Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2073355-24.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Flórida Paulista

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Flórida Paulista

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda a Lei Orgânica nº 17, de 24 de março de 2014, de Flórida Paulista, de iniciativa parlamentar, que acrescenta ao artigo 73 o inciso XXII, que dispõe sobre a obrigatoriedade de nomeação de servidores efetivos para 50% dos cargos de provimento em comissão.

2)      A organização administrativa do serviço público e do regime jurídico dos servidores públicos é matéria de iniciativa legislativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Propositura legislativa dependente de planejamento para verificação da adequação do quadro de pessoal às necessidades do serviço público, atividade típica do Poder Executivo.

3)      Violação dos arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual, com relação aos cargos do Poder Executivo. Parcial procedência do pedido.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelo Prefeito Municipal de Flórida Paulista, tendo como alvo a Emenda a Lei Orgânica nº 17, de 24 de março de 2014, de Flórida Paulista, de iniciativa parlamentar, que acrescenta ao artigo 73 o inciso XXII, que dispõe sobre a obrigatoriedade de nomeação de servidores efetivos para 50% dos cargos de provimento em comissão.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, além de intromissão e invasão do Poder Legislativo no Poder Executivo, importando violação do princípio federativo, da independência e da harmonia dos poderes. Aponta, assim, contrariedade aos arts. 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.

A medida liminar requerida foi concedida (fls. 46). O Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo atacado (fls. 56/58). O Presidente da Câmara Municipal apresentou informações sustentando a validade da lei local impugnada (fls. 62/69).

É a síntese necessária.

A ação é parcialmente procedente.

A Emenda a Lei Orgânica nº 17, de 24 de março de 2014, de Florida Paulista, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica acrescentado o inciso XXII, ao Artigo 73 da Lei Orgânica do Município de Flórida Paulista, com a seguinte redação:

‘Art. 73 –

INCISO XXII – 50% (cinquenta por cento) dos cargos de provimento em comissão serão exercidos obrigatoriamente por servidores pertencentes ao quadro efetivo da administração.

Art. 2º - Esta Emenda a Lei Orgânica Municipal entrará em vigor na data de sua publicação e revoga as disposições em contrário.”

 

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado, no que concerne aos servidores públicos do Poder Executivo, apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A lei municipal impugnada estabelece, no âmbito do Poder Executivo e do Legislativo, percentual mínimo dos cargos em comissão a serem providos por servidores de carreira.

A lei, de iniciativa parlamentar, revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e da harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou também de matéria relativa ao provimento dos cargos da Administração Pública Municipal, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 1 e 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

As entidades estatais são livres para organizar o seu pessoal para o melhor atendimento dos serviços a seu cargo, devendo, porém, observarem três regras fundamentais: que a organização se faça por lei; que a iniciativa seja exclusiva da entidade ou Poder interessado; e que sejam consideradas as normas constitucionais pertinentes ao servidor público.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos do Poder Executivo, como ocorre, no caso em exame, em função da fixação do percentual mínimo de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

O estabelecimento de percentual de cargos em comissão a serem ocupados por servidor de carreira importa em alteração na dinâmica  da administração do pessoal, haja vista a necessidade de avaliar dentro da estrutura administrativa do serviço público a quantidade de funcionários exigida para o funcionamento da máquina administrativa, pois a utilização de um percentual de servidores de carreira para ocupação de determinado percentual dos cargos em comissão por servidores de carreira deverá ser compensada com a previsão de funcionários para o exercício das atribuições do servidor nomeado.

Não se trata, portanto, de mera atividade legislativa, haja vista que para a propositura há necessidade de planejamento e averiguação das exigências do serviço público, atividade nitidamente administrativa, representativa de ato de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Ao estabelecer o percentual, o legislador modifica, em aspecto relevante, a estrutura funcional do serviço público reguladora da atividade da Administração local, que se mostra fundamental na organização do governo. A repercussão direta dessa mudança afeta direta e indiretamente o regime dos servidores.

Por tratar-se de evidente matéria de organização administrativa, a iniciativa do processo legislativo está reservada ao chefe do Poder Executivo. Os Municípios devem obediência às regras de iniciativa legislativa reservada, fixadas constitucionalmente, sob pena de violação do modelo de harmônica tripartição de poderes, consagrado pelo constituinte originário.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 24, § 2°, 1 e 4 e 144).

Resta, ainda, assinalar que o Legislador, ao definir o percentual de cargos em comissão a serem ocupados por servidores de carreira, está alterando aspecto relevante da gestão administrativa. Essa determinação de orientação deve partir, ainda que dependente de lei, da própria Administração Pública.

No que concerne, contudo, aos cargos do Poder Legislativo, a lei, por óbvio, é constitucional, porquanto de iniciativa do próprio parlamento.

Diante do exposto, aguarda-se seja julgada parcialmente procedente a ação.  

São Paulo, 30 de julho de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico em exercício

 

 

 mao