Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2084123-09.2014.8.26.0000

Requerente: Partido da República – Comissão Provisória Municipal de Iracemápolis

Requeridos: Prefeito e Presidente da Câmara Municipal de Iracemápolis

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 1.877/10 do Município de Iracemápolis. Requisição de informações à Câmara Municipal. Diligência alvitrada. Servidor Público. Emprego público. Desvio de poder de ato legislativo. Ausência de elementos. Transposição e desigualdade remuneratória. Procedência parcial. 1. Constituindo a lei ato complexo resultante das vontades dos Poderes Executivo e Legislativo, é necessária a requisição de informações à Câmara Municipal na ação direta de inconstitucionalidade, inclusive para juntada de cópia do processo legislativo a fim de se aferir denúncia de desvio de poder em ato legislativo. 2. Lei local que assegura a titulares de emprego extinto a investidura em outro colide com os arts. 111 e 115, II, CE/89, agravada com a desigualdade remuneratória (art. 124, § 1º, CE/89). 3. Ausência de elementos para constatação de desvio de poder de ato legislativo. 4. Procedência parcial para declarar a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 1.877/10.

 

 

 

 

 

Douto Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Comissão Provisória do Partido da República em Iracemápolis em face dos da expressão “Oficial Administrativo” do art. 1º e do art. 2º e parágrafo único da Lei n. 1.877, de 30 de dezembro de 2010, do Município de Iracemápolis, alegando sua incompatibilidade com os arts. 111 e 124, § 1º, da Constituição Estadual (fls. 01/17).

2.                Negada a liminar (fls. 58/60), a douta Procuradoria-Geral do Estado absteve da defesa da lei impugnada (fls. 74/76), o Município de Iracemápolis prestou informações (fls. 83/85).

3.                É o relatório.

4.                Apesar de expedido ofício requisitando informações ao Prefeito Municipal de Iracemápolis, não consta a requisição de informações à Câmara Municipal de Iracemápolis nem certidão de eventual decurso de prazo acaso expedido o competente ofício.

5.                Desta maneira, requeiro, nos termos do art. 6º da Lei n. 9.868/99, a requisição de informações à Câmara Municipal de Iracemápolis, e de apresentação de cópia do processo legislativo referente à Lei n. 1.877, de 30 de dezembro de 2010, tendo em vista que se alega na petição inicial:

“Ressalta-se que, dos 13 (treze) beneficiados pela Lei, 02 (dois) eram vereadores, do mesmo partido do prefeito propositor do projeto de lei e votaram, aprovando o projeto, bem como 04 (dois) eram cargo comissionado que, a qualquer momento, poderiam retornar ao cargo de origem” (fl. 06).

6.                Essa alegação que reconduz ao tema do desvio de poder de ato legislativo exige a análise do processo legislativo.

7.                Observo, ainda, que não se apresenta como obstáculo ao processamento da ação seu ajuizamento por comissão provisória do diretório municipal de partido político que possui representação no Poder Legislativo Municipal.

8.                O art. 1º da Lei n. 1.877, de 30 de dezembro de 2010, criou 13 (treze) vagas de Oficial Administrativo no Quadro de Empregos Públicos Permanentes da Prefeitura do Município de Iracemápolis, acrescidas às vagas já existentes, e constantes do Anexo II da Lei Municipal n. 1.059, de 23 de dezembro de 1997, alterado pela Lei Municipal n. 1.227, de 02 de Julho de 2001, e alterações do regime da Consolidação das Leis do Trabalho, com vencimento mensal de R$ 1.560,77, carga horária de 180 horas, na referência 33. Por sua vez, o art. 2º dessa lei assim dispõe:

“Art. 2º Os Empregos Públicos Permanentes, de Oficial I – Em Vacância, Oficial II – Em Vacância e Oficial III – Em Vacância, constantes do Quadro de Empregos Público Permanentes, constantes do Anexo II da Lei Municipal nº 1059/97, de 23 de dezembro de 1997, alterado pela Lei Municipal nº 1.227/01 de 2 de Julho de 2.001, passam a denominar-se Oficial Administrativo, com carga horária, referência e quantitativos descritos no Artigo 1.º desta Lei.

Parágrafo único. Os Atuais ocupantes dos Empregos Públicos Permanentes, de Oficial I – Em Vacância, Oficial II – Em Vacância e Oficial III – Em Vacância, passam a ocupar os empregos de Oficial Administrativo”.

9.                Segundo o art. 5º, VI, da lei o emprego de Oficial Administrativo tem as seguintes atribuições:

“Digita cartas, memorandos, relatórios e demais correspondências da unidade, atendendo às exigências de padrões estéticos, baseando-se nas minutas fornecidas para atender às rotinas administrativas;

Recepciona pessoas que procuram a unidade, inteirando-se dos assuntos a serem tratados, objetivando prestar-lhes as informações desejadas;

Organiza e mantém atualizado o arquivo de documentos de unidade, classificando-os por assunto, em ordem alfabética, visando à agilização de informações;

Efetua controles relativamente complexos, envolvendo interpretação e comparação de dois ou mais dados, conferência de cálculos de licitações, controle de férias, contábil e/ou outros tipos similares de controle, para cumprimento das necessidades administrativas;

Efetua cálculos utilizando e envolvendo dados comparativos: cálculos de áreas, metragens de muros e passeios, cálculos de juros de mora, correção monetária e outros;

Atende e efetua ligações telefônicas, anotando ou enviando recados e dados de rotina ou prestando informações relativas aos serviços executados;

Recebe e transmite fax;

Controla o recebimento e expedição de correspondência, registrando-a em livro próprio, com a finalidade de encaminhá-la ou despachá-la para as pessoas interessadas;

Redige memorandos, circulares, relatórios, ofícios simples, observando os padrões estabelecidos para assegurar o funcionamento do sistema de comunicação administrativa;

Executar outras tarefas correlatas conforme necessidade ou a critério de seu superior”.

10.              O partido político narra na petição inicial que:

“A Lei Municipal 1.059 de 23 de dezembro de 1997 (doc. 06), criou 07 (sete) empregos públicos de Oficial Administrativo, 03 (três) de Oficial I, 04 (quatro) de Oficial II e 09 (nove) de Oficial III todos com carga horária de 180 horas mensais.

Com a superveniência da Lei Municipal nº 1.222/2001 (doc. 07), foram extintos 03 empregos de Oficial Administrativo e os empregos de Oficial I, II e III, passaram a ter carga horária de 220 horas mensais, com referência numérica proporcional a carga horária, possibilitando-se aos atuais ocupantes optarem pela mudança de carga horária, ‘cujos empregos serão extintos na medida em que ocorrer a sua vacância’.

Após a edição da Lei, 13 (TREZE) SERVIDORES não optaram pela mudança, permanecendo em ‘vacância’.

Sobreveio, então, a Lei Municipal nº 1.227/2001 (doc. 08), que revogou o Anexo I, II e III da Lei Municipal nº 1059/97, consolidando as alterações promovidas pela Lei Municipal 1.222/2001.

Por fim, a Lei Municipal nº 1.877/2010 (doc. 09) CRIOU NOVOS 13 EMPREGOS PÚBLICOS DE OFICIAL ADMINISTRATIVO, com carga horária de 180 horas, ‘em vacância’ passam a denominar-se Oficial Administrativo, com carga horária, referência e quantitativos descritos no Art. 1º desta Lei.

Ressalta-se que, dos 13 (treze) beneficiados pela Lei, 02 (dois) eram vereadores, do mesmo partido do prefeito propositor do projeto de lei e votaram, aprovando o projeto, bem como 04 (dois) eram cargo comissionado que, a qualquer momento, poderiam retornar ao cargo de origem” (fls. 05/06).

11.              A Lei n. 1.222/01 assim dispôs:

“Art. 2º Ficam extintos os empregos abaixo descriminados:

Qtde. Denominação Categorias Referência

09 Atendente de Enfermagem Permanente 14

03 Oficial Administrativo Permanente 35

Parágrafo único. Os empregos de Atendente de Enfermagem e Oficial Administrativo atualmente preenchidos serão extintos no momento em que ocorrer a sua vacância.

Art. 3º Os empregos abaixo relacionados passam a carga horária de 220 horas mensais com referência numérica proporcional a carga horária.

Qtde. Denominação Referência Carga horária

10 Oficial I 26 220

08 Oficial II 27 220

09 Oficial III 28 220

01 Encarregado de Compras 31 220

§ 1º Os atuais Ocupantes dos empregos Oficial I, Oficial II, Oficial III e Encarregado do Depto. De Compras, com carga horária de 180 horas mensais, terão o direito optar pela mudança da carga horária, cujos empregos serão extintos na medida em que ocorrer a sua vacância” (sic).

12.              São diferentes os empregos públicos permanentes de Oficial Administrativo e Oficial I, II e III.

13.              Um dos fundamentos da petição inicial é a ocorrência de transposição (fls. 06/09, 11/15), o que configura violação ao art. 115, II, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 37, II, da Constituição Federal, conforme a interpretação dispensada pelo Supremo Tribunal Federal estratificada na Súmula 685.

14.              Ora, disso se ocupou o parágrafo único do art. 2º da Lei n. 1.877/10 ao investir, à míngua de concurso público, os atuais ocupantes de empregos permanentes extintos de Oficial I, II e III nas vagas relativas ao emprego permanente de Oficial Administrativo criado em seu art. 1º.

15.              Também se patenteia a incompatibilidade com a Constituição Estadual (art. 124, § 1º) quando se atribui remunerações diversas.

16.              Por fim, o exame da violação aos princípios de moralidade e impessoalidade fica prejudicado pela ausência de dados emergentes do processo legislativo e da situação funcional de edis.

17.              Obtempero que não é novidade alguma o controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo por desvio de poder. A esse respeito, reporta-se a elucidativo escólio da lavra de Caio Tácito:

“No exercício de suas atribuições e nas matérias a eles afetas, os órgãos legislativos, em princípio, gozam de discricionariedade peculiar à função política que desempenham.

Temos, contudo, sustentando a necessidade de temperamento da latitude discricionária de ato do Poder Legislativo, ainda que fundado em competência constitucional e formalmente válido.

O princípio geral de Direito de que toda e qualquer competência discricionária tem como limite a observância da finalidade que lhe é própria, embora historicamente vinculado à atividade administrativa, também se compadece, a nosso ver, com a legitimidade da ação do legislador.

Tivemos, oportunidade de sustentar, perante o STF, em duas oportunidades, a nulidade de leis estaduais em que, no término de governos vencidos nas urnas, eram criados cargos públicos em número excessivo, não reclamados pela necessidade pública, e comprometendo gravemente as finanças do Estado, tão-somente para o aproveitamento de correligionários ou de seus familiares.

Para o desfazimento dessas leis, que caracterizavam os chamados ‘testamentos políticos’, o STF consagrou a tese da validade de novas leis que, anulando leis inconstitucionais, reconheciam o abuso pelos Poderes Legislativos estaduais da competência, em princípio discricionária, da criação de cargos públicos.

O primeiro acórdão, proferido no MS 7.243, em sessão de 20.1.69, manteve a anulação de leis do Estado do Ceará com as quais, no apagar das luzes de uma situação política derrotada, em apenas 56 dias, mediante 25 atos legislativos foram instituídos, sob a forma de criação ou transformação, 3.784 novos cargos públicos, o que equivalia a um-terço do total do funcionalismo estadual então existente, estimado em 12.000 servidores, elevando o custo mensal do pessoal a 94,24% das rendas do Estado.

Por essa forma, violava-se norma expressa da Constituição estadual, que fixava o teto de 50% para a vinculação da receita ao custeio do funcionalismo público, e se objetivava impedir o funcionamento regular do Poder Executivo, no período do novo mandato que se ia inaugurar.

Em comentário a essa decisão, que firmou precedente memorável, destacávamos a importância da tese por ela abonada:

‘A competência legislativa para criar cargos públicos visa ao interesse coletivo de eficiência e continuidade da administração. Sendo, em sua essência, uma faculdade discricionária, está, no entanto, vinculada à finalidade, que lhe é própria, não podendo ser exercida contra a conveniência geral da coletividade, com o propósito manifesto de favorecer determinado grupo político, ou tornar ingovernável o Estado, cuja administração passa, pelo voto popular, às mãos adversárias.

‘Tal abandono ostensivo do fim a que se destina a atribuição constitucional configura autêntico desvio de poder (détournement de pouvoir), colocando-se a competência legislativa a serviço de interesses partidários, em detrimento do legítimo interesse público’ (RDA 59/347 e 348).

A mesma situação se renovou, no Estado do Rio Grande do Norte, perante outro testamento político de um governo vencido no pleito eleitoral sucessório, em que se comprometia desmedidamente o erário, elevando a mais de 80% a despesa com o funcionalismo público.

Em decisão proferida na Repr. 512, julgada, por unanimidade, pelo Tribunal Pleno, em sessão de 7.12.62, o STF reputou legítima a anulação, pela Assembléia Legislativa, de leis inconstitucionais que compunham o testamento político em causa.

Em memorial oferecido como advogado do novo governo estadual, ponderávamos que ‘o desvio de poder legislativo, caracterizado no inventário político, ofende o princípio da independência e harmonia dos Poderes, além de violar a Constituição estadual’.

Em acórdãos posteriores os RE 48.655 e 50.219 (RDA 78/269 e 281), aplicando a orientação firmada, a Corte Suprema reafirmou a tese da anulação, pelo Poder Legislativo, de seus próprios atos inconstitucionais.

A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF em voto do Min. Orozimbo Nonato, relator do RE 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder destruir, destaca: ‘É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda que, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (RF 145/146).

O excesso do poder de taxar foi igualmente repelido com respeito à lei do Estado do Rio de Janeiro que exigia taxa judiciária em termos excessivos, sem correspondência com o serviço prestado (Repr. 1.077, RTJ 11/55).

Comentando o sentido inovador da jurisprudência do Pretório Excelso, registra Seabra Fagundes, entre as fecundas criações pretorianas, ‘a extensão da teoria do desvio de poder originária e essencialmente dirigida aos procedimentos dos órgãos executivos, aos atos do poder legiferante, de maior importância num sistema de Constituição rígida, em que se comete ao Congresso a complementação do pensamento constitucional nos mais variados setores da vida social, econômica e financeira’ (RF 151/549).

Em decisão de 31.8.67, no RMS 16.912, o tema do desvio de poder como vício especial do ato legislativo foi expressamente invocado.

Apreciando lei de organização judiciária na qual se inseria emenda em benefício de determinado serventuário, advertiu o Min. Prado Kelly: ‘tratava-se de reforma judiciária e a emenda representou um desvio de poder na própria legislatura’. Sendo o mesmo Ministro as seguintes expressões: ‘Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo de interesse público e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de favorecimento pessoal’.

Nessa decisão plenária, o Min. Victor Nunes Leal, após aderir à posição ‘de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da própria legislatura’, convocado por interpelação do Min. Aliomar Baleeiro a declarar ‘se admitia um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstitucionalidade’, não vacilou em afirmar categoricamente: ‘Admito’ (acórdão no RMS 16.912, RTJ 45/530-545, especialmente pp. 536 e 537).

Em questão relativa à permissão para explorar linhas de ônibus, o STF apreciou a incidência do desvio de poder legislativo, admitindo, em tese, a aplicação do princípio (RTJ 47/650 e 48/165).

Em três situações o STF repeliu, por inconstitucionalidade, a aplicação de sanções administrativas com a finalidade real de constranger o contribuinte à regularidade fiscal.

Decidiu a Corte Suprema que ‘é inadmissível a interdição de estabelecimento ou apreensão de mercadorias como meio coercitivo para a cobrança de tributo’ (Súmulas 70 e 323).

E, dilatando o princípio à inconstitucionalidade dos Decs.- leis 5 e 42, de 1937 – que restringiam indiretamente a atividade comercial de empresas em débito, impedindo-as de comprar selos ou despachar mercadoria – implicitamente configurou o abuso de poder legislativo (Súmula 547 e acórdão no RE 63.026, RDA 10/209).

O excesso legislativo foi invocado em acórdão do STF no RE 62.731, do qual foi Relator o Min. Aliomar Baleeiro. Afirmou-se a inconstitucionalidade de decreto-lei que vedava a purgação de mora em locações. Destacou a ementa da decisão a impertinência do fundamento por se tratar de ‘assunto miúdo de Direito Privado’ que não se incluía no conceito de segurança nacional, necessário àquela forma de processo legislativo (RDA 94/169).

O poder de polícia nas profissões somente pode ser exercido com observância do princípio da razoabilidade, afirmou o acórdão na Repr. 930 (apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 451).

E porque o impedimento do exercício profissional da advocacia há juizes aposentados até dois anos após a inatividade ofendia o princípio da razoabilidade, foi declarada a inconstitucionalidade da lei que estabelecia tal interdição temporária, por violação àquele princípio (Repr. 1.054, RTJ 112/7).

Em parecer no qual analisamos a inconstitucionalidade de deliberação do Banco Central do Brasil determinante da indisponibilidade de contas bancárias do Estado – membro a suas empresas, enfatizávamos que ‘importa desvio do Poder Legislativo decreto lei que se utilize do bloqueio de contas bancárias como meio de cobrança regressiva de aval a empréstimos externos’ (RDA 172/239).

Em outro parecer relativo à validade da lei municipal que subordinava a permissão de funcionamento de estabelecimentos comerciais aos sábados e domingos à prévia aprovação pelos órgãos sindicais, entendíamos ocorrer violação da competência legal, a ser exercida pelo Município, como emanação do poder de polícia.

Ressaltamos que, obrigando à intervenção dos sindicatos para a obtenção de licença especial de funcionamento, o legislador teve em mira o fortalecimento do sistema sindical, invadindo órbita de competência privativa da União.

Concluímos, assim, que, ‘a toda evidencia, a lei municipal, visando, a beneficiar o movimento sindical está maculada pelo vício de abuso do poder normativo, caracterizado como desvio de finalidade’ (RDA 164/460).

O tema do desvio de poder legislativo foi amplamente estudado, no Direito italiano, por Lívio Paladin, em ensaio sob o título ‘Osservazioni sulla discrezionalità e sull’eccesso di potere del legislatore ordinario’ (Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, ano VI, 4/993-1.046, outubro – dezembro/56).

Pondera o autor que: ‘L’illegitimità di ogni fine, diverso da quello costituzionalmente previsto, consente logicametne di configurare, sul piano legisltaivo, qual vizio della causa degli atti amministrativi, ch è l’ecesso di potere’ (‘A ilegitimidade de todo fim, diverso daquele constitucionalmente previsto, conduz logicamente afigurar-se, no plano legislativo, aquele vício de causa dos atos administrativos, que é o excesso de poder’) (Rivista cit. p. 1.031).

A figura do desvio de poder legislativo foi, pioneiramente, sustentada por Santi Romano, que, reconhecendo o poder discricionário do legislador, destaca, porém, o limite que se impõe em face da finalidade da competência legislativa: ‘ma la figura dele potere discrezionale richiede per l’appunto che di esse si faccia uso conforme alle finalità da cui il potere medismo deriva; si há altrimenti uno sviamento di potere, che costituisse uma violazione di direitto, nel senso più próprio della parola. Son concetti questi di commune applicazione riguado alle compentenza degli oragnia amministrativi e non si saprebbe indicarei l pechè non possono riferirsi, nella loro generalità, al Parlamento. In certi campoi della sua funzione legislativa, questo non há poteri sconfinati, ma poteri discricionali, il che vuol dire litate, e non altro, dall’obbligo di fare uso per dati motivi’ (‘mas a figura do poder discricionário reclama precisamente que dele se faça uso conforme à finalidade, da qual o próprio poder deriva: há de outra forma um desvio de poder que constitui uma violação de direito no sentido próprio da palavra. São conceitos estes de aplicação comum no que se refere à competência dos órgãos administrativos, e não se saberá indicar por que não parecem se referir em sua generalidade, ao Parlamento. Em certos campos de sua competência legislativa, este não possui poderes sem fronteiras, mas poderes discricionários, importa dizer, limitados pelo menos da obrigação de fazer uso por motivos determinados’) (‘Osservazioni preliminari per uma teoria sui limite della funzione legislativa nel Diritto Pubblico’, 1902, e incluído na coletânea Scriti Minori – Diritto Costituzionale, v. I/199, 1950).

Não é outro o pensamento de Costantino Mortati quando adverte que ‘a lei poderá estar viciada de inconstitucionalidade não somente quando o interesse perseguido contrasta com aquele imposto pela Constituição, mas também nos casos em que o próprio teor da lei está em absoluta incongruência com a norma editada e o fim do interesse público a ser perseguido e o próprio legislador afirma pretender perseguir. Verifica-se, nessa ultima hipótese, uma modalidade de vício de legitimidade assimilável ao excesso de poder administrativo’ (‘la legge può risultare viziata per incostituzionalità non solo quando l’interesse perseguito contrasta com quelllo imposto dalla Costituzione, ma anche nei casi in cui dallo stesso tenore della legge risulti un’assouta incongruenza fra la norma dettata ed il fine di pubblico interesse che si doveva perseguire e che lo stesso legislatore assume di volere perseguire. Si verificherebbe in quest’ultima ipotese un’ipotesi di vizio della legittimità assimilabile a quello dell’eccesso di potere amministrativo’) (verbete ‘Discricionalità’, Novissimo Digesto Italiano, v. V/1.09).

Entendemos, em suma, que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamenta o poder de legislar.

O abuso de poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva da competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legitima destinação.

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, pp. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio de razoabilidade a fundamentar ‘a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos’ (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739)”.

18.              E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que “as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259)’. (Caio Tácito. “Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Jurisdicionais”, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 04, São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 33-37).

19.               Ocorre que sem os elementos acima indicados - dados emergentes do processo legislativo e da situação funcional de edis que foram beneficiados – sua análise fica comprometida, conquanto não caracterize matéria de fato dependente de dilação probatória, incabível nesta via especial.

20.              De resto, não se constata vício no art. 1º da lei impugnada.

21.              Opino pela requisição de informações à Câmara Municipal de Iracemápolis, inclusive para juntada do processo legislativo, e no mérito, pela parcial procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 1.877/10 à luz dos arts. 111, 115, II e 124, § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo.

         São Paulo, 25 de agosto de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

wpmj