Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº207464-80.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Lagoinha

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Lagoinha

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 19, inciso XII, da Lei Orgânica Municipal de Lagoinha, que prevê a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito (e o Vice-Prefeito) para prestar, pessoalmente, informações sobre assuntos previamente determinados, sob pena de responsabilidade.

2)     Inconstitucionalidade. Impossibilidade de convocação,pelo Poder Legislativo,do Prefeito e do Vice-Prefeito para prestarem informações. Ofensa ao princípio da separação dos poderes.

3)     Causa de pedir aberta. Impossibilidade da convocaçãopelo Poder Legislativo de Diretores e Dirigentes das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista,por extrapolar, à luz do modelo federal (art. 50, CF), aplicável por força do art. 144 da CE, o poder-dever de controle político-administrativo da Câmara Municipal sobre o Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

4)      Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Lagoinha, tendo como alvo o art.19, inciso XII, da Lei Orgânica daquele município, que prevê a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito e o Vice-Prefeito, diretor e dirigentes das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, para prestarem esclarecimentos sobre assuntos previamente determinados, sob pena de responsabilidade.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia das expressões “Prefeito” e “Vice-Prefeito”, contidas no art. 19, inciso XII, da lei impugnada (fls.194/195).

 Notificado (fl. 212), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 214/216). Citado regularmente (fl. 205/206), o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo impugnado, assinalando que a matéria tem repercussão exclusivamente local (fls. 201/203).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral.

Procede o pedido.

O art. 19, XII, da Lei Orgânica do Município de Lagoinha tem a seguinte redação:

“Artigo 19 – Compete à Câmara, privativamente dentre outras, as seguintes atribuições:

(...)

XII – Convocar por iniciativa de qualquer Vereador ou Comissão, com aprovação de maioria absoluta do Plenário, o Prefeito, o Vice-Prefeito, agentes municipais, diretores e dirigentes das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, para prestar pessoalmente, informações sobre assuntos previamente determinados, sob pena de responsabilidade, na forma da legislação vigente;

(...)”

O dispositivo legal normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional, por violar o princípio da separação de poderes e a limitação formal ao campo de fiscalização do Poder Legislativo, previstos nos arts. 5° e 20, inciso XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 20 - Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa:

(...)

XIV - convocar Secretários de Estado, dirigentes, diretores e Superintendentes de órgãos da administração pública indireta e fundacional e Reitores das universidades públicas estaduais para prestar, pessoalmente, informações sobre assuntos previamente determinados, no prazo de trinta dias, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificativa;

(...)”

O artigo 50, “caput”, da Constituição Federal prevê:

“Art. 50. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando em crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada.

  § 1º Os Ministros de Estado poderão comparecer ao Senado Federal, à Câmara dos Deputados ou a qualquer de suas comissões, por sua iniciativa e mediante entendimentos com a Mesa respectiva, para expor assunto de relevância de seu Ministério.

  § 2º As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de informação a Ministros de Estado ou a qualquer das pessoas referidas no caput deste artigo, importando em crime de responsabilidade a recusa, ou o não-atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas.”

Com o dispositivo legal impugnado, pretende o Poder Legislativo Municipal submeter o Prefeito e o Vice-Prefeito, bem como os Diretores e Dirigentes das entidades da Administração Pública Indireta, para prestarem informações sobre assuntos previamente determinados, sob pena de responsabilidade.

Vale ressaltar que o chamado controle externo dos atos do Poder Executivo pode ser exercido, entre outras formas, diretamente pelo Poder Legislativo, conforme preceitua o artigo 150 da Constituição do Estado de São Paulo, contando, para tanto, com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado (art. 33 da Constituição Estadual). Trata-se de um controle de natureza política, “mas sujeito à prévia apreciação técnico-administrativa do Tribunal de Contas competente, que, assim, se apresenta como órgão técnico” (José Afonso da Silva, Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 685).

O poder de fiscalização da Câmara Municipal traduz-se na possibilidade de convocação de funcionários subalternos ao Prefeito para prestar depoimento, na instauração de comissão parlamentar de inquérito, na solicitação de informações e na tomada e julgamento de contas da Administração, sobre as quais serão realizadas inspeções e auditorias dos registros contábeis, balanços, escrituração e análise dos resultados econômicos e financeiros (Ricardo Lobo Torres, O Orçamento na Constituição, Rio de Janeiro, Renovar, p. 239).

Em nosso ordenamento jurídico, não há norma que atribua posição subalterna e imponha ao chefe da Administração Pública a obrigação de comparecer perante o Poder Legislativo para prestar informações (que podem ser obtidas por outros meios).

O ato normativo impugnado, ao prever a possibilidade da Câmara Municipal convocar o Prefeito Municipal e o Vice-Prefeito para pessoalmente comparecerem e prestarem informações, extrapola os limites da relação de harmonia e independência entre os poderes do Estado.

O art. 20, XIV, da Constituição Estadual, e o art. 50, “caput”, da Constituição Federal, delimitam o campo de fiscalização do Poder Legislativo prevendo apenas a possibilidade de convocação de Secretários de Estado e Ministros de Estado, sem fazer qualquer referência à figura do Governador ou do Presidente da República.

Clara é, portanto, a vulneração ao princípio da independência e harmonia dos poderes, consagrado no artigo 5º, caput, da Constituição do Estado de São Paulo. Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é aos Municípios, nos termos do artigo 144 da mesma Carta. As normas de fixação da esfera de atribuições têm como corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos.

Não se nega ao Legislativo o seu poder constitucional de fiscalizar. Mas esse controle não é irrestrito. Ao contrário, encontra limites nas diretrizes dadas pelas Constituições Federal e Estadual.

E o Legislativo Municipal foi além do que possibilita a Constituição Estadual, pois a convocação do Prefeito e do Vice-Prefeitosignifica, na verdade, submetê-los a uma posição de inferioridade e transformá-los meros prepostos do Legislativo.

Ademais, para exercício da relevante função fiscalizadora, dispõe a Edilidade de instrumentos próprios e hábeis, dentre eles o pedido de informações, a cujo atendimento o Prefeito não pode furtar-se, sob pena de prática de infração político-administrativa sujeita ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato (art. 4°, III,do Decreto Lei nº 201/67)

Assim, o controle externo, que tem matriz constitucional, foi desfigurado, afrontando o princípio da harmonia e independência entre os Poderes consagrado no art. 5º da Constituição Estadual. 

A propósito já houve pronunciamento do Supremo Tribunal Federal:

"Os dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembleia Legislativa capixaba convocar o presidente do Tribunal de Justiça para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse chefe de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da CF, extrapolando as fronteiras do esquema de freios e contrapesos – cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica – e maculando o princípio da separação de poderes. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 10-8-2006, Plenário, DJ de 2-2-2007.)

“Dispositivo da Constituição do Estado da Bahia que prevê a convocação, pela Assembleia Legislativa, do governador do Estado, para prestar pessoalmente informações sobre assunto determinado, importando em crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada. Fumus boni iuris que se demonstra com a afronta ao princípio de separação e harmonia dos Poderes, consagrado na CF. Periculum in mora evidenciado no justo receio do conflito entre poderes, em face de injunções políticas. Medida cautelar concedida.” (ADI 111-MC, Rel. Min. Carlos Madeira, julgamento em 25-10-1989, Plenário, DJ de 24-11-1989.) No mesmo sentido: ADI 3.279, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 16-11-2011, Plenário, DJE de 15-2-2012.

De outro lado, cumpre apontar a inconstitucionalidade do dispositivo tratado também no que trata dos “diretores e dirigentes das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista”, ofensa que, embora não invocada na inicial, pode ser declarada em virtude da natureza aberta da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade, que permite o exame da norma impugnada através de fundamento constitucional não adotado expressamente pelo autor.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Nesse sentido, aliás, vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

“Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...)” (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno, DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

Assim, deve ser considerada, ainda, a inconstitucionalidade dos termos acima mencionados, pelas razões a seguir expostas.

Pelo inc. XII do art. 19, ora impugnado, permite-se a convocação de diretores e dirigentes de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, para prestar pessoalmente informações sobre assuntos previamente determinados, sob pena de responsabilidade.

Referido dispositivo traduz-se, efetivamente, na quebra do princípio da separação dos poderes, pois extrapola o modelo federal, que consente com a convocação dos Ministros e titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência.

Pela redação do dispositivo em estudo, permite-se no Município de Lagoinha a convocação de diretores e dirigentes de quaisquer órgãos da Administração Indireta, independentemente de sua posição no organograma, o que, à evidência, extrapola o parâmetro previsto na Constituição Federal.

Reconhece-se o mérito do Legislador Municipal em restringir o objeto da convocação, fixando como finalidade a obtenção de informações sobre assuntos previamente determinados, tal como o paradigma federal. Contudo, também aqui alargou por demais o rol dos convocados, querendo alcançar autoridades que não estão diretamente subordinadas ao Alcaide.

Ora, se o Parlamento requisita o comparecimento de diretores de escalões subalternos, rompe com a hierarquia administrativa, para se imiscuir em assuntos de menor envergadura, em seara que lhe é, por óbvio, interditada.

A requisição de informações de que trata o inc. XII do art. 19 deveria se restringir – pelos motivos já assinalados – às autoridades diretamente ligadas ao Prefeito, como ocorre na regra-tipo federal, que é de observância obrigatória nos demais entes políticos.

Confira-se, a propósito, o entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI n° 3.279:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Art. 41, caput e § 2º, da Constituição do Estado de Santa Catarina, com a redação das ECs nº 28/2002 e nº 53/2010. Competência legislativa. Caracterização de hipóteses de crime de responsabilidade. Ausência injustificada de secretário de Estado a convocação da Assembléia Legislativa. Não atendimento, pelo governador, secretário de Estado ou titular de fundação, empresa pública ou sociedade de economias mista, a pedido de informações da Assembléia. Cominação de tipificação criminosa. Inadmissibilidade.Violação a competência legislativa exclusiva da União. Inobservância, ademais, dos limites do modelo constitucional federal. Confusão entre agentes políticos e titulares de entidades da administração pública indireta. Ofensa aos arts. 2º, 22, I, 25,  50, caput e § 2º, da CF. Ação julgada procedente, com pronúncia de inconstitucionalidade do art. 83, XI, “b”, da Constituição estadual, por arrastamento. Precedentes.”(ADI n° 3.279-SC, rel. Ministro Cezar Peluso, julgado em 16-11-2011)

Vale trazer trecho do acórdão proferido na referida ADI, explicitando a violação ao texto constitucional ora defendida:

“(...)

As autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista inserem-se na chamada administração pública indireta, na condição de entidades, donde ser equivocada a simetria estabelecida, no tipo penal, entre seus dirigentes e os ‘titulares de órgãos diretamente ligados à Presidência da República’, como são as Secretarias Especiais constantes do organograma da administração federal.

6. Ademais, os titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista tampouco entram ou cabem na classe dos agentes políticos, sujeitos ativos do crime de responsabilidade. Aos segundos identifica-os, com certa propriedade, a doutrina:

‘Caracterizam-se por terem funções de direção e orientação estabelecidas na Constituição e por ser normalmente transitório o exercício de tais funções. Como regra, sua investidura se dá através de eleição, que lhes confere o direito a um mandato, [...]. Por outro lado, não se sujeitam às regras comuns aplicáveis aos servidores públicos em geral; a eles são aplicáveis normalmente as regras constantes da Constituição, sobretudo as que dizem respeito às prerrogativas e à responsabilidade política. São eles os Chefes do Executivo (Presidente, Governadores e Prefeitos), seus auxiliares (Ministros e Secretários Estaduais e Municipais) e os membros do Poder Legislativo (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores). Alguns autores dão sentido mais amplo a essa categoria, incluindo Magistrados, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas.’ (FILHO, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO. Manual de direito administrativo. 11ª edição: Editora Lúmen Iuris, TJ, 2004, p. 484.)

Considerando que o art. 50 da Constituição Federal faz referência a Ministros de Estado e a ‘titulares de órgãos diretamente ligados à Presidência da República’, todos indiscutivelmente agentes políticos, é patente que não podem os titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista ser àqueles equiparados para o fim perseguido da norma que, de âmbito estadual, carece de competência legislativa para os  transformar em sujeitos ativos do crime.”

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput da CR/88 prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Em síntese do que foi dito, conclui-se que a norma questionada representa ilegítima ingerência da Câmara nos atos de governo e nas prerrogativas do Prefeito, sendo violadora do princípio da separação dos poderes.

 

Assim, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o legislador municipal, impõe-se reconhecer a inconstitucionalidade dos termos impugnados na inicial, bem como daqueles que permitem a convocação pelo Legislativo Municipal, de autoridades que não estão diretamente subordinadas ao Alcaide (diretores e dirigentes de entidades da Administração Indireta).

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade dasexpressões “Prefeito”, “Vice-Prefeito”, e “diretores e dirigentes das autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista”, constantes do art. 19, inciso XII, da Lei Orgânica Municipal de Lagoinha.

 

              São Paulo, 09 de setembro de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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