Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 2088860-55.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.182, de 17 de outubro de 2013, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “CRIA NA REDE MUNICIPAL DE SAÚDE A FARMÁCIA 24 HORAS E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)      Inconstitucionalidade. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). 

4)      Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; 47, II, XIV e XIX; 144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.182, de 17 de outubro de 2013, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “CRIA NA REDE MUNICIPAL DE SAÚDE A FARMÁCIA 24 HORAS E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e criar despesa sem indicação fonte de recurso. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, 24, §2º n. 1 e 2, 25, 47, II e XIV, 167, I, 176, I e 144 da Constituição Estadual, de dispositivos da Constituição Federal e da Lei Orgânica Municipal.

Foi deferida a liminar para suspender, com efeito ex nunc, a vigência e a eficácia da Lei Municipal nº 7.182, de 17 de outubro de 2013, de Guarulhos (fl. 52/53).

Citado regularmente (fl. 65), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 59/61).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações às fls. 68/72, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   Da alegação de violação da Lei Orgânica Municipal e da Constituição Federal

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste direto com normas da Constituição Federal ou com dispositivos da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

2.   Das inconstitucionalidades

Procede o pedido.

A Lei nº 7.182, de 17 de outubro de 2013, de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “CRIA NA REDE MUNICIPAL DE SAÚDE A FARMÁCIA 24 HORAS E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

                           “(...)

         Art. 1º Fica criada na Rede Municipal a Farmácia 24 horas.

Art. 2º A Secretaria Municipal de Saúde criará nos hospitais municipais, a FARMÁCIA 24 HORAS, que deverá funcionar dentro do hospital de forma ininterrupta, durante os sete dias da semana.

Parágrafo único. Os hospitais mencionados no caput deste artigo são o HMU – Hospital Municipal de Urgências, o HMPB – Hospital Municipal Pimentas-Bonsucesso e o HMC – Hospital Municipal Santa Casa da Criança de Guarulhos.

Art. 3º As FARMÁCIAS 24 HORAS deverão dispensar medicamentos com ênfase em antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e antialérgicos, ou seja, medicamentos típicos de pronto atendimento.

§ 1º Os médicos dos prontos-socorros deverão estar orientados a preferencialmente receitarem medicamentos da própria farmácia nas suas prescrições.

§ 2º Após ser atendido o paciente, com uma via especial do receituário na cor rosa, deverá se dirigir à farmácia e lá retirar seu medicamento.

Art. 4º A Secretaria Municipal de Saúde deverá criar uma relação com um número mínimo de 80 (oitenta) medicamentos emergenciais para compor a FARMÁCIA 24 HORAS.

Art. 5º Os munícipes atendidos nas UBSs – Unidades Básicas de Saúde, USFs – Unidades de Saúde da Família e PASs – Unidades de Pronto-Atendimento do Município poderão retirar os medicamentos das FARMÁCIAS 24 HORAS, desde que possuam o receituário apropriado da unidade devidamente carimbado e assinado pelo médico da unidade.

Parágrafo único. O medicamento receitado pelo médico da unidade deverá constar da relação de medicamentos mencionada no item 4º desta Lei.

Art. 6º O Executivo Municipal regulamentará a presente Lei no prazo de 90 (noventa) dias após a sua publicação.

Art. 7º As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas em Orçamento, suplementadas se necessário.

Art. 8º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

(...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei impugnada encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A criação de farmácia 24 horas nos hospitais municipais para propiciar o acesso a medicamentos e serviços, bem como colaborar para a redução de doenças e de outros agravos é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Logo, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação de Farmácias 24 horas nos hospitais municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade da criação e implantação de Farmácias 24 horas nos hospitais municipais. Trata-se de atuação administrativa que é fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outro lado, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao regulamentar, ainda que parcialmente um serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Criar programas e disciplinar serviços públicos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

A criação e implantação de farmácias 24 horas nos hospitais municipais, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo, a quem cabe decidir acerca da conveniência e oportunidade de implantar programas como o disciplinado no ato normativo impugnado que propicie o acesso a medicamentos e serviços, bem como colaborar para a redução de doenças e de outros agravos.

Ademais, para consolidação do programa, são necessárias várias providências a cargo do Poder Executivo, como construção das farmácias, ações e campanhas de saúde, aquisição de medicamentos, contratação de profissionais etc.

Por este motivo a matéria de que cuida o ato normativo impugnado é de atribuição privativa do Poder Executivo, e não cabe ao legislador, deliberar a respeito de planejamento, programas e serviços relacionados a saúde.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida, ao impor ao Município a consolidar a criação de farmácias 24 horas nos hospitais municipais (art. 2º), não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.182, de 17 de outubro de 2013, do Município de Guarulhos.

              São Paulo, 08 de agosto de 2014.

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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