Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2078863-48.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Poá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Poá

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.705, de 03 de abril de 2014, do Município de Poá. Iniciativa parlamentar. Implantação de programa de coleta de medicamentos vencidos ou estragados. Violação à separação de poderes. Procedência da ação. A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito de Poá em face da Lei Municipal nº 3.705, de 03 de abril de 2014, de iniciativa parlamentar, que instituiu o programa de coleta de medicamentos vencidos ou estragados, sob alegação de violação aos arts. 5º, 24, §§ 2º, 5º, I, 25, 47, II, 144, da Constituição Estadual (fls. 01/14).

Concedida a liminar (fl. 42/49), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 50/52) e as informações da Câmara foram prestadas (fls. 57/63).

É o relatório.

O pedido é procedente.

A lei impugnada assim dispõe:

“Art. 1º. Fica criado no âmbito do município de Poá, o Programa de Coleta de Medicamentos Vencidos ou Estragados.

Parágrafo único: O Programa de Coleta de Medicamentos Vencidos ou Estragados deverá conscientizar a população de que o descarte dos medicamentos vencidos ou estragados, deverá ser feito na rede municipal de saúde, tais como: Postos de Saúde e Hospital Municipal, e não em lixo doméstico ou em lixeiras.

Art. 2º. Todo tipo de medicamento que se encontra nas residências e com prazo de validade vencido, deverá ser depositado, pelo usuário, em recipientes previamente instalados nas Unidades de Saúde do município de Poá e no Hospital, para que estas adotem os procedimentos ambientais adequados de destinação final.

Art. 3º. Os estabelecimentos que comercializam e fornecem medicamentos ficam obrigados a afixar, em local visível de atendimento ao público, cartaz contendo orientações sobre a destinação correta dos medicamentos vencidos.

Parágrafo único: Na frente destas caixas coletoras, deve estar inscrita a seguinte orientação:

“Descarte correto de medicamentos.”

“Cuidar do planeta faz bem à saúde e não tem contra indicação.”

Art. 4º. As eventuais despesas necessárias para fazer face à execução da presente Lei, correrão por conta de verbas próprias do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 5º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

A lei impugnada contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição do Estado são aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144, que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

A lei contestada é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.

§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;

(...)

Artigo 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Parágrafo único - O disposto neste artigo não se aplica a créditos extraordinários.

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”.

É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

Também prevê no art. 47 da Constituição Estadual (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

Assim, ao instituir programa administrativo, de um lado, a lei viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, proclama a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, o ato normativo impugnado invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Por derradeiro, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com os arts. 25 e 176, inciso I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida ao instituir programa de incumbência do Poder Executivo não indica os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos. A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

         Feitas estas considerações, manifesta-se pela procedência do pedido, a fim de que seja reconhecida a inconstitucionalidade da Lei 3.705, de 03 de abril de 2014, do Município de Poá.

 

São Paulo, 13 de julho de 2014.

 

 

 

Arnaldo Hosepian Salles Lima Junior

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico – em exercício

 

aaamj/dcm