte e recreio.”

Art. 2º As despesas decorrentes da execução desta Lei Complementar correram a conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

8.                A norma impugnada manteve, em linhas gerais, o rol de beneficiados pela isenção prevista no dispositivo original (art. 207 do Código Tributário Municipal), contudo ampliou o seu objeto de “impostos” para “impostos e tributos”. Em contrapartida, aumentou os requisitos necessários para a concessão da benesse.

9.                Depreende-se do texto normativo, que o legislador atuou em consonância com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, visto que a par da lei ampliar o objeto das isenções, estabeleceu condições mais restritivas, com vistas ao atendimento de interesses sociais relevantes do município.

10.              A legislação impugnada tem a natureza de norma tributária benéfica, objetivando o incentivo à prática esportiva e ao lazer, que encontra guarida nos artigos 264 e 265 da Constituição do Estado de São Paulo.

11.              De forma majoritária, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem declarado a constitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que instituem benefícios fiscais, pois versam sobre matéria tributária.

12.              Colhe-se, em recente Acórdão, a comprovação dessa assertiva:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Ilustre Prefeito do Município de Ocauçu, Estado de São Paulo, por meio da qual se questiona a adequação constitucional da Lei Complementar Municipal nº 06, de 09 de setembro de 2013, que “dispõe sobre a isenção do imposto Predial e Territorial Urbano e das taxas de Serviços Urbanos e dá outras providências.” CONSTITUCIONALIDADE - A Constituição de 1988 não veda a iniciativa do Poder Legislativo em legislar sobre matéria tributária. A circunstância de as leis que versem sobre matéria tributária poderem repercutir no orçamento do ente federado não conduz à conclusão de que sua iniciativa é privativa do chefe do executivo. Por sua vez, a concessão de isenção tributária por meio de lei de iniciativa do Poder Legislativa também não represente nenhum vício de inconstitucionalidade Precedentes. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE IMPROCEDENTE.” (ADIN nº 2011272-69.2014.8.26.0000, de 14 de maio de 2014, r. Des. Roberto Mac Cracken).

13.              Tal orientação apoia-se no fato de que, em matéria tributária, a competência legislativa é concorrente (art. 61 da Constituição Federal e art. 24 da Constituição Estadual).

14.              Desse modo, não haveria inconstitucionalidade por vício de iniciativa, nem violação ao princípio da tripartição dos poderes, na lei que institui benefício fiscal, pois a norma não estaria versando sobre matéria orçamentária, nem aumentando a despesa do município.

15.              E essa é a tese que prevalece no Supremo Tribunal Federal. Em recente Acórdão, da lavra do em. Ministro Eros Grau, ficou consignado:

“O texto normativo impugnado dispõe sobre matéria de caráter tributário, isenções, matéria que, segundo entendimento dessa Corte, é de iniciativa comum ou concorrente; não há, no caso, iniciativa [parlamentar] reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tem-se por superado, nesta Corte, o debate a propósito de vício de iniciativa referente à matéria tributária” (ADI 3.809/ES, j. 14.6.07. Disponível em www.stf.gov.br. Acesso em 15 out. 2008, g.n.).

16.              Os seguintes julgados comprovam essa assertiva:

“EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: L. est. 2.207/00, do Estado do Mato Grosso do Sul (redação do art. 1º da L. est. 2.417/02), que isenta os aposentados e pensionistas do antigo sistema estadual de previdência da contribuição destinada ao custeio de plano de saúde dos servidores Estado: inconstitucionalidade declarada. II. Ação direta de inconstitucionalidade: conhecimento. 1. À vista do modelo dúplice de controle de constitucionalidade por nós adotado, a admissibilidade da ação direta não está condicionada à inviabilidade do controle difuso. 2. A norma impugnada é dotada de generalidade, abstração e impessoalidade, bem como é independente do restante da lei. III. Processo legislativo: matéria tributária: inexistência de reserva de iniciativa do Executivo, sendo impertinente a invocação do art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, que diz respeito exclusivamente aos Territórios Federais. IV. Seguridade social: norma que concede benefício: necessidade de previsão legal de fonte de custeio, inexistente no caso (CF, art. 195, § 5º): precedentes” (ADI 3205/MS - Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julgamento: 19/10/2006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação DJ 17-11-2006 PP-00047).

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR QUE FIXA MULTA AOS ESTABELECIMENTOS QUE NÃO INSTALAREM OU NÃO UTILIZAREM EQUIPAMENTO EMISSOR DE CUPOM FISCAL. PREVISÃO DE REDUÇÃO E ISENÇÃO DAS MULTAS EM SITUAÇÕES PRÉ-DEFINIDAS. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA NÃO LEGISLOU SOBRE ORÇAMENTO, MAS SOBRE MATÉRIA TRIBUTÁRIA CUJA ALEGAÇÃO DE VÍCIO DE INICIATIVA ENCONTRA-SE SUPERADA. MATÉRIA DE INICIATIVA COMUM OU CONCORRENTE. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE” (ADI 2659/SC - Min. NELSON JOBIM, Julgamento: 03/12/2003, Publicação DJ 06-02-2004 PP-00022).

17.              A lei impugnada não prevê a criação de novos encargos ao erário, não havendo como reconhecer o apontado vício de inconstitucionalidade material por violação ao teor dos artigos 25 e 176, inciso I, da Constituição Bandeirante.

18.              É inequívoco que, ao ampliar as hipóteses de isenção tributária, a lei em apreço pode ter redimensionado para menos a receita. Toda política pública, entretanto, tem impacto no orçamento, realidade que não pode ser levada em conta para caracterizar como orçamentária a norma que a estabelece.

19.              Não se tratando de lei orçamentária, e sim de lei tributária, é descabida a arguição de ofensa ao art. 174 da Constituição Estadual. Neste sentido:

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS DE DECISÃO MONOCRÁTICA. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSO LEGISLATIVO. NORMAS SOBRE DIREITO TRIBUTÁRIO. INICIATIVA CONCORRENTE ENTRE O CHEFE DO PODER EXECUTIVO E OS MEMBROS DO LEGISLATIVO. POSSIBILIDADE DE LEI QUE VERSE SOBRE O TEMA REPERCUTIR NO ORÇAMENTO DO ENTE FEDERADO. IRRELEVÂNCIA PARA FINS DE DEFINIÇÃO DOS LEGITIMADOS PARA A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO LEGISLATIVO. AGRAVO IMPROVIDO. I – A iniciativa de leis que versem sobre matéria tributária é concorrente entre o chefe do poder executivo e os membros do legislativo. II – A circunstância de as leis que versem sobre matéria tributária poderem repercutir no orçamento do ente federado não conduz à conclusão de que sua iniciativa é privativa do chefe do executivo. III – Agravo Regimental improvido” (STF, ED-RE 590.697-MG, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 23-08-2011, v.u., DJe 06-09-2011).

20.              Por fim, necessário se faz o reconhecimento da inconstitucionalidade do inciso VI acrescentado pela lei impugnada ao art. 207 da Lei Complementar nº 38/1997, que condiciona a concessão das isenções à “aprovação do Poder Legislativo do Guarujá”.

21.              Tal dispositivo caracteriza a usurpação da função administrativa tributária, pertencente ao Poder Executivo (art. 5º e art. 47, incisos II, III e XIV, da CE).  A Lei Complementar 168/2014 ao prever as hipóteses de isenção tributária condicionada, atende ao disposto no artigo 163, § 6º da Constituição Bandeirante.

22.              Emana do princípio da separação dos poderes a proibição de interferência de um Poder sobre o outro. Pelo desenho normativo-constitucional exposto, a concessão da isenção, ou seja, a subsunção do caso concreto à previsão normativa, é típico ato de gestão administrativa, elementar às funções reservadas ao Poder Executivo, e imune da participação do Poder Legislativo. Corolário do princípio da separação dos poderes é que as interferências recíprocas entre os Poderes da República são aquelas expressamente consignadas e previstas na Constituição.

23.              Diante do exposto, opino pela procedência parcial do pedido, para que seja reconhecida a inconstitucionalidade do inciso VI acrescentado pela Lei Complementar n.º 168, de 7 de abril de 2014, ao art. 207 da Lei Complementar nº 38, de 24 de dezembro de 1997, do Município de Guarujá.

 

São Paulo, 01 de julho de 2014.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

    Jurídico em exercício

 

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