Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2083980-20.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.236, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “Utilização de papel reciclado, no âmbito da Administração Municipal, e dá outras providências”.
2) Matéria reservada ao chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa. Criação de obrigação e despesas para a Administração. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, incs. II, XIV e XIX, a; 144 e 176, I, da Constituição Estadual.
3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.236, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “Utilização de papel reciclado, no âmbito da Administração Municipal, e dá outras providências”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e criar despesa sem indicação fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 25, 47, II e XIV e 144 da Constituição Estadual.
Foi deferida a liminar para suspender, com efeito ex nunc, a vigência e a eficácia da Lei Municipal nº 7.236/2014, de Guarulhos, (fl. 42/46).
Citado regularmente (fl.50), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 55/57).
Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 61/67, defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
É o relatório.
O pedido deve ser julgado é procedente.
A Lei nº 7.236, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre “Utilização de papel reciclado, no âmbito da Administração Municipal, e dá outras providências”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:
“Art. 1º Fica obrigatório o uso de papel reciclado em toda a Administração Pública Municipal, direta e indireta do Município de Guarulhos.
Art. 2º Fica o Poder Executivo obrigado a adotar, na progressão de 20% (vinte por cento) ao ano, o uso de papel não clorado em seus materiais de expediente, tais como folhas de ofício, envelopes, fichários e formulários, para no prazo de 5 (cinco) anos, abolir a utilização de papel clareado a cloro.
Art. 3º O Poder Executivo deverá adotar, gradativamente, nas proporções e prazos estabelecidos no artigo anterior, papel reciclado no material escolar entregue às escolas municipais e nos materiais gráficos de propaganda e publicidade de campanhas informativas e de orientação do Município.
Art. 4º As despesas decorrentes da presente Lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.
Art. 5º O Executivo deverá regulamentar a presente Lei, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a partir da sua publicação.”
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela lei impugnada
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos
Secretários Municipais.
A lei, de iniciativa parlamentar, cria
obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública,
visto que lhe impõe a obrigação de utilizar papel não-clorado ou reciclado em
seu material de expediente, inclusive no material escolar entregue às escolas
municipais, fixando o prazo de 5 (cinco) anos para a abolição do papel clareado
a cloro no âmbito municipal.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades públicas. Assim, privativa do Poder
Executivo e inserida na esfera do poder
discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode
através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o
legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade sobre o uso de papel reciclado no âmbito da administração pública. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração
Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia
e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com
usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao dispor sobre a espécie de papel a ser utilizado no âmbito da
Administração, de um lado, viola o art. 47, II e XIV da Constituição Estadual ,
no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à
organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada
da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2 da Constituição
Estadual, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município a obrigação do uso de papel reciclado no âmbito da administração direta e indireta, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam a compra de produto específico, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A propósito da questão em análise nesses autos, esse Colendo Órgão Especial já se pronunciou reiteradamente acerca da inconstitucionalidade das leis que deliberam acerca de atividade típicas da Administração. Senão vejamos:
“Ação
direta de inconstitucionalidade – Lei que obriga o Executivo a adquirir e
fornecer copos reutilizáveis (caneca ecológica) para os funcionários da
administração direta e indireta do Município de Guarulhos – Iniciativa
parlamentar – inconstitucionalidade formal – ingerência nas atividades do
Executivo – Criação de atribuição aos órgãos da Administração e de despesas sem
dotação orçamentária – Ação procedente.” (ADIN nº 0026430-38.2013.8.26.0000.
Rel. Des. Enio Zuliani, j. 26/06/2013).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal n. 6.988, de Guarulhos - Ato normativo que institui o programa de equoterapia, destinado a crianças e adultos com deficiência física e/ou mental ou com distúrbio comportamental e a vítimas de acidentes - Norma de iniciativa parlamentar - Programa que engloba a gestão administrativa pública - Teoria dos poderes implícitos - Criação indireta de cargos públicos na administração direta - Impossibilidade - Vício de iniciativa - Inteligência dos arts. 24, § 2o, 1, art. 47, II, e 144, da CE - Precedentes deste E. Órgão Especial e do C. STF - Despesa com remuneração não acompanhada de previsão legal e prévia dotação orçamentária - Gastos com instituição e manutenção do programa sem a correspondente indicação de receita Afronta aos arts. 25 e 169, p.ú., 1, da CE. Inconstitucionalidade reconhecida.” (Adin 0070117-02.2012.8.26.0000. Rel. Des. Grava Brasil, j. 08/08/2012).”
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.236, de 11 de fevereiro de 2014, do Município de Guarulhos.
São Paulo, 28 de julho de 2014.
Nilo Spinola
Salgado Filho
Subprocurador-Geral
de Justiça
Jurídico
aca/crms