Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 2091339-21.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Águas da Prata

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Águas da Prata

 

 

EMENTA: Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 2.052, de 16 de maio de 2014, do Município de Águas da Prata/SP. violação aos princípios da legalidade, finalidade e razoabilidade. iniciativa parlamentar. vício de iniciativa (Remuneração de servidores). Iniciativa reservada.  Operação Delegada. Não caracterização. procedência. 1. A criação de gratificação especial, a título de ‘pro-labore’, não decorre do interesse público ou das exigências do serviço. Referida vantagem pecuniária, condicionada ao exercício de atividade intrínseca ao cargo ocupado, viola os princípios da legalidade, finalidade e razoabilidade. 2. A instituição, alteração, extensão ou extinção de vantagem pecuniária aos servidores públicos é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. 3. A lei que autoriza o Poder Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privativa implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional. 4. A gratificação prevista em decorrência de operação delegada é constitucional e difere da gratificação cuja criação foi autorizada na Lei n. 2.052/14. 5. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1, 25, 47, II, XIV, e XIX, a, 111, 128, 139 e 144, da Constituição Estadual. 6. Procedência.

Colendo Órgão Especial:

 

1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei n. 2.052, de 16 de maio de 2014, do Município de Águas da Prata, de iniciativa parlamentar, que autorizou o Executivo Municipal a conceder Gratificação, a título de “pro-labore”, aos policiais militares que realizem a fiscalização e policiamento ostensivo e repressivo, assim como a preservação da ordem pública, bem ainda aos policiais civis responsáveis pelo judiciário e pela apuração de infrações penais no Município, sob alegação de violação aos artigos 5º e 144 da Constituição Federal, e aos artigos 25, 139 e 144 da Constituição Estadual.

2. Alega a Prefeitura do Município de Águas da Prata/SP que a Lei n. 2.052/2014 apresenta vícios de constitucionalidade, tanto materiais, quanto de origem formal.

3. Em linhas gerais, aduz que, tendo em vista a repartição de competências prevista no artigo 144 da Constituição Federal e no artigo 139 da Constituição Estadual, os policiais militares e civis seriam servidores estaduais, razão pela qual não poderia o Município fornecer-lhes qualquer vantagem pecuniária.

4. Ademais, assevera que a Câmara Municipal da Estância Hidromineral de Águas da Prata não teria legitimidade para impor obrigações financeiras ao Poder Executivo sem a respectiva indicação da fonte de custeio (conforme artigo 25 da Constituição Estadual), ressaltando o fato de que a “proposição autorizativa” não elide a inconstitucionalidade do referido ato normativo.

5. Por fim, entende a Prefeitura que a Lei n. 2.052/14 seria contrária ao interesse público.

6. Concedida a liminar (fls. 44/45), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls.  56/58) e as informações foram prestadas (fls. 60/63).

7. A Câmara Municipal da Estância Hidromineral de Águas da Prata defendeu a constitucionalidade da Lei n. 2.052/14. Argumentou a autonomia do Município em legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, CF). Neste aspecto, em especial, justificou a edição do ato normativo a fim de estimular as referidas carreiras no Município.

8. Outrossim, afirmou ser insubsistente o argumento referente ao possível impacto orçamentário no Município com a edição da Lei n. 2.052/14, em razão de o Poder Executivo ter protocolado o Projeto de Lei n. 40/2014 (fl. 67), cujo conteúdo seria similar.

9. Ao final, sustentou não ser a matéria veiculada na Lei n. 2.052/14 de competência exclusiva do Poder Executivo.  

10. É o relatório.

11. O pedido é procedente.

12. A lei impugnada assim dispõe:

 

“LEI MUNICIPAL Nº 2.052 DE 16 DE MAIO DE 2014

‘Autoriza o Executivo Municipal a conceder Gratificação, a título de “Pró-labore”, aos Policiais Militares que realizem a fiscalização e o policiamento ostensivo e repressivo e a preservação da ordem pública, e Policiais Civis responsáveis pelo judiciário e apuração de infrações penais na cidade de Águas da Prata e dá outras providências.’

Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a criar “Gratificação Especial” a título de “Pró-labore”, a ser concedida mensalmente aos Policiais Militares que realizem a fiscalização e o policiamento ostensivo e repressivo e a preservação da ordem pública e Policiais Civis responsáveis pelo judiciário e apuração de infrações penais no município de Águas da Prata, e que possuam tempo mínimo de 01(um) ano de serviço continuo neste município.

Art. 2º - O pró-labore, instituído por esta lei, é fixado em meio salário mínimo vigente e pago mensalmente para cada policial militar ou civil, independentemente da patente, no desempenho dos serviços mencionados no artigo anterior.

Art. 3º - Os beneficiados com o pró-labore perderão o direito à gratificação quando

I - estiverem em gozo de afastamento, de qualquer tipo, por período superior a 30 (trinta) dias;

II - encontrarem-se respondendo a qualquer procedimento administrativo, que lhes impeça de exercer as atividades de segurança pública;

III - estiverem participando de cursos por período superior a 30 (trinta) dias, exceção feita quando após o término do mesmo houver garantia, de pelo menos 6 (seis) meses, de permanência na Organização Policial Militar – OPM do município;

IV - ao ser movimentado para outra Organização Policial Militar- OPM;

Art. 4º - O pagamento do pró-labore efetuado pela Prefeitura Municipal de Águas da Prata aos Policiais Militares e Civis, não cria vínculo empregatício de qualquer natureza e nem gera quaisquer outros direitos e obrigações de ordem contratual ou patrimonial.

Art. 5º - O Comandante local da Polícia Militar e Delegado local da Polícia Civil encaminhará a Prefeitura, até o segundo dia útil de cada mês, um relatório constando os Policiais Militares e Civis a serem contemplados com o pró-labore, bem como, o número dos devidos registros (RE), se responsabilizando pela veracidade das informações.

Art. 6º - Fica o Poder Executivo autorizado, se necessário, a baixar atos regulamentares à execução desta lei, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, a contar da data de sua publicação.

Art. 7º - As despesas decorrentes da presente lei e da execução do convênio correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas quando necessárias.

Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 9º - Revogam-se as disposições em contrário.” (sic)

 

13.    Além dos argumentos suscitados pela Prefeitura do Município de Águas da Prata/SP, a ação é procedente por outros fundamentos, a seguir analisados.

14.    O conceito de causa de pedir aberta inerente à sindicância objetiva de constitucionalidade de lei ou ato normativo (RTJ 200/91) torna possível o contraste da norma contestada com outros preceitos da Constituição Estadual.

 

A)   VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DE LEGALIDADE, FINALIDADE E RAZOABILIDADE

 

15.    A Lei n. 2.052, de 16 de maio de 2014, do Município de Águas da Prata, contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, a qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos artigos 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

16.    Ainda, referidos dispositivos municipais são incompatíveis com os seguintes preceitos da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu artigo 144, e que assim estabelecem:

 

“Art. 111. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.

(...)

Art. 128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”. 

 

17.    Sabe-se que as vantagens pecuniárias são acréscimos permanentes ou efêmeros ao vencimento dos servidores públicos, compreendendo adicionais e gratificações.

18.    Enquanto o adicional significa recompensa ao tempo de serviço (ex facto temporis) ou retribuição pelo desempenho de atribuições especiais ou condições inerentes ao cargo (ex facto officii), a gratificação constitui recompensa pelo desempenho de serviços comuns em condições anormais ou adversas (condições diferenciadas do desempenho da atividade – propter laborem) ou retribuição em face de condições pessoais ou situações onerosas do servidor (propter personam) [Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 449; Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233; Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 760].

19.    Se tradicional ensinamento assinala que “o que caracteriza o adicional e o distingue da gratificação é o ser aquele uma recompensa ao tempo do serviço do servidor, ou uma retribuição pelo desempenho de funções especiais que refogem da rotina burocrática, e esta, uma compensação por serviços comuns executados em condições anormais para o servidor, ou uma ajuda pessoal em face de certas situações que agravam o orçamento do servidor” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., p. 452), agrega-se a partir de uma distinção mais aprofundada que “a gratificação é uma vantagem relacionada a circunstâncias subjetivas do servidor, enquanto o adicional se vincula a circunstâncias objetivas. (...) dois servidores que desempenhem um mesmo cargo farão jus a adicionais idênticos. Já as gratificações serão a eles concedidas em vista das características individuais de cada um. No entanto, é evidente que tais gratificações se sujeitam ao princípio da isonomia, de modo a que dois servidores que apresentem idênticas circunstâncias objetivas farão jus a benefícios iguais” (Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 3ª ed., p. 761).

20.    Ou seja, os adicionais são compensatórios dos encargos decorrentes de funções especiais apartadas da atividade administrativa ordinária e as gratificações dos riscos ou ônus de serviços comuns realizados em condições extraordinárias. Com efeito, “se o adicional de função (ex facto officii) tem em mira a retribuição de uma função especial exercida em condições comuns, a gratificação de serviço (propter laborem) colima a retribuição do serviço comum prestado em condições especiais” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85). 

21.    Ademais, oportuno admoestar que “as vantagens pecuniárias, sejam adicionais, sejam gratificações, não são meios para majorar a remuneração dos servidores, nem são meras liberalidades da Administração Pública. São acréscimos remuneratórios que se justificam nos fatos e situações de interesse da Administração Pública” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 233) (grifo nosso).  

22.    Assim, importante frisar que as gratificações são precária e contingentemente instituídas para o desempenho de serviços comuns em condições anormais de segurança, salubridade ou onerosidade (gratificações de serviço) ou a título de ajuda em face de certos encargos pessoais (gratificações pessoais). A gratificação de serviço é propter laborem e “é outorgada ao servidor a título de recompensa pelos ônus decorrentes do desempenho de serviços comuns em condições incomuns de segurança ou salubridade, ou concedida para compensar despesas extraordinárias realizadas no desempenho de serviços normais prestados em condições anormais” (Diógenes Gasparini. Direito Administrativo, São Paulo: Saraiva, 2008, 13ª ed., p. 232), albergando, por exemplo, situações como risco de vida ou saúde, serviços extraordinários (prestação fora da jornada de trabalho), local de exercício ou da prestação do serviço, razão do trabalho (bancas, comissões).

23.    É assaz relevante destacar que “o que caracteriza essa modalidade de gratificação é sua vinculação a um serviço comum, executado em condições excepcionais para o funcionário, ou a uma situação normal do serviço mas que acarreta despesas extraordinárias para o servidor”, razão pela qual “essas gratificações só devem ser percebidas enquanto o servidor está prestando o serviço que as enseja, porque são retribuições pecuniárias pro labore faciendo e propter laborem. Cessado o trabalho que lhes dá causa ou desaparecidos os motivos excepcionais e transitórios que as justificam, extingue-se a razão de seu pagamento” (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 457-458).

24.    Convém insistir que as vantagens pecuniárias podem ser, (como os adicionais por tempo de serviço) instituídas pelo trabalho já realizado (pro labore facto), mas, a regra é que as demais (adicionais de função, gratificações de serviço ou pessoais), sejam ex facto officii ou propter laborem tem em mira o trabalho que está sendo feito, ou seja, são pro labore faciendo, de auferimento condicionado à efetiva prestação do serviço nas condições estabelecidas pela Administração Pública (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2001, 26ª ed., pp. 450-451, 453).

25.    Feita essa digressão, cumpre assinalar que o ato normativo impugnado autorizou a criação, para os policiais militares e civis que atuam no Município de Águas da Prata, gratificação especial, a título de ‘pro-labore’, que não decorre do interesse público ou das exigências do serviço.

26.    Em relação aos policiais militares, a Lei n. 2.052/14 autorizou a criação da gratificação especial aos que realizem a “fiscalização e policiamento ostensivo e repressivo e a preservação da ordem pública”. Já no que diz respeito aos policiais civis, a gratificação ficou autorizada àqueles “responsáveis pelo judiciário e pela apuração de infrações penais” (Art. 1º).  

27.    Nesse sentido, depreende-se da Constituição do Estado de São Paulo (art. 139) e da Constituição Federal (art. 144), que as atividades elencadas na lei como condição para o recebimento das gratificações violam os princípios da legalidade, finalidade e razoabilidade, como restará demonstrado.

28.    Os requisitos exigidos para a concessão das gratificações, em verdade, são atribuições intrínsecas às mencionadas carreiras. Nesse sentido, a Constituição do Estado de São Paulo (art. 139) e a Carta da República (art. 144), respectivamente, dispõe:

 

“Art. 139. A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

§ 1º O Estado manterá a Segurança Pública por meio de sua polícia, subordinada ao Governador do Estado.

§ 2º A polícia do Estado será integrada pela Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros.

(...).” (grifo nosso)

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – polícia ferroviária federal;

IV – polícias civis;

V – polícias militares e corpo de bombeiros militares;

(...)

§ 4º Às polícias civil, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades da defesa civil.

(...)” (grifo nosso)

 

29. Não é só. A Lei Complementar n. 207, de 5 de janeiro de 1979, em seu artigo 3º, disciplina:

 

“Artigo 3.º - São atribuições básicas:

I – Da Polícia Civil – o exercício da Polícia Judiciária, administrativa e preventiva especializada;

II – Da Polícia Militar – o planejamento, a coordenação e a execução do policiamento ostensivo, fardado e a prevenção e extinção de incêndios.

(...)”

 

30.    Dessa forma, a determinação prevista na Lei n. 2.052/14, para o recebimento da aludida vantagem pecuniária, não pode ser admitida. Isso porque, “realizar a fiscalização e o policiamento ostensivo e repressivo e a preservação da ordem pública” (policiais militares), assim como “a responsabilidade pelo judiciário e a apuração da infrações penais” (policiais civis), consistem em atribuições naturalmente desempenhadas pelos cargos.

31.    Em outras palavras, a incidência das gratificações leva em consideração incumbências essenciais ao provimento e exercício de tais carreiras, nos termos das Constituições Federal e Estadual e da Lei Complementar n. 207/79, motivo pelo não se justifica, apesar da louvável preocupação na permanência do servidor estadual no município.

32.    Ademais, importante ressaltar que, tanto a gratificação prevista aos policiais civis, quanto a destinada aos policiais militares, não decorrem da condição dos serviços, porventura prestados em situação anormal de segurança, salubridade ou onerosidade ou de retribuição em face de especial serviço ou encargo pessoal ao servidor.

33.    Ainda que as atividades dos policiais civis e militares apresentem maiores riscos, visto que são carreiras destinadas a manter a ordem e segurança públicas, esses são, notadamente, inevitáveis e esperados, de modo que as premissas ou fundamentos concretos para a concessão da vantagem pecuniária acima mencionada serve apenas como forma de aumentar os vencimentos.

34.    Bem observa Wellington Pacheco Barros, destacado Professor e Desembargador:

 

“Comungo com o pensamento político moderno de que uma das causas do inchaço da despesa pública é a remuneração com pessoal, que não raramente inviabiliza a tomada de decisões do agente político sobre investimentos de obras públicas de caráter benéfico à população. E uma das causas da despesa pública com pessoal é a atribuição indiscriminada pelo legislador de vantagens pecuniárias a servidor público sem que haja uma contraprestação de serviço e, o que é pior, com o rótulo de permanente e de efeito incorporador ao vencimento, elitizando a administração de existência de remunerações desproporcionais entre o maior e o menor vencimento de um cargo público” (O município e seus agentes, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128).

 

35.    Acrescenta o citado jurista, que gratificação é “a vantagem pecuniária, de conteúdo precário, concedida ao servidor público como forma de contraprestação pelo exercício a mais daquele que lhe é atribuído pelo seu cargo”.  (grifo nosso)

36.    No caso em tela, vale repetir, não há qualquer contraprestação especial ou extraordinária para que haja incidência e justificativa para as gratificações.

37.    Nesse sentido, a Lei n. 2.052/14 contraria a ideia de que a instituição de vantagens pecuniárias para servidores públicos só se mostra legítima se realizada em conformidade com o interesse público e com as exigências do serviço, nos termos do artigo 128 da Constituição do Estado, aplicável aos municípios por força do artigo 144 da mesma Carta.

38.    Como acima mencionado, a gratificação autorizada pela Lei n. 2.052/14 não atende a nenhum interesse público, e tampouco às exigências do serviço, servindo apenas como mecanismo destinado a beneficiar interesses exclusivamente privados daqueles agentes públicos.

39.    Ademais, de acordo com o artigo 139 da Constituição Estadual, cabe ao Estado manter a segurança pública, por meio de sua polícia, razão pela qual não é possível ao Município, neste caso, dispor sobre a remuneração dos servidores públicos estaduais. Nesse sentido:

 

“Artigo 139 - A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio.

§ 1º - O Estado manterá a Segurança Pública por meio de sua polícia, subordinada ao Governador do Estado.

§ 2º - A polícia do Estado será integrada pela Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros.

§ 3º - A Polícia Militar, integrada pelo Corpo de Bombeiros, é força auxiliar, reserva do Exército.”

 

40.    A inconstitucionalidade, portanto, decorre da contrariedade aos artigos 128 e 139 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios em razão do artigo 144 da mesma Carta.

41.    Ademais, a Lei n. 2.052/14 contraria o princípio da razoabilidade, que deve nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e tem assento no artigo 111 da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força do artigo 144 da mesma Carta.

42.    Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, vale dizer, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

43.    As gratificações ora questionadas não passam por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atendem a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos policiais militares e civis beneficiados por essa vantagem pecuniária; (b) são, por consequência, inadequadas na perspectiva do interesse público, mesmo porque a permanência ou não de policiais civis e militares no município decorre de política de pessoal de órgão estadual; (c) são desproporcionais em sentido estrito, pois criam ônus financeiros que naturalmente se mostram excessivos e inadmissíveis, tendo em vista que não acarretarão benefício algum para a Administração Pública.

44.    Inconstitucional, portanto, o ato normativo impugnado, por contrariedade aos artigos 111 e 128 da Constituição Paulista, aplicáveis aos Municípios por força do artigo 144 da mesma Carta.

45.    Atenta, pois, à lógica, à racionalidade, à objetividade e ao senso comum, vetores amparados pelo princípio de razoabilidade e, mormente, ao interesse público e à necessidade do serviço que devem presidir a concessão de vantagens pecuniárias aos servidores públicos como retribuição ou compensação pela prestação de serviços comuns em situações especiais ou pela prestação de serviços de natureza extraordinária.

 

B)     VÍCIO DE INICIATIVA E “AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA

 

46.    Com efeito, o conteúdo da norma contestada implica violação da reserva da Administração em matéria de gestão administrativa e a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo acerca da organização e funcionamento da Administração Pública, previstas nos artigos 5º, 24, § 2º, 1 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, porquanto a lei impôs atribuições a órgãos do Poder Executivo, invadindo aspectos da administração ordinária que se situa no juízo exclusivo do Chefe do Poder Executivo.    

47.    As regras do processo legislativo federal também são de observância compulsória pelos Estados e Municípios como vem julgando reiteradamente o Supremo Tribunal Federal:

 

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno - artigo 25, caput -, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33). (grifo nosso).

 

48.    A lei local contestada é de iniciativa parlamentar, vício que a macula ab ovo, pois invadiu a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo em tema de remuneração de agentes públicos, constante do artigo 24, § 2º, 1, da Constituição Estadual.

49.    A instituição de vantagem pecuniária e sua disciplina, devida aos servidores públicos é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (art. 24, § 2º, 1, Constituição Estadual).

50.    Neste sentido, é a pronúncia da jurisprudência:

 

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

 

51. De outro lado, e não menos importante, a Lei n. 2.052, de 16 de maio de 2014, também colide frontalmente com o artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo, pois a norma combatida não indicou, de forma adequada, os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos novos encargos.

52.    E nem se alegue se tratar de mera lei autorizativa, pois, essa natureza não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade.

53.    A autorização legislativa não se confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da reserva de iniciativa. Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências previstas na lei.  

54.     Lição doutrinária abalizada, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina que:

 

“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).

 

55.              A lei que autoriza o Poder Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privativa implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional.

56.              Neste sentido, vem julgando este egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

 

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional - não só inócua ou rebarbativa - porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir. O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência. As leis autorizativas são inconstitucionais por vício formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes.”

“LEI MUNICIPAL QUE IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO – INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO - AÇÃO PROCEDENTE.

A lei inquinada originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração Municipal, o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do Poder Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização para desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u., 19-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7, Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).

 

57.    A argumentação da natureza autorizativa da norma não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade, como já decidido:

 

“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).

 

58.    Portanto, a norma impugnada é incompatível com os artigos 24, § 2º, 1, e 25 da Constituição Estadual, que decorrem do princípio da separação de poderes contido no artigo 5º da Constituição Estadual (e que reproduzem o quanto disposto nos artigos 2º e 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Federal), aplicáveis aos Municípios por obra de seu artigo 144.

 

C) NÃO CONFIGURAÇÃO DE OPERAÇÃO DELEGADA

 

59.    Por fim, de acordo com as informações prestadas pela Câmara Municipal de Águas da Prata, o Prefeito teria protocolado junto à Secretaria daquela o Projeto de Lei n. 40/2014 (fls. 67), de conteúdo similar ao da Lei n. 2.052/14.

60.    No entendimento da Câmara Municipal de Águas da Prata/SP, por esse motivo, não teria fundamento o argumento da Prefeitura, quanto à imposição de obrigações ao Poder Executivo, sem a respectiva indicação da fonte de custeio.

61.    Muito embora essa justificativa não seja capaz de elidir a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, vale mencionar que o Projeto de Lei n. 40/2014 (fls. 67) enviado pelo Prefeito à Câmara Municipal trata de situação diversa da prevista na Lei n. 2.052/14. Senão vejamos.

62. O Projeto de Lei n. 40/2014 teve como objetivo criar a gratificação pelo desempenho de atividade delegada, a ser paga aos Militares do Estado que exercerem atividade municipal delegada ao Estado de São Paulo, em virtude de convênio celebrado com o Município de Águas da Prata/SP.

63.    Portanto, a gratificação prevista em decorrência de operação delegada, à qual se refere o projeto de lei supramencionado, é instituto diverso da gratificação cuja criação foi autorizada na Lei n. 2.052/14.

64.    Neste aspecto, concessa venia, mantenho a convicção externada pela Procuradoria-Geral de Justiça que, em relação à gratificação oriunda de operação delegada, dispôs:

 

Prima facie, da leitura da lei em epígrafe, não se visualiza as inconstitucionalidades propaladas na representação em análise.

A colaboração entre entidades públicas de qualquer natureza, ou entre estas e organizações particulares, para realização de objetivos de interesse comum dos partícipes, não é estranha ao nosso ordenamento jurídico.

Aliás, no seu art. 23, parágrafo único, a Constituição dispõe que: ‘Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’.

A segurança pública constitui dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, nos exatos termos do art. 144, caput, da Constituição Federal, inexistindo, assim, em linha de princípio, qualquer inconstitucionalidade na formação de parceria entre o Estado e o Município com vistas à adoção de medidas conjuntas para a melhoria da segurança pública.

Acerca desse tema, Hely Lopes Meirelles leciona que:

A ampliação das funções estatais, a complexidade e o custo das obras públicas, vêm abalando, dia-a-dia, os fundamentos da administração clássica, exigindo novas formas e meios de prestação de serviços afetos ao Município.

Evoluímos, cronologicamente, dos serviços públicos centralizados para os serviços delegados a particulares, destes passamos aos serviços outorgados a autarquias; daqui, defletimos para os serviços traspassados a entidades paraestatais, e finalmente chegamos aos serviços de interesse recíproco de entidades públicas e organizações particulares realizados em mútua cooperação, sob as formas de convênios e consórcios administrativos.

E assim se faz porque, em muitos casos, já não basta a só modificação instrumental da prestação do serviço na área de responsabilidade de uma Administração. Necessárias se tornam a sua ampliação territorial e a conjugação de recursos técnicos e financeiros de outros interessados na sua realização. Desse modo se conseguem serviços de alto custo que jamais estariam ao alcance de uma Administração menos abastada. Daí o surgimento dos convênios e consórcios administrativos, como solução para tais situações.’ (Cf. Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, São Paulo, 8.ª edição, atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro, Célia Marisa Prendes, p. 295).

É inegável que a segurança pública interessa a todos sem exceção, particularmente nesse delicado momento que o país atravessa, em que os casos de violência explodem de norte a sul, a exigir de todas as pessoas comunhão de esforços na expectativa de minimizar ou reverter o problema.

Evidentemente que os Municípios não podem ficar alheios a essa realidade, à medida que os moradores dos grandes centros urbanos são os que mais sofrem com a falta de segurança, e, nessa conformidade, a celebração de ajuste com o Estado, com vistas ao desenvolvimento de ações conjuntas na área da segurança pública, nada tem de inconstitucional, muito pelo contrário, visa ao atingimento de uma finalidade constitucional: a preservação do direito de todos à segurança pública.

No caso em análise, verifica-se que, por meio de convênio a ser celebrado com o Estado de São Paulo, o Município de Sorocaba pretende obter o apoio de agentes estaduais na realização de atividades previstas na legislação municipal referente a posturas.

A indeterminação legal quanto ao alcance do objeto do convênio a ser celebrado remete necessariamente à análise da minuta confeccionada, o que, porém, não se admite no controle normativo abstrato, em que a inconstitucionalidade deve resultar diretamente do confronto da lei com o texto expresso da Constituição.

(...)

Por fim, cumpre registrar que convênios dessa natureza são bastante comuns, inclusive na área da segurança pública, como por exemplo na prestação de auxílio financeiro e material aos serviços prestados pelo Corpo de Bombeiros, órgão estadual integrante da segurança pública” (Protocolado n. 114.795/11).

 

65.    Dessa forma, conclui-se pela insubsistência do argumento apresentado pela Câmara Municipal de Águas da Prata/SP, no sentido de que o Prefeito apresentou projeto de lei equivalente ao ato normativo impugnado, visto que a gratificação prevista no Projeto de Lei n. 40/2014 é decorrente da operação delegada. E, como acima explanado, a realização de convênios entre Estado e Município, no que diz respeito à segurança pública, é constitucional.

         66. Feitas estas considerações, manifesta-se pela procedência do pedido, a fim de que seja reconhecida a inconstitucionalidade da Lei n. 2.052/14, do Município de Águas da Prata.

 

São Paulo, 28 de agosto de 2014.

 

        Nilo Spinola Salgado filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

wpmj/mjap