Parecer
Processo n. 2081190-63.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Sorocaba
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba
Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 10.750, de 06 de março de 2014, do Município de Sorocaba. Autorização legislativa para celebração de contratos de locação pela Administração Pública Municipal. Parametricidade no controle de constitucionalidade de norma municipal. Inexistência de reserva de iniciativa. Separação de Poderes. Reserva da Administração. Invasão da competência legislativa federal. Princípio Federativo. Procedência da ação. 1. O contencioso de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual ainda que remissiva ou reprodutora da Constituição Federal (art. 125, § 2º, CF/88), razão pela qual é inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica do Município ou com dispositivo da Constituição Federal. 2. Lei de iniciativa parlamentar que não disciplina matéria prevista no artigo 24, § 2°, da CE. 3. Autorização legislativa para celebração de contratos pelo Poder Executivo viola a separação de poderes por se tratar de ato da esfera reservada à Administração Pública sem interferência do Parlamento (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, CE/89). 4. A previsão de normas gerais de contratação pública invade a competência normativa federal (art. 144, CE/89 c.c. art. 22, XXVII, CF/88). 5. Procedência da ação.
Douto Relator,
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pelo Prefeito Municipal de Sorocaba impugnando a Lei n. 10.750, de 06
de março de 2014, do Município de Sorocaba, que dispõe
sobre “a obrigatoriedade de prévia avaliação e de autorização legislativa para
os contratos de locação pela Administração Pública Municipal”, suscitando sua incompatibilidade com
o artigo 61, inciso II, da Lei Orgânica Municipal, com os artigos 5º, 24, § 2°,
47, II, e 144 da Constituição Estadual e com os artigos 1°, 2°, 22, inciso
XXVII, 29, 61, § 1°, 84, incisos II e III, da Constituição Federal.
2. Concedida a liminar (fl. 165), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou
da defesa da norma contestada (fls. 176/178) e a Câmara Municipal de Sorocaba
prestou informações (fls. 180/185).
3. É
o relatório.
4. A
ação é procedente.
5. O controle de constitucionalidade de lei ou ato
normativo municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual,
consoante previsto no § 2º do art. 125 da Constituição Federal, razão pela qual é inadmissível seu
contraste com a Lei Orgânica do Município, lei federal ou dispositivo da
Constituição Federal não reproduzido nem imitado pela Constituição Estadual ou
que não seja de observância obrigatória.
6. Em se tratando de processo
legislativo é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e
extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido:
“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
7. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder
Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes,
entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida
interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada,
perfilhando tradicional lição salientando que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
8.
Fixadas estas premissas, as
reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos
públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas
restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo
legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros.
Neste sentido, colhe-se
da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As hipóteses de limitação da
iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus
clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao
funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a
servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
“A disciplina jurídica do
processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois
residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o
procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao
exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo
legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que
esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente
constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da
própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em
conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito
positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao
Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa”
(STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u.,
DJ 07-12-2006, p. 36).
9. Como desdobramento
particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição
Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º,
iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na
órbita municipal por obra de seu art. 144). Não se verifica nesse preceito
reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa ao objeto da
lei impugnada.
10. Ademais, emana do princípio da separação dos poderes a proibição de interferência de um Poder sobre o outro. Pelo desenho normativo-constitucional exposto, a celebração de contrato de locação é típico ato de gestão administrativa, elementar às funções reservadas ao Poder Executivo, e imune da participação do Poder Legislativo. Corolário do princípio da separação dos poderes é que as interferências recíprocas entre os Poderes da República são aquelas expressamente consignadas e previstas na Constituição.
11. Situa-se o juízo de conveniência e oportunidade a celebração de contrato, única e exclusivamente no domínio da competência do Poder Executivo, constituindo aquilo que se denomina como reserva da Administração, e que é assim balizada pela Suprema Corte:
“RESERVA DE
ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva
de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias
sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em
tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos
atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse
modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da
separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo
que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas
privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando
efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão
funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição
parlamentar e importa em atuação ultra
vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica,
exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas
institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de
Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
12. Neste sentido, calha a invocação de cediça jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. CONVÊNIOS, ACORDOS, CONTRATOS, AJUSTES E INSTRUMENTOS CONGÊNERES. APROVAÇÃO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA: INCONSTITUCIONALIDADE. I. - Normas que subordinam convênios, ajustes, acordos e instrumentos congêneres celebrados pelo Poder Executivo estadual à aprovação da Assembléia Legislativa: inconstitucionalidade. II. - Suspensão cautelar da Lei nº l0.865/98, do Estado de Santa Catarina”(STF, ADI-MC 1.865-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 04-09-1999, v.u., DJ 12-03-1999, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 20, inciso III do artigo 40 e a expressão ‘ad referendum da Assembléia Legislativa’ contida no inciso XIV do artigo 71, todos da Constituição do Estado de Santa Catarina. Pedido de Liminar. - Normas que subordinam convênio, ajustes, acordos e instrumentos congêneres celebrados pelo Poder Executivo estadual à aprovação da Assembléia Legislativa. Alegação de ofensa ao princípio da independência e harmonia dos Poderes (art. 2º da Constituição Federal). Liminar deferida para suspender, ‘ex nunc’ e até julgamento final, a eficácia dos dispositivos impugnados” (STF, ADI-MC 1.857-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 27-08-1998, v.u., DJ 23-10-1998, p. 02).
13. Há, portanto, manifesta incompatibilidade vertical com os artigos 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.
14. Há outro aspecto fundamental. Ao dispor sobre celebração de contrato de locação pela Administração Pública Municipal, a lei local invade a esfera de competência normativa privativa da União para normas gerais de licitação e contratação, prevista no art. 22, XXVII, da Constituição Federal. Assim sendo, expõe-se à incompatibilidade com o art. 144 da Constituição Estadual, norma de caráter remissivo aos preceitos da Constituição Federal, dentre eles o princípio federativo que arquiteta a repartição constitucional de competências normativas.
15. Face
ao exposto, opino pela procedência da ação em razão da incompatibilidade da Lei
n. 10.750, de 06 de março de 2014, do Município de Sorocaba, com os artigos 5º,
47, II, XIV e XIX, a, e 144 da
Constituição Estadual.
São
Paulo, 23 de julho de 2014.
Gianpaolo Poggio Smanio
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj/acssp