Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 2086305-65.2014.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Itaí
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Itaí
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.778, de 11 de abril de 2014, do Município de Itaí, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a alteração da Lei nº 1.772/2013 e dá outras providências”, elevando o valor da subvenção em favor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Itaí em R$ 1.200.000,00 (hum milhão e duzentos mil reais).
2)
Preliminar.
Ilegitimidade ativa da Prefeitura Municipal. A legitimidade ativa “ad causam” a capacidade postulatória
para o ajuizamento de ação direta é do chefe do Executivo e não da Prefeitura
Municipal. Extinção do processo sem resolução do mérito.
3) Limites
à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das
leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é
suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade.
Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração
da jurisdição constitucional.
4) Matéria reservada ao chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa orçamentária. Criação de obrigação e despesas para a Administração. Matéria legislada de ordem financeira e orçamentária, cuja iniciativa é reservada exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo e não incluída na lei orçamentária anual. Ofensa aos artigos 5º; 24, § 2º, n. 2; 25; 47, II, XIV e XIX, a; 144; 174, § 6º e 176, I, da Constituição Estadual.
5) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.778, de 11 de abril de 2014, do Município de Itaí, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a alteração da Lei nº 1.772/2013 e dá outras providências”, elevando o valor da subvenção em favor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Itaí em R$ 1.200.000,00 (hum milhão e duzentos mil reais).”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e criar despesa sem indicação fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 24, 25 e 169 da Constituição Estadual c.c. os arts. 53, 55 e 56 da Lei Orgânica Municipal.
Foi deferida a liminar para suspender, com efeito ex nunc, a vigência e a eficácia da Lei nº 1.778, de 11 de abril de 2014, do Município de Itaí, (fl. 125/126).
Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 145/147).
Devidamente notificado (fl. 143), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 132/136, defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
PRELIMINARMENTE
1. Da falta de legitimidade ativa da
Prefeitura Municipal
A inicial é proposta pela Prefeitura Municipal, assinada eletronicamente pelo advogado, com mandato outorgado pelo Prefeito Municipal (fls. 01/13).
A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).
Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).
Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.
Ademais, há decisão registrando que:
“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).
Esse
Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento,
conforme se verifica
pela seguinte ementa:
“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)
No caso dos autos, figurou no polo ativo a Prefeitura Municipal, porém a inicial foi assinada eletronicamente pelo advogado constituído pelo Prefeito Municipal.
Assim, evidente a ilegitimidade ativa, requeiro seja indeferida a inicial.
2.
Limite de confronto no controle
direto de constitucionalidade
Deve-se consignar que no processo objetivo, materializado através da ação direta de inconstitucionalidade, só se mostra viável o confronto direto entre a norma impugnada e os dispositivos constitucionais que figuram como parâmetro de controle.
Tal entendimento é absolutamente pacífico e conhecido, dele decorrendo a impossibilidade de exame das alegações de incompatibilidade entre a lei analisada na ação direta e preceitos legais situados na legislação infraconstitucional.
Inconstitucionalidades indiretas ou reflexas, ou mesmo decorrentes de questões de fato não podem ser aferidas. O único exame que se faz, no processo objetivo, decorre do confronto direto entre o ato normativo impugnado e o parâmetro constitucional (na hipótese, apenas estadual) adotado para fins de controle (STF, ADI 2.714, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 13-3-03, DJ de 27-2-04; ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241, g.n.; ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546).
Tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência, nesse tema, o sentido de que, no processo objetivo, a única avaliação admissível é aquela referente à questão de direito, no confronto direto entre a lei e o texto constitucional.
A esse propósito, é oportuno averbar a advertência feita pelo i. Min. Celso de Mello, do E. STF: “A ação direta não pode ser degradada em sua condição jurídica de instrumento básico de defesa objetiva da ordem normativa inscrita na Constituição. A válida e adequada utilização desse meio processual exige que o exame ‘in abstracto’ do ato estatal impugnado seja realizado exclusivamente à luz do texto constitucional. Desse modo, a inconstitucionalidade deve transparecer diretamente do texto do ato estatal impugnado. A prolação desse juízo de desvalor não pode e nem deve depender, para efeito de controle normativo abstrato, da prévia análise de outras espécies jurídicas infraconstitucionais, para, somente a partir desse exame e num desdobramento exegético ulterior, efetivar-se o reconhecimento da ilegitimidade constitucional do ato questionado” (ADI-MC n.º 842 - DF, RTJ 147/545-546, g.n.).
Deixa-se, portanto, de proceder à analise da validade dos atos normativos impugnados em face da Leio Orgânica Municipal.
A análise da ação deve se restringir, portanto, à argumentada incompatibilidade entre a lei impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo, sob pena de violação ao art. 102, I, “a” e ao art. 125, § 2º, ambos da CF.
DO MÉRITO
Caso superada a preliminar, o pedido deve ser julgado é
procedente.
A Lei nº 1.778, de 11 de abril de 2014, do Município de Itaí, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a alteração da Lei nº 1.772/2013 e dá outras providências”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:
.
O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 47, II e XIV, 174 § 6º e 176, I da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os
princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.
(...)
Art. 174 - Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão, com
observância dos preceitos correspondentes da Constituição Federal:
(...)
§6º - O
projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo dos efeitos
decorrentes de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de
natureza financeira, tributária e creditícia.
(...)
Art. 176 - São vedados:
I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei
orçamentária anual;”
A matéria disciplinada pela lei impugnada
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos
Secretários Municipais.
A lei, de iniciativa parlamentar, majora
obrigação financeira a ser cumprida pela Administração Pública, visto que aumentou
o subsídio prestado à Santa Casa de Misericórdia do Município.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão econômica, de
escolha política para a satisfação das necessidades públicas. Assim, privativa
do Poder Executivo e inserida na esfera do poder
discricionário da administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a iniciativa legislativa do Poder Legislativo, sob pena de se
permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder
Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade sobre o valor do subsídio a ser destinado à Santa Casa de Misericórdia do Município. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento,
organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De
outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar
leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho econômico para a Administração Pública
local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao majorar o subsídio prestado à Santa Casa de Misericórdia do Município, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam a compra de produto específico, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
De
outro lado, a matéria legislada é de ordem financeira e orçamentária, como
emerge do art. 174, § 6º, da Constituição Estadual, e sua iniciativa é
reservada exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo à luz do art. 174 da
Constituição Estadual e, para além, como não está incluída na lei orçamentária
anual, vulnera o art. 176, I, da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja acolhida a preliminar para a extinção do processo sem resolução do mérito, ou caso corrigida a inicial o pedido deve ser julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.778, de 11 de abril de 2014, do Município de Itaí.
São Paulo, 14 de agosto de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral
de Justiça
Jurídico
aca