Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo: 2096235-10.2014.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.268, de 12 de maio de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “institui o sistema de bônus aos Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo”.

2)      A disciplina da remuneração e a ampliação de direitos e vantagens dos servidores públicos, na qual se insere o bônus pecuniário outorgado a Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo sem registro e/ou autorização legal, é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Ademais, padece de inconstitucionalidade a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos.  Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 25, 47, II, XI e XIV, 144, 174 e 176, I da Constituição do Estado.  Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.268, de 12 de maio de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que “Institui o sistema de bônus aos Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo” (fls. 1/23).

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes e gerar gastos sem respectiva fonte de custeio. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º; 25; 47, II, XI e XIV; 144; 174 e 176, I, da Constituição Estadual.

O pedido de liminar foi deferido (fls. 46/47).

Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando se tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 62/64).

Devidamente notificado (fl. 53), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a normativa vergastada, sustentando a inexistência do vício alegado tendo em vista que o bônus outorgado pela referida lei trata-se de norma de eficácia limitada, que exige regulamentação pelo Poder Executivo, não havendo, portanto, a instituição de qualquer despesa à Administração municipal. Outrossim, alegou que a matéria em comento não se insere no rol de temas cuja iniciativa é exclusiva do Chefe do Executivo.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Em suma, procede o pedido.

A Lei nº 7.268, de 12 de maio de 2014, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após veto do Poder Executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º Fica instituído o sistema de bônus pecuniário aos integrantes da Guarda Municipal deste Município que, no exercício de suas funções, encontrarem e apreenderem armas de fogo sem registro e/ou autorização legal, entregando-as ao órgão de que trata o art. 2º desta Lei.

Parágrafo único. O bônus de que trata o caput deste artigo tem caráter de gratificação espontânea, não possuindo natureza salarial e não se incorpora, por qualquer meio, à remuneração do beneficiário.

Art. 2º As armas apreendidas serão entregues ao órgão policial ao qual couber a responsabilidade pela adoção dos procedimentos legais cabíveis, inclusive elaboração de laudo pericial e definição final do armamento.

Art. 3º Os responsáveis por aplicações indevidas das disposições desta Lei serão indiciados em processos disciplinares, na forma da legislação própria.

Art. 4º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias.

Art. 5º As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 6º Esta Lei entra em vigor a partir da data de sua publicação.”

O ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, art. 47, II e XIV, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Verifica-se que a lei municipal impugnada, ao instituir bônus pecuniário a Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo sem registro e/ou autorização legal, tratou de matéria relativa a remuneração e regime jurídico do funcionalismo público.

Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O processo legislativo, compreendido pelo conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

Nesse diapasão, cumpre mencionar que a iniciativa legislativa, ato este que deflagra o processo de produção normativa, pode ser geral ou reservada (privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa a remuneração e regime jurídico de servidores públicos, cuja iniciativa, ante previsão constitucional, cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 4), regramento este sujeito à observância pelos municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista (princípio da simetria).

Assim, quando o Legislativo municipal edita lei disciplinando matéria relativa a bônus pecuniário outorgado a Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo sem registro e/ou autorização legal, como ocorre no caso, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador, violando, assim, o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos entes municipais (arts. 24, § 2°, 1 e 4; 144).

Nesse sentido, confira-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

A propósito, convém destacar as seguintes decisões desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder Legislativo que dispõe sobre a concessão de auxílio-alimentação aos servidores. Matéria inserida na reserva de iniciativa do Chefe do Executivo. Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que concede aos servidores municipais 1/30 (um trinta avós) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício. Invasão da competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ingerência na Administração do Município. Vício de iniciativa configurado. Violação ao Princípio da Separação de Poderes. Criação de despesas sem a indicação da fonte de custeio. Violação dos artigos 5o, 24, §2°, 1 e 4, 25, 47, II e XIV, 111, 128 e 144, da Constituição do Estado. Precedentes. Inconstitucionalidade reconhecida. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Art. 27, da Lei n° 9.868/99. Ação procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº 0022157-16.2013.8.26.0000, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 24 de julho de 2013)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Emenda n° 37, de 7 de março de 2012, que deu nova redação ao parágrafo único do art. 88 da Lei Orgânica do Município de Ituverava, editada a partir de proposta parlamentar, que dispôs acerca dos requisitos para incorporação de vencimentos percebidos no exercício transitório de cargos de remuneração superior por servidores públicos municipais - Legislação que versa questão atinente ao regime jurídico do funcionalismo local, afeta à competência privativa do Chefe do Poder Executivo local - Inobservância da iniciativa reservada conferida ao Prefeito que acabou por implicar em afronta ao princípio da separação dos poderes - Previsão legal, ademais, que acarreta o evidente incremento das despesas do Município com o pagamento dos servidores, sem que se tivesse declinado a respectiva fonte de custeio - Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte, ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos artigos 5º, 24, § 2º, "4", 25 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo - Precedentes desta Corte - Servidores públicos beneficiados com a disposição legal questionada que perceberam as vantagens ali previstas de boa-fé, não se mostrando razoável impor-se a repetição daqueles valores ~ Presença, destarte, de relevante interesse social na espécie, que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal n° 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos. (ADI nº 0022160-68.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 24 de julho de 2013)

Reajustar vencimentos, ampliar direitos e garantias do servidor público, e dispor sobre incorporação de vantagens pecuniárias – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto, bem como a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

Ao autorizar o Município a instituir sistema de bônus pecuniário a Guardas Municipais pela apreensão de armas de fogo sem registro e/ou autorização legal, a lei combatida não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes, porquanto ordena novos dispêndios financeiros à Administração, cuja quitação demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Isso implica contrariedade ao disposto nos arts. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.268, de 12 de maio de 2014, do Município de Guarulhos.  

 

São Paulo, 8 de agosto de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

aca/bfs