Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n. 2066340-04.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Requerida: Câmara Municipal de Catanduva

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei Complementar n. 692, de 25 de fevereiro de 2014, do Município de Catanduva. Instituição de abono às faltas de servidores celetistas temporários municipais (berçarista, recreacionista, professor I e II). Iniciativa Parlamentar. Ofensa à reserva de iniciativa legislativa conferida ao executivo. Separação de Poderes. Procedência da ação. 1. Parâmetro exclusivo da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual, sendo defeso seu contraste com a legislação municipal. 2. Encontra-se na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de normativa concernente a servidores públicos (arts. 5º; 24, §2º, 4 da Constituição Estadual). 3. Procedência da ação.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Catanduva impugnando a Lei Complementar nº 692, de 25 de fevereiro de 2014, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, que estabelece o instituto jurídico “abono” aos servidores celetistas temporários municipais (berçarista, recreacionista, professor I e II), suscitando sua incompatibilidade com os arts. 5º; 25; e 144 da Constituição Estadual; e com o art. 67, caput e VI da Lei Orgânica Municipal.

Concedida a liminar (fls. 16/17), posteriormente foi juntada manifestação da Câmara Municipal de Catanduva sustentando a constitucionalidade do ato normativo, em oposição à opinião expedida por sua assessoria jurídica, que se posicionava a favor da inconstitucionalidade do ato por força do vício de iniciativa existente (fls. 28/31).

A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei vergastada (fls. 76/78).

É o relatório.

De início, importante consignar que o contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), sendo inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica Municipal (fl. 13).

Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional não merece cognição, haja vista ser “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

Superadas as considerações iniciais, posiciona-se pela procedência da ação.

Em que pese a requerente ter suscitado indevidamente ofensa ao vício de iniciativa normativa à luz do art. 144 da Carta Bandeirante, por suposta inobservância do disposto no art. 67 da Lei Orgânica do Município de Catanduva, é notória a aplicação do conceito de causa petendi aberta ao contencioso objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo (RTJ 200/91) que torna possível o contraste da norma contestada com outros preceitos da Constituição Estadual ainda que não suscitados na petição inicial.

No caso, se faz presente um vício de inconstitucionalidade formal, embora sob a égide de outro fundamento, qual seja, o art. 24, §2º, 4 da CE/89.

Adentrando no regime jurídico dos servidores públicos, a Lei Complementar nº 692, de 25 de fevereiro de 2014, outorgou aos servidores temporários municipais o direito ao abono de faltas, ex vi do disposto a seguir:

Lei Complementar nº 692, de 25 de fevereiro de 2014:

(...)

Art. 1º - Fica facultado aos servidores celetistas temporários (berçarista, recreacionista, professor I e professor II) contratados pelo Município de Catanduva, abonar até o máximo de seis (6) faltas por ano, não podendo exceder mais de uma (1) por mês.

Art. 2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. (...)”

Ocorre que a lei combatida pelo Executivo Municipal não poderia dispor sobre a temática nos moldes em que editada, ante os seguintes argumentos.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Carta Paulista, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 do mesmo diploma. Este dispositivo é pedra fundamental do Estado de Direito, assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Decorrente do princípio da divisão funcional do poder é explícito que as regras acerca do regime jurídico dos servidores públicos, incluindo neste bojo os temporários, são da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (arts. 5º e 24, § 2º, 4 da CE/89), sendo interditado seu tratamento por lei de iniciativa parlamentar (RTJ 167/355).

Em se tratando de processo legislativo, é sabido que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

 “(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

Esse concerto, como se sabe, advém do caráter compulsório das regras do processo legislativo federal (arts. 2º e 61, § 1º, II, a e c, Constituição Federal) no âmbito estadual e municipal (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

Desse modo, a iniciativa legislativa da lei local é incompatível com o art. 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual, que decorre do princípio da separação de poderes aduzido no art. 5º da Constituição Estadual (e que reproduzem o quanto disposto nos arts. 2º e 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Federal), aplicáveis aos Municípios por obra de seu art. 144.

Por fim, consigne-se ser descabida a argumentação de inconstitucionalidade do diploma guerreado por suposta ofensa ao art. 25 da Carta Paulista.

Ao instituir o direito ao abono às faltas dos temporários do Município de Catanduva, a Lei Complementar nº 692/14 não estabelece diretamente uma nova despesa ao erário do ente, porquanto não outorga benefício sujeito a qualquer contrapartida estatal direta aos seus servidores, de sorte a restar afastada a ofensa ao art. 25 da Constituição Bandeirante.

Em verdade, a referida normativa carece de boa técnica legislativa, vez que não estabelece expressamente qualquer consequência quando do uso do direito ao abono, a exemplo da perda de remuneração diária do servidor, disposição esta que se encontra prevista em normativa de outros entes. Entretanto, tomando-se por base a via eleita pela requerente para impugnar a legislação em epígrafe, aliada a outros argumentos que de per si demonstram a inconstitucionalidade de seu texto, descabe tecer maiores comentários sobre a omissão.

Face ao exposto, opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da Lei Complementar nº 692, de 25 de fevereiro de 2014, do Município de Catanduva, com os arts. 5º e 24, § 2º, 4, da Constituição Estadual.

                   São Paulo, 06 de junho de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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