Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 2086956-97.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Ribeirão Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 11710, de 30 de julho de 2008, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de programa de orientações do ‘exame da falange’ junto à rede municipal de saúde, conforme especifica e dá outras providências”.

2)      Violação das regras da separação de poderes e da reserva de administração. Criação de despesas sem fonte específica de receita (arts. 5º, 25, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Senhora Prefeita Municipal de Ribeirão Preto, tendo como alvo a Lei Municipal nº 11.710, de 30 de julho de 2008, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de programa de orientações do ‘exame da falange’ junto à rede municipal de saúde, conforme especifica e dá outras providências”.

Sustenta a autora que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, tendo havido desrespeito ao princípio da separação de poderes, sendo certo, ainda, que a lei provoca aumento de despesa sem a correspondente indicação da receita.

Indeferida a liminar (fls. 25), o Presidente da Câmara prestou as informações que lhe foram solicitadas, sustentando a constitucionalidade do ato normativo impugnado (fls. 39/40).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 32/34).

É a síntese necessária.

A Lei Municipal nº 11.710, de 30 de julho de 2008, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de programa de orientações do ‘exame da falange’ junto à rede municipal de saúde, conforme especifica e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Artigo 1º - Fica, pela presente lei, autorizada a Prefeitura Municipal promover pela Rede Municipal de Saúde programa de orientações sobre o ‘Exame da Falange’.

Parágrafo Único – A presente lei visa propiciar às crianças e adolescentes de nosso município a realização de exame para detecção precoce, através do colágeno ósseo da falange, marcador biológico do envelhecimento celular ósseo, que discrimina com decênios de antecedência o risco de desenvolver a enfermidade na senilidade – osteoporose, mediante procedimento específico.

Artigo 2º - O detalhamento das ações, agendamentos, procedimentos, palestras, reuniões de esclarecimentos, orientações básicas para as famílias e as demais atividades necessárias serão promovidos pela Secretaria Municipal da Saúde, junto às escolas, igrejas, centros comunitários, postos de saúde, setores da Secretaria da Assistência Social, entre outros.

Parágrafo Único – Fica autorizada ainda, desde que cumpridas as formalidades legais em vigor, a implantação de convênio entre a Administração Pública Municipal, nas diversas esferas de governo, a iniciativa privada e universidades públicas e privadas.

Artigo 3º - Dentro de 60 (sessenta) dias, a contar da publicação da presente lei, o Poder Executivo Municipal expedirá o competente decreto regulamentador.

Artigo 4º - As possíveis despesas decorrentes da execução da presente lei correrão por conta das dotações próprias do orçamento vigente, suplementadas oportunamente se necessário, com eventual excesso de arrecadação.

Artigo 5º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Se, em princípio, a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual) em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a jurisprudência:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

No caso, foi violentada a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

A decisão sobre promover determinado programa de orientação, na Rede Municipal de Saúde, é matéria exclusivamente relacionada à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo. É da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo, alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo.

Não bastasse, ainda que a matéria demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade a lei local por sua iniciativa parlamentar.

Em se tratando de processo legislativo, é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

Decorre do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração (entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições, quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa, segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste sentido:

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

É inegável que a promoção de programa de orientação, pela Rede Municipal de Saúde, importa em sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.

Com efeito, lei de iniciativa parlamentar que cria ou fornece atribuição ao Poder Executivo ou seus órgãos, demandando diretamente a realização de despesa pública, não prevista no orçamento, para atendimento de novos encargos, com ou sem indicação de sua fonte de cobertura, inclusive para os exercícios seguintes, padece também de inconstitucionalidade por incompatibilidade com os arts. 25 e 174, III, da Constituição Estadual, seja porque aquele exige a indicação de recursos para atendimento das novas despesas, seja porque este reserva ao Chefe do Poder Executivo iniciativa legislativa sobre o orçamento anual, conforme pronuncia o Supremo Tribunal Federal:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei do Estado do Amapá. 3. Organização, estrutura e atribuições de Secretaria Estadual. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. Precedentes. 4. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Precedentes. 5. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 341, p. 35).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei Do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do Pólo Estadual da Música Erudita. 3. Estrutura e atribuições de órgãos e Secretarias da Administração Pública. 4. Matéria de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo. 5. Precedentes. 6. Exigência de consignação de dotação orçamentária para execução da lei. 7. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. 8. Ação julgada procedente” (LEXSTF v. 29, n. 338, p. 46).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil. 3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. 4. A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.238/94 do Estado do Rio Grande do Sul” (RTJ 200/1065).

Posto isso, opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da lei municipal com os arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II, XIV, e XIX, a, e 174, III, da Constituição Estadual.

São Paulo, 05 de agosto de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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